A Garganta da Serpente

Dunia el Hayed

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Desespero Manso

Entre laços, amarras e panos
Eis o defunto amortalhado
Eis um retrato falado
De alguém que já não diz.

Eis meu amor retalhado!
Oh, meu pobre!
Querido...

Ferido!
Ferido
De morte...

(as mãos passeiam por um rosto enfaixado. Mal notam-se as feições por baixo de todo aquele aparato. Nem tão competente quanto o dos faraós e sacerdotes. Aqui, ela sabia, a necrose já havia começado. Ela acompanhou sorrateiramente todo o trabalho dos embalsamadores. Viu quanto tempo levaram na beberança e na pândega. Demoraram a começar os trabalhos, o corpo já queria inchar. Os dias passavam, a lua a quase mudar de fase... Nada de incomum, sempre faziam assim com os pobres. Esta era sua profissão, como quase todos os de sua família. Além disso. Conhecia os túneis secretos. Agora todos foram embora, com os sentidos embotados de cerveja, pegajosa sobre a caixa que continha a lembrança mais viva de seu amor. Enfim estava perto dele e chorando a triste sina dos homens nesta Terra.)

Oh, seu corpo agora
Já apodrece!
As nódoas verdes
Das costuras
Ainda estão vivas
Na memória!

(Em toda a cidade pode-se ouvir como que um uivar de gata parindo: contínuo, forte e delicado. Vibrante! Tanta dor não cabe no organismo, é preciso gritar. Mais alto, mais alto, que alcancem agora seu segredo... um rosto inalcansável está parado para sempre frente a sua face lívida de lua.)

Amor, amor!
... Meu amor...
Onde pousam as asas
De seu sorriso,
De seu rosto lívido?

(Que fazer da vida? Chorar até finar-se? Ela, logo ela!, que sabe o que se passa depois da morte? Esses olhos castanhos, que aprenderam a ler escondido, desvendando os códigos restritos, contemplam sem comiseração própria os restos daquilo que fora seu homem uma vez. Sem esposo, sem filhos, uma vida inteira a abrir buchos desconhecidos, e nenhuma piedade. Era como se entornasse dentro do peito aquele líquido secante de vísceras, ausentando as lágrimas. De vez.)

Desespero?
Que nada.

O que quero agora é
Não querer.


(Dunia el Hayed)


voltar última atualização: 30/12/2007
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