A Garganta da Serpente

Danilo Marques

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O MUNDO DE MIM MESMO EM MIM

Sou de um universo distante
No fundo de mim mesmo.
Império do Rouxinol,
Onde a lua anda errante ,
O sol brilha a esmo,
No mesmo arrebol.

A Lua e o Sol brilham juntos
Na manhã estrelada do meu eu.
Os grilos da noite cantam com as cigarras do dia,
As conversas têm assunto,
O Sarau não morreu,
E reina a poesia.

As leis foram quebradas,
Os dogmas queimados,
As religiões esquecidas.
Não há pessoa desprezada,
Não há lugares separados,
E a intolerância é desconhecida.

No reino de mim mesmo em mim,
Também tem lugar pra você.
E existe uma residência só,
Um lindo e florido jardim,
Paredes em degradê,
Molduras de rococó.

Comemos favos de mel,
Bebemos o orvalho das flores,
Sem arrancá-las dali.
Falenas dançam no céu,
E brindam-nos com suas cores
As mais lindas que já vi.

Quando alguém quer entrar no mundo eu,
A alfândega só olha um item:
Se a pessoa tem um preconceito que seja,
Não contra mim, contra quem bem entendeu.
Ali divisões não existem.
Você é o que é, ou almeja.

Faz frio sim, pois o frio é romântico, bucólico,
E quando a bruma densa passa por nós,
Sentimos gosto de algodão doce.
Faz calor também, mas não um mormaço melancólico.
E nestas tardes quentes o sabiá nos dá sua voz,
Como se o trovador da coorte fosse.

Nas tardes de luar,
Depois de uma manhã estrelada,
Cai uma chuva fina.
Pode sair, não vai molhar.
Vai te fazer sorrir, dar gargalhadas,
É glíter, brocal, purpurina!

Confetes e serpentinas,
Quando é chuva de granizos, risos,
Lantejoulas, também.
Varrer depois? Imagina!
Prejuízo!
Chão igual não tem!

E por em chão falar,
Só tem uma rua. Não é interessante?
E esta rua, esta rua é minha, sim.
Por isso, mandei ladrilhar,
Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhante,
Para que lembres de mim.

Nesta rua... Adivinha? Tem um bosque
Que se chama, que se chama cafuné.
Dentro dele, dentro dele moram quinze mães carinhosas.
Seus braços são compridos para que eu me enrosque,
Seus seios são grandes e eu me afundo até,
Enquanto sinto suas mãos sedosas.

Não são anjos que roubam os corações,
Antes, dão os seus,
Porque nos querem bem.
Ali há sempre as canções
Que as mães cantam, dadas por Deus,
Que mora lá também.

As cores do arco-íris, intensas,
Fazem parte da paisagem,
E decoram o dia inteiro.
E o pote de ouro, vença!
No fim, não é miragem,
Não é lenda, é verdadeiro.

No mundo do meu peito,
Da minha cabeça evasiva,
Do meu eu sufocado,
Você pode ter o teu jeito,
E eu te direi que viva,
Finalmente libertado.

Quer reinar? Que reine, já!
Abra as asas, doidivanas,
Quebre os grilhões do teu estro!
Quem quiser cantar, cantará,
No coro das insanas,
Onde o pavão é maestro.

As estações funcionam direito.
No outono o verde é tão lindo,
Que chego a esquecer o azul, o meu predileto.
No inverno, o frio é perfeito,
A neve vai caindo,
Cenário para o amor, para o afeto.

Na primavera, as flores, ostensivamente,
Vão brotando, vão florindo.
Também nasce renova-se a fauna inumerada.
No verão o sol, que não é incandescente,
Brilha mais do que antes, sorrindo,
Na abóbada estrelada.

O mar é açucarado,
Os espinhos possuem rosas,
E não ferem, fazem cosquinhas.
Os insetos, andantes e alados,
Têm cores mais ditosas,
Não tem ferrão, só bitoquinhas.

Este mundo existe,
Mas não posso estar nele agora.
Só quando a pena corre, escrevendo, desenhando.
È triste...
Quero ir embora.
Até quando viverei sonhando?

Sofrendo o caos deste mundo,
A hipocrisia, o ódio, o ressentimento,
A indiferença, o desprezo, a crítica destrutiva.
Não, eu sou oriundo
De um lugar onde o vento
Leva tudo que o mundo cultiva.

E atirando-a no abismo,
Que me divide dos mortais,
Um fogo incessante os consome, devora.
Mas, o que mais lastimo,
É que os que acusam mais
São aqueles cuja alma também chora.

Gente cuja alma, tão suja quanto a minha,
Não enxerga sua própria miséria,
E aponta-me o dedo pútrido,
Batendo no peito, espumando, caminha,
Erguendo-se do chão, qual divindade etérea,
Olhando-me como a um ser fétido.

Tudo o que eles têm dento de si
É um vazio enorme
E uma frustração incompensada.
- Vi, vim e venci!
Bradam eles, como um César que deusiforme
Comanda a invernada.

Mas o que eu tenho dentro de mim
É mais do que posso crer:
Um mundo de brilho e cor.
Achar-me um César? Nem tanto assim,
Sou um menestrel, tento viver,
Dando à luz, poemas de amor.

No meu mundo refugio-me
Dos meus juízes, dos meus algozes,
Vivo no papel o que sou de verdade.
As musas amparando-me,
Embalam-me com suas vozes,
Ah! Quanta saudade...

De um tempo em que este meu eu
Não era aprisionado,
Mas não se sabia existente;
Descobriu-se quando morreu,
E viu-se de bichos cercado,
Resto do que foi gente.

No túmulo de Himeneu...
"Jazz!!!" O metal oxida inerte.
Já não conhece meus lábios,
Ícaro morreu.
Quando se quer voar a asa derrete,
Viveria, se fosse um sábio.

"Louco! Esta noite pedirão a tua alma",
Dizia o Livro Sagrado,
Li, não vivi, me perdi,
Hoje, meu corpo sem calma,
Caminha errante e desgarrado,
Nas densas brumas daqui.

Enquanto minha alma distante,
Nas tramas do papel reina, liberta,
Onde se prendeu o meu espírito nada santo
E me aplica seu soro neste instante
Pra curar essas feridas abertas
Que sangram quando canto.

Ali, pelo menos, meu eu desmascarado,
Sorri, gargalha gostoso, respira,
Caminha altivamente,
Sem culpa, aliviado,
Nunca mais se retira,
Vive novamente.

E eu convido você à liberdade
De viver no meu mundo o teu eu
Despido do que lhe disseram que era, enfim;
Esconderam-te as verdades.
Dom Quixote não morreu,
E vive dentro de mim.

No mundo de mim mesmo em mim,
Os sentimentos e os sentidos são as coisas mais
[importantes,
Onde o espírito e a carne podem conviver.
Ali, tudo o que existe é assim...
Comovente e excitante,
Bom de sentir, tatear, ouvir, degustar, cheirar e ver.

Pra sentir, tem emoções fortes,
Toda a sorte de sensações gostosas,
Prazeres, delírios, palpitações,
Pois todos se amam freneticamente,
De uma forma deliciosa,
Repleta de excitações.

Não, nada de orgia, bacanal, coisas assim.
É que o amor entre duas pessoas, mesmo convencional,
É feito com amor e desejo extremo.
Então, quando você vem a mim,
Vem com um sentimento de forma tal,
Que o ato se torna supremo.

Espasmos, suspiros, vida,
Gemidos inexprimíveis,
Sensação que o tempo parou,
Doce e louca lida
De descrições impossíveis
Que ninguém jamais nomeou.

Mas nem tudo é fazer amor.
Existe deliciar-se
Em estar vivo e liberto.
As cores e formas no meu mundo sonhador
Levarão-te a deleitar-se
Com seus olhos bem abertos.

Tudo o que se vê é um colorido sem fim,
De cores, borboletas, passarinhos,
E um céu límpido e profundo;
Um pôr de sol carmesim,
A abóbada azul marinho,
Descortinando a noite do meu mundo.

De manhã, como eu havia dito,
O sol e a lua juntos
Brilham com as estrelas brilhantes.
De noite, não ache esquisito...
A lua é um gigante absoluto
Abençoando os amantes.

A lua é a musa rainha
Nossa amiga, confidente,
Mãe, mulher, companheira.
Os boêmios da Lapinha,
Já sabiam, certamente,
Que essa nota é verdadeira.

Como em sua época, lugar e gente,
No meu mundo nos vestimos para ela,
Chapéu côco, bengala, sapato branco,
Relógio de bolso com corrente,
Terno alinhado, cravo na lapela,
E um sentimento franco.

Saem os trovadores pela minha rua ladrilhada,
Violões, flautas, cantores, batuqueiros,
Flores nas mãos e uma paixão intensa.
Adentram na turva madrugada,
A declamar poemas inteiros,
A cada habitante da casa imensa.

Homens, mulheres, animais, objetos,
Todos são homenageados,
Na gigantesca sacada.
Todos à todos têm afeto,
No palco dos amados.
Não tem arquibancada.

Até que a aurora rompa,
Trazendo de volta o dia,
Os astros brilhando a esmo,
Com toda aquela pompa.
O colorido traz a alegria,
No mundo de mim mesmo.

O que se ouve noite e dia,
É uma miscelânea de sons da natureza,
E músicas de verdade;
Eclética euforia,
Swing, capricho, beleza,
Saudosismo e novidades.

O que se sente no tato
É seda, veludo, algodão.
Nada que fere, nada que arranha, nenhum.
O carinho, também é fato,
Cafuné é comprimento de mão.
Abraços são mais que comuns.

Se eu quiser sentir a textura
Da tua pele macia
Receberás sem desconfiança,
Porque é cheia de ternura,
A mão que acaricia,
Tua pele de criança.

No olfato o que se sente,
É dama da noite, desabrochada.
Narciso, gerânio, rosas;
Mas também cheiro de gente,
De cio, de pele excitada,
Vontades libidinosas.

Ao paladar tudo faz bem.
Na terra que fiz para mim.
No fundo do meu eu acuado;
Até água que aqui nem gosto tem.
Lá tem gosto de quindim,
Sabor adocicado.

No mundo de mim mesmo em mim,
A dança é a ciranda,
Em torno do coreto.
Todo domingo, no jardim,
Certa tuba de uma banda,
Faz com o gato um dueto.

E a ciranda, alegre roda,
Ao som das velhas cantigas,
Infância que nunca tem fim.
E a gente canta, é moda,
Moda boa é moda antiga,
Ao som do Seu Serafim.

O mundo de mim mesmo em mim,
É a evasão que proponho na minha vida,
Para poder, mesmo que no papel, ser transparente;
Ser eu mesmo, sem máscaras, enfim,
Um descanso dessa lida,
Onde grito que sou diferente.

Que sou um menino que sonha,
Que sou um pássaro que verseja,
Que sou um homem sensível;
Ainda que o sol se ponha,
No caos do mundo e não veja,
Ser bem visto possível.

No meu mundo arvora a bandeira
Azul e rosa que meu estro veste,
Brilhante e perfumado.
De qualquer maneira,
Meu nome deixarei neste
E naquele serei amado.

(Danilo Marques)


voltar última atualização: 09/10/2008
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