A Garganta da Serpente
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Cleber H. Teixeira

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QUANDO EU COMPUNHA

(para Admmauro Gommes)

Quando eu compunha era um pássaro
e rabiscava meus versos como um vôo livre
traçava um caminho com minhas próprias letras
sem barreiras, sem cercas
sem perdas e danos
confessava os meus enganos e acertos
apenas redigindo as lágrimas
tingindo as pálidas páginas de paisagens e palavras

Quando eu compunha
não era esse escravo
eu era um bravo senhor do labor poético
eu punha em sílabas os desencontros
não era funcionário dos pontos
dos decassílabos
era transeunte dos intransitivos verbos
o ir, o voltar, o sonhar...
ah, como eu sonhava e voltava aos mesmos lugares
e deixava que os mesmos olhares
tomassem conta de minha poesia
quando essa arte realmente fazia parte de mim
de forma branca, cristalina
sem a ferina pretensão de ser perfeita ou tradicional
eu era somente emoção
era amante
desamante
passional

Quando eu compunha não havia em mim uma regra
um manual de instruções
não tinha quarteto, terceto
não tinha a droga do soneto
não lia Bilac
eu nem conhecia Camões!
Tudo era uma troca de substantivos e sensações
e as metáforas, as antíteses, as hipérboles
essas eram grandes confidentes
e deitavam sobre minha cama
e me amavam mais em minha mesa
plantavam-se como minúsculas sementes
e brotavam qual mostardeira
mas de forma verdadeira, corriqueira, casual
essa arte era por natureza quente
doce
coloquial
não tinha o amargor da métrica
não se acorrentava a essa falsa estética
a essa mania de querer ser canção
dane-se a precisão!

Quando eu compunha
não imitava ourives nem arquiteto nem carpinteiro
preferia ser guerreiro
o que impunha a arma rente ao teto
e mancha de sangue o chão
e que tem sempre a solução na palma da mão
nos gumes da lâmina
e uma chama de ilusão
e desilusão
corroendo as vísceras
derretendo os átrios e os ventrículos

A tinta e a folha eram minhas veias
minhas vias e meus limites
tudo era apenas linhas
fossem minhas ou não
e os singulares eram córneas, poros, dedos, cabelos
e ela, essa fêmea safada e poderosa,
vinha quando bem queria e pretendia
e se alojava no meu peito
sem me dar sequer direito de esperar amanhecer
era na rua, na cozinha, no banheiro
escondia-se embaixo do meu travesseiro
e percorria nua as minhas noites e os meus dias
e eu a cuspia na parede
na agenda e na própria pele
tínhamos um caso
uma dependência

Quando eu compunha havia mais ausência
martírio
havia bem mais delírio que sapiência
eu trafegava sem faróis
até sem luas, sem sóis, sem lençóis
bendizia o dia
amaldiçoava a retórica
"pro inferno a eloqüência!"
e andava só
com minhas próprias mãos
não pegava corona no dinossauro
não comia o miolo do dicionário

Quando eu compunha
faz um tempo, eu lembro
eu adormecia ao silêncio dos meus gritos
à calmaria do meu desespero
e não havia esse tempero amargo no meu alimento
não existiam doses nem medidas para o sentimento

Hoje,
excremento


(Cleber H. Teixeira)


voltar última atualização: 20/02/2004
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