A Garganta da Serpente

Cláudio Martins

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DESEJOS DE UM AUTOR

Queira ser a letra que lê o leitor.
Aquela letra que vê teus olhos marejarem,
Que admira tuas pupilas emocionadas,
Vivendo as cenas junto com as histórias contadas.
Que talvez nem conte tanto em contos,
Nem em rimas, nem versos ou prosas.
Já que, às vezes, conto cenas arredias, de grandes cidades,
Outras vezes, cenas de amor, em belos campos de rosas.
Mas vives a emoção dos muitos personagens
Que, a mim, parecem ter vida própria,
Parodiando os dias de todos nós.
Aqueles dias em que nos sentimos espontaneamente mais tolos.
Rodeados de gente e, ainda assim, estranhamente sós.

Queria ser um livro pensante,
Companheiro do meu leitor.
Teria minhas próprias vontades:
Não, não me emprestes a quem não mereça!
Não quero ser lido por devoradores de títulos do momento.
Não quero que me desnudes a quem não tem sentimentos.
Quero ir para as mãos de quem tu amas.
Tua namorada, teu noivo, tua esposa, teu amigo.
Quero que seja alguém que chore junto contigo,
Tanto na alegria quanto nos dias ruins.
Que ri de tuas travessuras sem receio de te ferir,
Aquele do cotidiano vosso de vida em vida.
Empresta-me apenas àquele que faz tua vida mais feliz.

Queria ser a letra que te olha os olhos
E vê neles um misto de alegria e saudade
Ao perceber que as páginas correm, dirigindo-se à palavra FIM.
E que, sem se importar de quantas palavras faz parte,
Sem notar se foram páginas muitas ou poucas,
Se as palavras tiveram toques de arte
Ou foram apenas orações livres e soltas,
Sabe ter deixado marcas próprias em ti.
Sabe que tua mente nunca mais será a mesma.
Pois dividi contigo alegrias e angústias.
Compomos juntos imagens que, no início, até eram minhas,
Mas emprestaste a elas tuas cores, teus semblantes, teus temores.
Colocaste nelas tuas marcas, teus rancores, tuas farpas, teus amores.
E fizemos juntos uma obra nova. Única.
Minha história, minhas letras, meus argumentos.
Tua identidade, tua vida, teus sentimentos.

Mas acabam-se as páginas. Que pena!
Enfim, guarda-me naquela prateleira.
Aquela, reservada às tuas obras preferidas.
Aquela, do sorriso fácil e das lágrimas incontidas.
Deixa-me aqui para descansar.
Descansa também tu de mim.

Mas quando a saudade apertar,
Quando essa nossa história teu coração pedir para recordar,
Vem, apanha-me daqui e retoma-me as linhas.
Pode ser tudo de novo ou apenas aquela parte que gostas, perto do FIM.
Pode ser um capítulo inteiro, uma página,
Meia dúzia de palavras ferinas.
Vais me alegrar de qualquer forma, já que agora, tu, leitor, és parte de
mim.
E vou poder atravessar tua íris e ver-me vivo, lá dentro de ti.
Compondo uma nova história a cada novo dia.
Com minhas partituras, com teus concertos.
Em meus temores, em teus desacertos.
Que incompleta tal obra seria
Sem minhas angústias, sem tuas dores!
Ainda que com meus versos, sem tuas farpas,
Sem teus amores.

(Outono / 2007)


(Cláudio Martins)


voltar última atualização: 03/07/2009
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