A Garganta da Serpente

Cairbar Garcia Rodrigues

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A ÚLTIMA CONFISSÃO

I

Seria possível?
Seria possível eu estar louco, dessas loucuras douradas
Desse bem-estar inexplicável que tanto vadia nos meus sonhos,
Quando sinto que posso sentir o que não posso sentir?

Foge-me a terra aos pés quando vôo distâncias temporais
E me encontro proporcionalmente ao seu lado.

Será verdade que há um sonho chamando-me a tundas,
Como as que tanto levei da vida?
Será verdade que estou perdido, de uma perdição de doer
E que mesmo perdendo todos os sensos,
Me atiro de vida e morte ao que não posso querer?

Perco a razão que jamais tive, quando sinto esperanças vãs
De sonhá-la apaixonadamente ao meu lado.

Mas há um céu imenso, que não é verdade nem mentira.
Há uma lua silenciosa de olhos postos em mim.
E esta lua é uma verdade que não me cabe desmentir.

Ah, como me custam as horas vagarosas dos dias!
Como me dói ter o mar inteiro, ondulado e verde,
Quando o que persigo é um riozinho estreito e calmo
Ao qual os caminhos tortos da razão
Jamais me permitirão chegar.

II

Mas minha demência é exata e cruel,
Como são exatos e cruéis os retratos da fantasia,
Todos eles em negativos nunca revelados,
Ou, se revelados, manchados pela racionalidade,
Estragados apela imperícia de quem, por engano,
Instalou no homem sentimentos.

Já construi e destrui incontáveis castelos
Todos eles proporcionais aos meus sonhos.
E os destrui exatamente ao despertar de cada sonho Desde que todos os meus sonhos São de idênticas apoteoses às dos dramas que se apresentam
Nos teatros dos meus castelos.

III

Não tenho sábios silenciosos para me ouvirem,
Nem monges confiáveis a quem me confessar...
Nem saberia, de fato, o que dizer ou confessar.
Não sou réu nem pecador, nem errei a ponto tal.
Sou o pecado que castiga a mim mesmo,
Porque julgo que a mim, somente a mim,
Não é justo nem producente errar.
Mereço, então, grandes castigos, os maiores,
Até aprender que nuca me será um erro te amar.

IV

Hoje estou triste porque está frio e chove
E a chuva mansa tamborila incessante
Nos telhados das varandas solitárias.
Mas não estou triste porque a chuva é fina e fria.
O que me entristece é percebê-la tão longe
Como o sol que há dias não vejo.

Sinto que a desejo mais quando chove,
Ou que talvez chova mais quando a desejo,
Mesmo que, às vezes, somente a queira por perto,
Deixando ao acaso que nunca erra
As possibilidades de sermos um a dois,
Ou, o que me muito me amedronta:
Mesmo sendo dois, não sermos, de fato, jamais, nenhum.
Como vampiro ao qual se lhe negam veias
Nem saí ao quintal para ver como chove.,
Porque se sair, e não vir sequer um passarinho
A dar voltas sem ritmos sob a chuva,
poderei querer incondicionalmente a morte,
antes que a noite se faça neste mundo.


V

Minha vida se atrela aos seus projetos,
Que nunca me projetam em lugar algum,
Porque o que você pensa e, muito mais, deseja,
Está além do que me é permitido sonhar.
Mas não é de sonhar-te que tanto me perco...
É de perder-me em você que tanto sonho.
E é por tais sonhos impróprios e loucos
Que aceito as penas todas, duras e cruéis,
De uma quase castidade sentimental.

Muitas vezes choro e ninguém sabe que choro.
Muitas lágrimas escondo, covarde, quem sabe,
Para que não percebam nos meus olhos
A fragilidade de um seminarista enclausurado.
Mas a estes infelizes futuros religiosos
Resta sempre o consolo inútil da opção,
Enquanto a mim, com relação a você,
Resta o desconforto da certa impossibilidade.

É-me, então, tão trágico o existir assim,
Quanto querer enforcar-me num galho de desespero.


VI

Se Deus me aparecesse num máximo delírio,
Mesmo que fosse de uma febre muita alta
Ou de uma droga que alucina,
Eu lhe diria: "Vade, Senhor, que estou louco
E posso mais que todos os deuses...
E se eu me enfurecer da loucura de amar,
Posso ser mais poderoso do que sóis vós neste instante".

... Se Deus me aparecesse e me sentisse a sentir o que sinto,
Me tomaria nos braços e me cantaria uma canção de ninar.
Já que o Deus que sempre me encaminha é sereno,
E sua serenidade faz a necessária compreensão,
E o seu compreender-me me daria paz e perdão...
Mas não saberia como dar-me você: a solução.

VII

Custa-me crer que não estou louco,
Embora me seja inútil pensar que amar seja loucura.
Loucos amam de matar e morrer...
Eu amo de sonhar e chorar... e esperar, esperar...
O quê, quando e como, não sei.

Talvez espere um barco, um avião, um trem,
Uma carruagem que me leve aos céus
Numa única e onírica viagem sem volta.

Mas se eu não voltar da incoerência,
Como poderei compreender, mais tarde,
O que irá representar a minha ausência?

Por isso fico e me escondo da minha verdade,
Até que você perceba que amar é, pela lógica,
Um direito que não admite barreiras,
Embora esbarre na natureza dos sentidos
Natos, inatos, ou plantados sempre pela essência
Da qualidade material dos que logram amar...
E serem naturalmente amados.

VIII

Pela janela quase nunca aberta
(tenho medo que por ela entre maior solidão)
Olho os campos verdes e as represas
E a chuva caindo mansa e fria,
Formando névoas por sobre as águas.

Sinto, então, como se estivesse em êxtase,
Que poderia sair de mãos dadas com você
E caminhar sob a chuva até as águas,
E adentrar com você às profundezas,
Até olhar para o lado e ver que você não está,
E olhar para minhas mãos, sentindo-as vazias de você...

E imergiria num afogamento doloroso e inevitável
Ao meu último momento de loucura.

IX

Assim como você é uma verdade,
Sendo tese e, paradoxalmente, antítese,
Sou, por conta da minha complexa singularidade,
Aquele que se permite lágrimas
Em vez de lutas ferrenhas,
Tendo como alento assumir-me louco,
Porque se me julgasse somente um pouco são,
Sentiria ódio de mim mesmo
E começaria uma inútil luta desigual
Contra o nada que talvez me julgasse ser
E você me estenderia as mãos como uma esmola que,
Invariavelmente, acalma aos fracos e vagabundos.

X

Triste como um menino que engole os últimos soluços
Pelas palmadas que acaba de levar,
Olho o relógio da sala e vejo que não há horas.
Meus olhos estão turvos do arsênico,
Que justo, porque eu assim o quis,
Mas cruel, porque me asfixia e me derrete as vísceras,
Vai, por mim, dizendo adeus a todas as letras,
Pensando no seu último olhar em noite calma,
Quando seus olhos não me deram qualquer esperança,
Mas me fizeram desejar folguedos,
Como aqueles a que se propõem, incondicionais,
Um velho e a uma criança.

E o mundo não vai mais ouvir qualquer lamento
Antes que minha alma te busque em qualquer noite enluarada.


(Cairbar Garcia Rodrigues)


voltar última atualização: 13/10/2003
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