A Garganta da Serpente

Cairbar Garcia Rodrigues

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JUÍZO FINAL

Um dia chegará em que estarei definitivamente silente
e nenhuma palavra poderá ser-me arrancada,
porque ninguém cavouca palavras aos mortos,
a não ser na mediunidade nunca comprovada
da literatura espiritualista.

Hão de sorrir os que se enojam com meus versos,
que nunca são sublimes nem divinos...
porque não há divindade nem esplendor no que faço.
Somente a loucura é divina, sublime e entendida.
Mas nunca tive a capacidade de ser louco.

Um dia chegará em que me terão definitivamente morto
e nenhuma poesia poderá ser vista em meus olhos.
Os olhos dos mortos são mudos e frios como a neve.
Hão de temer-me se me abrirem os olhos
e virem que eles somente olham o absurdo...
                            E assim estarei vingado: o absurdo é o
reverso de tudo

Tudo o que estou deixando na estrada são palavras,
algumas vis, outras vãs, a maioria estúpidas.
Mas minha estupidez é uma grande riqueza herdada
da indolência pobre e podre dos homens todos,
e minha vileza e minha futilidade
são, incontestavelmente, o produto líquido
da inutilidade da minha herança maldita.

E quantos dirão, depois que me vier a morte,
que fui um poeta sensível e sensato... correto até.
E o meu ódio, se eu tiver alguma alma prestável,
                            Estrondeará pela sala mortuária, aos gritos:
Filhos-da-puta! Por quê não disseram isso
enquanto eu estava em carnes, vivo?

E todos clamarão por Deus, trêmulos, arfantes,
sem entenderem que um poeta somente é morto
quando a história o matar definitivamente.

Que ninguém se preste a se enfronhar nestes versos
nascidos num repente lúcido, mas insano.
A poesia será sempre o orgasmo da insanidade.


(Cairbar Garcia Rodrigues)


voltar última atualização: 13/10/2003
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