A Garganta da Serpente

Aroldo Ferreira Leão

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O ELO DRUMMONDIANO DOS SENTIDOS

(I)

Sim, Carlos, a vida continua
Injusta como sempre,
Os homens apressados,
Os carros buzinando sem parar,
A morte do espírito
Acontecendo todos os dias.
Há uma angústia nos corações,
Um medo de acreditarmos
Uns nos outros,
Uma necessidade
De termos bens materiais em excesso,
Uma dor que nos explora
E nos piora continuamente.

Sim, Carlos, o amor desapareceu,
Ninguém compreende ninguém,
Homens se matam fora
E dentro de suas casas,
Meninos passam fome
Pelas ruas deste teu país
De saudade humilde e doída,
Canção de nossa ancestralidade
Nos unindo ao que somos
E ao que deixamos de ser,
Acasos roídos pela solidão
Dos espaços desencontrados.

(II)

O poema exige paciência,
Solidão, cadência.
Inútil correrias,
Vazias atitudes que não levam a nada,
Conceitos tolos do que é , foi ou será.
Interpretações visionárias
Do teu ou de outros destinos,
Sentimentos roídos por fora
E por dentro de tua alma.

O poema é você.
Desnudo, limpo, correto.
Só o sonho pode inundar-te
Com o que de melhor há em ti,
Espantar velhos fantasmas,
Cercar-te da paz mais angelical.
Vai, arrisca-te, torna-te
O que pretendes ser!
Vai, a morte virá, cedo ou tarde!

O poema é criança que se embala
Com o máximo de carinho,
Sem ressentimentos ou convicções
Cansadas da maldade alheia.
Toca na tua face
E sente a passagem dos anos,
A angústia das rugas
Que te tornaram quem és,
A força do mistério de tudo.

(Morro do Chapéu, 02/05/2002)

(III)

Só a poesia pode libertar,
Te encontrar sereno
Como o olhar de uma mãe
Lançado ao filho
Num momento de silêncio
E verdade.
Só a poesia pode tudo.
Renascer, crescer, evaporar,
Condensar, infiltrar, soltar
As amarras tensas
De tua alma.
Só a poesia ressuscita.

(Petrolina, 22/04/2002)

(IV)

Minha liberdade
Só reina na solidão.
É preciso lapidar-se
Sem ferir, sem magoar.
Enxergar além
Sem prejudicar aos outros,
Sem monopolizar
Conceitos,
Sem deteriorar
Vidas e esperanças.
É necessário ter fé
Nos homens,
Compartilhar dos sonhos de todos,
Construir elos
Que nos espalhem
Vida afora,
Colher, com perseverança,
O que plantamos
No terreno espiritual
De nossos destinos.
Minha liberdade, talvez,
Só inicie com a morte.

(Morro do Chapéu, 02/05/2002)

(V)

Só os anjos
Acariciam
A poesia
Sem mãos
Nem toques.
Só os anjos
Compreendem
Sem impérios
Nem forças.
Só os anjos
Absorvem o amor
Como se deve,
Flutuam na verdade
Sem deslizes.

(Petrolina, 22/04/2002)

(XXVI)

Espíritos gentis
Sabem que a vida
Sobre a Terra é uma
Passagem, uma escala

Na busca de nossa
Melhoria espiritual.
O ser humano é criança
Impura, algo que precisa

Crescer, evoluir,
Para construir
Em si mesmo
A pureza que não possui.

(XXVII)

Sou circunstancialmente inseguro,
Figura dispersa entre as angústias
E os medos de seu próprio tempo.

Algo prende-me aos degredos,
Desacelera-me com uma lucidez
Doentia.

Busco os instantes isolados,
A força sonâmbula dos indivíduos
Dispostos a se investigarem

A vida inteira.
Estou nas pressuposições,
Na vida das gentes que me desconhecem.

(XXVIII)

Ainda não sou o velho que sou.
Minha juventude me arrasta
Pelos dias, me envolve com a demência
De uma realidade corrida
E sem nenhuma espiritualidade.
O tempo, as coisas, me ensinam a ter paciência
Comigo mesmo, menino inquieto de paz implosiva.
Tenho distâncias dentro de mim,
Verdades que preciso encontrar
E para as quais vivo todos os dias
De minha vida.
A poesia me alimenta de esperanças,
Me traz o sonho,
A certeza de que me expando
Nas minhas próprias inquietações.
Reencontro-me nos anseios,
Nas vontades que me transportam
Para os infinitos
E me definem
No tempo, senhor mágico
De olhos grudados na morte.

(XXIX)

Poeta, como é humilde
Teu passeio nesse jardim
De nada feito.
Vejo que o amor
Pelas coisas te uniu
Ao que não sabes,
Te projetou
Para além de ti mesmo.

Tens em ti
O apelo das vozes
Sem ninguém,
A vontade de contribuir
De alguma forma
Para o progresso espiritual
Da humanidade.
És a cor das sombras

Solitárias,
A lúcida vontade
Que perambula
Pelos cantos
Buscando traduzir-se
Na visão sofrida
Dos instantes que nos devoram
Silenciosamente.

(Petrolina, 27/10/2002)

(XXX)

Drummond, amigo,
O mundo se espatifa
A minha frente, demente,
Incoerente.
Velhas atitudes rudes
Dominam a humanidade.
De cidade em cidade,
Pouco se vê a claridade
Da gentileza, da certeza
Por um tempo melhor.
O amor
Ruiu.

Drummond, irmão,
Em mim a dor grita
Inconseqüente, doente,
Ausente
Dos conceitos estreitos.
Possuo defeitos
Que me intranqüilizam, leitos
De um rio sujo, com dejetos
Variados, passando, brando,
Pelo solo incolor
Do torpor
Que me construiu.

(Petrolina, 27/102/002)


(Aroldo Ferreira Leão)


voltar última atualização: 25/03/2004
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