A Garganta da Serpente

André Grillo

  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

A FÚRIA MILIMÉTRICA

Como exprimir o que quer que seja, tocar o que a vista não veja, mergulhar ao cume impensado, enredado ao sentir calculado?

                                                         Em que se espelha o vidro do cetim ríspido e lúgubre da aurora

                                                                                                   que se desfaz

                                                                     ante as bandeiras e lemas da vida que constrange


           e delimita toda sensação ao empunhar da bandeira que o tremor não mais tange,

                                               ao entoar do hinário monocórdico?

                         um colosso de desespero se enreda no vento do nada da luz


não se vê, ouve, cheira ou tateia a forma da musa morta e rechaçada; só, na ruína do que foi seu altar, ela não mais encanta; nem como a meretriz das volúpias que embalam os sonhos e as lascívias....sub-réptico protocolo....o teatro dos sexos nunca se desfaz...se cristaliza em aço ante a musa exilada; não precisa de nada mais além de sua dinâmica de engrenagem bem lubrificada nos moldes do princípio único e abstrato de tudo que há de mais material

a forma vence. Não há mais o que mirar, a luta emerge languida de algozes e martírios, de bufões e delírios. Seus passos rítmicos à luz opaca de um luar eclipsado, à luminosidade do lampião viscoso e elétrico....a sonda busca, o olho cria, o caminho se transforma em gemido regrado e tabulado, nas vias férreas da luxúria maquinal

                         o tiro ao espaço se desfaz e refaz em torpores calculados

                              o místico langor tem a exatidão da fúria milimétrica

límpida como a esfera oculta da lua incandescente, o alvor da crispação obliqua se faz retilínea, se corrobora da insignia da realização.

não há mais vasos.


                         Não há mais vasos onde rebente a música do porvir desfeito


                                                           não há mais vasos

                                  existência morta do pulsar mais profano e casto

                                                             estilhaço gasto


desfaz-se na luxuria venal da imersão oceânica

só há o caminho milimétrico

ah, tatuem em minha testa um compasso, em meu peito um retilíneo brasão, em todo meu corpo a métrica e o cálculo, que já não posso mais

não, não posso mais...             só o compasso pode me unir ao outro, ao nos separar

só separados, milimetricamente, nos podemos ligar

dilacerados, lado a lado, sem nunca nos encontrar, blocos de mármore implodidos no cancro da úlcera que nos une à fita métrica da dança esquelética de corpos que ecoam em suas fronteiras, reverberando-se incessantemente num vazio sem resposta, apenas uma imagem, um contorno, uma faísca, milimétrica, outra faísca, métrica, um dorso analítico conquistado, subjugado e pilhado.

Só nos resta a pilhagem, e nada mais

a pilhagem métrica, e nada mais

o escrutínio penetrante no planejamento inconsciente e exaustivo

ah, dança pierrot, sua dança macabra dos corpos nus, que se chocam sem se tocar, que bradam sem se falar, que se retorcem na mais selvagem cópula milimétrica, analítica, teorética e prolegômena

retorce escaravelho de argila, retorce a loucura mais lógica e coesa, o desvario calculado pelos deuses da lupa e do esquadro

ah batalhas sangrentas da mais milimétrica assepsia


(André Grillo)


voltar última atualização: 31/10/2008
5984 visitas desde 28/07/2005

Poemas deste autor:

Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente