A Garganta da Serpente

Ana de Sousa

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expectativa

não saberia falar das fundações orgânicas dos caules
e nem das pedras que de telhado
se fazem libélulas,
do pernoitar dos dedos azedos de areia
sobre um mar se cinzentos
ou púrpuras penas,
caixinhas de medos,
de onde só gotículas de mim se evadem.

uma vez mais
as rodas enormes rodam, rolam,
giram metros, quilómetros,
distâncias ao som de um tiquetaque surdo,
e afastam-me do ponto de partida,
que escurecido ou obscurecido pelo vidro embaciado, se esquece,
ponto diminuto agora passado.

não o vejo porque olho em frente,
decidida observo o vidro através do vidro e a minha vontade trespassa-o,
estilhaçando-o.

vejo-me correr à minha frente,
acompanhando o vento e chamando-o de contratempo
por ser norte e eu me sentir sul.
bebo-o, insaciável, e retenho-o como alento...
poderia voar!

de repente poderia até aceitar
que aquilo que vejo no horizonte é uma luz,
e que as paredes que embraçam, enlaçam, a minha marcha,
são claustrofobicamente vazias, isentas de vigilância,
e se poderiam chamar de "túnel"... túnel agonia.

sufoco, por minha conta e risco,
na ansiedade de chegar, pertencer
e o tiquetaque...

mas a luz que brilha ao fundo,
no fim do meu caminho aguarda,
presença continua da entrada de minha casa, chamando.

as rodas enormes rodam, giram velozes,
trazem-me e perseguem-me,
e regresso pela circunferência óbvia das milhares de milhas,
a onde parti.

depois de me ter perdido num simples piscar de olhos,
viagem alucinante do respirar, ou inspirar,
quando espreitei a noite entreabrindo a porta
(...estremeço...)
foi o meu espírito que se escapou.


(Ana de Sousa)


voltar última atualização: 08/03/2005
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