A Garganta da Serpente

Alvarenga Peixoto

Luís de Alvarenga Peixoto
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Canto Genetlíaco

Bárbaros filhos destas brenhas duras,
Nunca mais recordeis os males vossos;
Revolvam-se no horror das sepulturas
Dos primeiros avós os frios ossos:
Que os heróis das mais altas cataduras
Principiam a ser patrícios nossos;
E o vosso sangue, que esta terra ensopa,
Já produz frutos do melhor da Europa.

Bem que venha a semente à terra estranha,
Quando produz, com igual força gera;
Nem do forte leão, fora de Espanha,
A fereza nos filhos degenera;
O que o estio numas terras ganha,
Em outras vence a fresca primavera;
E a raça dos heróis da mesma sorte
Produz no sul o que produz no norte.

Rômulo porventura foi romano?
E Roma a quem deveu tanta grandeza?
Não era o grande Henrique Lusitano:
Quem deu princípio à glória portuguesa?
Que importa que José Americano
Traga a honra, a virtude e a fortaleza
De altos e antigos troncos portugueses,
Se é patrício este ramo dos Meneses?

Quando algum dia permitir o fado
Que ele o mando real moderar venha,
E que o bastão do pai, com glória herdado,
Do pulso invicto pendurado tenha,
Qual esperais que seja o seu agrado?
Vós exp'rimentareis como se empenha
Em louvar estas serras e estes ares
E venerar, gostoso, os pátrios lares.
Isto, que Europa barbaria chama,
Do seio das delícias, tão diverso,
Quão diferente é para quem ama
Os ternos laços de seu pátrio berço!

O pastor loiro, que o meu peito inflama,
Dará novos alentos ao meu verso,
Para mostrar do nosso herói na boca
Como em grandezas tanto horror se troca.

"Aquelas serras na aparência feias,
- dirá José - oh quanto são formosas!
Elas conservam nas ocultas veias
A força das potências majestosas;
Têm as ricas entranhas todas cheias
De prata, ouro e pedras preciosas;
Aquelas brutas e escalvadas serras
Fazem as pazes, dão calor às guerras.

"Aqueles matos negros e fechados,
Que ocupam quase a região dos ares,
São os que, em edifícios respeitados,
Repartem raios pelos crespos mares.
Os coríntios palácios levantados,
Dóricos templos, jônicos altares,
São obras feitas desses lenhos duros,
Filhos desses sertões feios e escuros.

"A c'roa de oiro, que na testa brilha,
E o cetro, que empunha na mão justa
Do augusto José a heróica filha,
Nossa rainha soberana augusta;
E Lisboa, da Europa maravilha,
Cuja riqueza todo o mundo assusta,
Estas terras a fazem respeitada,
Bárbara terra, mas abençoada.

"Estes homens de vários acidentes,
Pardos e pretos, tintos e tostados,
São os escravos duros e valentes,
Aos penosos trabalhos costumados:
Eles mudam aos rios as correntes,
Rasgam as serras, tendo sempre armados
Da pesada alavanca e duro malho
Os fortes braços feitos ao trabalho.

"Porventura, senhores, pôde tanto
O grande herói, que a antiguidade aclama,
Porque aterrou a fera de Erimanto,
Venceu a Hidra com o ferro e chama?
Ou esse a quem da tuba grega o canto
Fez digno de imortal e eterna fama?
Ou inda o macedônico guerreiro,
Que soube subjugar o mundo inteiro?

"Eu só pondero que essa força armada,
Debaixo de acertados movimentos,
Foi sempre uma com outra disputada
Com fins correspondentes aos intentos.
Isto que tem co'a força disparada
Contra todo o poder dos elementos,
Que bate a forma da terrestre esfera,
Apesar duma vida a mais austera?

"Se o justo e útil pode tão-somente
Ser o acertado fim das ações nossas,
Quais se empregam, dizei, mais dignamente
As forças destes ou as forças vossas?
Mandam a destruir a humana gente
Terríveis legiões, armadas grossas;
Procurar o metal, que acode a tudo,
é destes homens o cansado estudo.

"São dignos de atenção..." Ia dizendo
A tempo que chegava o velho honrado,
Que o povo reverente vem benzendo
Do grande Pedro co poder sagrado;
E já o nosso herói nos braços tendo,
O breve instante em que ficou calado,
De amor em ternas lágrimas desfeito,
Estas vozes tirou do amante peito:

"Filho, que assim te chamo, filho amado,
Bem que um tronco real teu berço enlaça,
Porque foste por mim regenerado
Nas puras fontes da primeira graça;
Deves o nascimento ao pai honrado,
Mas eu de Cristo te alistei na praça;
E estas mãos, por favor de um Deus eterno,
Te restauraram do poder do inferno.

"Amado filho meu, torna a meus braços,
Permita o céu que a governar prossigas,
Seguindo sempre de teu pai os passos,
Honrando as suas paternais fadigas.
Não receies que encontres embaraços
Aonde quer que o teu destino sigas,
Que ele pisou por todas estas terras
Matos, rios, sertões, morros e serras.

"Valeroso, incansável, diligente
No serviço real, promoveu tudo
Já nos países do Puri valente,
Já nos bosques do bruto Boticudo;
Sentiram todos sua mão prudente
Sempre debaixo de acertado estudo;
E quantos viram seu sereno rosto
Lhe obedeceram por amor, por gosto.

"Assim confio o teu destino seja,
Servindo a pátria e aumentando o estado,
Zelando a honra da romana igreja,
Exemplo ilustre de teus pais herdado;
Permita o céu que felizmente veja
Quanto espero de ti desempenhado.
Assim, contente, acabarei meus dias;
Tu honrarás as minhas cinzas frias."

Acabou de falar o honrado velho,
Com lágrimas as vozes misturando.
Ouviu o nosso herói o seu conselho,
Novos projetos sobre os seus formando:
Propagar as doutrinas do Evangelho,
Ir os patrícios seus civilizando;
Aumentar os tesouros da reinante
São seus desvelos desde aquele instante.

Feliz governo, queira o céu sagrado
Que eu chegue a ver esse ditoso dia,
Em que nos torne o século doirado
Dos tempos de Rodrigo e de Maria;
Século que será sempre lembrado
Nos instantes de gosto e de alegria,
Até os tempos, que o destino encerra,
De governar José a pátria terra.

Eu não lastimo o próximo perigo,
Uma escura prisão, estreita e forte;
Lastimo os caros filhos, a consorte,
A perda irreparável de um amigo.

A prisão não lastimo, outra vez digo,
Nem o ver iminente o duro corte;
Que é ventura também achar a morte,
Quando a vida só serve de castigo.

Ah, quem já bem depressa acabar vira
Este enredo, este sonho, esta quimera,
Que passa por verdade e é mentira!

Se filhos, se consorte não tivera,
E do amigo as virtudes possuíra,
Um momento de vida eu não quisera.


(Alvarenga Peixoto)


voltar última atualização: 06/12/2005
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