A Garganta da Serpente

Affonso Romano de Sant'Anna

  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

O Poeta e a Bala

(para o poeta Álvaro Alves Faria)

Fragmento 1

Pessoas carregam afrontas, remorsos,
outros, dívidas, projetos.
Conheço um poeta que carrega na cabeça
Uma bala viva.

Bala nada metafísica,
não metáfora-espelho,
bala mesmo, explosiva,
no estopim do cerebelo.

Meteu-a lá um ladrão afoito
num de repente furtivo; meteu-a
lá, por nada, por hábito agressivo
num estúpido estampido.

Colocou-a não como se coloca
um livro na estante,
um verso no poema,
na próclise o pronome,
atirou-a como se, no homem, engatilhasse
a bala de um sobrenome.

Atirou-a como a granada
que se recusa a explodir
e fica, não no ar parada,
mas no corpo agasalhada

 

Fragmento 2

O poeta toma seu carro, viaja,
mas nele a bala anda
estacionada.
O poeta ama, troca de cama
e de mulheres, mas nele
a bala passeia
como se na praça passeasse
enamorada.

Ele vai ao médico, tira radiografias
vive perseguindo-a antes que ela,
como um míssel impaciente,
o alcance internamente.

De dia vigilante, acompanha
da bala a metálica sanha,
mas é de noite que, a cabeça na fronha,
o poeta embalado
                          - sonha.

 

Fragmento 3

Desde que me contou sua sina,
que abalado levo na cabeça cativa
a imagem da bala progressiva.
Alojou-se-me no cérebro - a atrevida -,
me persegue e exige que a desfira
num poema como se fosse
uma bala viva.

Nele é fatal a ferida
Em mim, metáfora alusiva.
Nele, é ameaça constante
em mim imagem corrosiva.

Essa bala se parece e é diversa
da bala de Cabral, outro poeta,
passa raspando meu texto,
contudo, é mais real.

Anos muitos se passaram:
penetrei cabeças, assaltei afetos
e atirei a esmo meus poemas
em gavetas e mulheres,
mas a palavra do poeta,
em mim ara inquieta.

Só me resta um recurso:
alojá-la na escritura,
atirá-la no leitor
na espera que essa bala
na leitura que o outro faça
prossiga sua acentura.


(Affonso Romano de Sant'Anna)


voltar última atualização: 02/09/2010
14970 visitas desde 01/07/2005
Que tal comprar um livro de Affonso Romano de Sant'Anna?


  • Antes Que Elas Cresçam

  • Barroco - do quadrado à elipse

  • Com Clarice

  • Drummond: o Gauche no Tempo

  • Entre Leitor e Autor

  • Os Melhores Poemas De Affonso Romano Sant'anna

  • Música Popular e Moderna Poesia Brasileira

  • Poesia Reunida 2005/2011 - Vol. 3

  • Porta de Colégio e Outras Crônicas

  • Sísifo Desce a Montanha


Poemas deste autor:

Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente