"Com o que não te digo/
Teço um enigma/
O que digo sempre/
Nega o evidente(...)"
Inconfesso, Antonio Mariano
In, Guarda-Chuvas Esquecidos
Editora Lamparina
Para falar do novo livro do escritor paraense radicado em Taubaté-SP,
Nicodemos Sena, "A Mulher, o Homem e o Cão" (Ed. LetraSelvagem,
2009, Coleção Gente Pobre, 152 pág.) não teria como
não me reportar ao sucesso que foi a portentosa obra "A Espera do
Nunca Mais" (Ed. Cejup, 1999), um caudaloso romance elogiado pela crítica,
"que faz meio-termo entre ficção e realidade (...); alto
estilo, demonstrando vigor e consciência estética(...)", segundo
Ronaldo Cagiano (in Opção Cultural). A amazônica como um
todo, resgatada e retratada, do rural-agreste e ermo aos 'anos de chumbo' da
ditadura militar (o escritor é um retratista de seu tempo e das amarguras
de seu tempo?), no letral, literal, e lítero-culturamente sob todos os
aspectos. "Uma aula de Amazônia (...)", diz Oscar D'Ambrosio
(in Caderno de Sábado, Jornal da Tarde).
Coloco pra mim, entre os dez melhores romances brasileiros, não necessariamente
numa ordem linear, "Dom Casmurro" ( Machado de Assis), "Grande
Sertão: Veredas" (Guimarães Rosa), "Vidas Secas"
(Graciliano Ramos), "Incidente em Antares" (Érico Veríssimo),
"Crônica de Uma Casa Assassinada" (Lúcio Cardoso), "Macunaíma"
(Mário de Andrade), "O Cortiço" (Aluisio de Azevedo),
"Dona Flor e seus Dois Maridos" (Jorge Amado), "O Cais da Sagração"
(Josué Montello), e, entre todos os do Autran Dourado (que é ótimo
em tudo o que escreve), o recente romance "A Mulher, o Homem e o Cão",
de Nicodemos Sena, certamente o maior romancista brasileiro contemporâneo,
pouco pop e naturalmente muito cult, diga-se de passagem.
Como gosto de ler um livro de fio a pavio (e nas entre/linhas), como se comesse
uma iguaria pelas beiradas, defeito-qualidade de um glutão de letras
e gastronomias de quilate, já sondei a orelha de um dos maiores críticos
brasileiros de todos os tempos, o Oscar D´Ambrósio, que aponta
Nicodemos Sena como um grande contador de histórias com mitos que se
cruzam com o mundo fantástico do autor, acordando o gigante adormecido
da capacidade de raciocinar enquanto ser humano (picadeiro de dilemas, enigmas
e desafios do verbo existir). Vá vendo. Quero dizer, vá lendo.
Deguste.
Depois, o prefácio da doutora Christina Ramalho (UFRJ), que nomina a
obra como um "... caleidoscópio com tantos significados próprios,
metamorfoses sobrenaturais plurissignificativas (...)." A floresta invadindo
a obra do autor, que deixou a Amazônia, mas a Amazônia não
o deixou, ou seja: vai com ele por onde ele for, sendo ele, é ele, selva-metáfora,
o homem em busca de si mesmo, na selva urbana exaurida, dentro de si, no escre-Viver.
Por aí.
No posfácio, Dirce Lorimier Fernandes (doutora em História e da
APCA), fala do rico mundo encantado de criação, mistérios
e encantamentos na obra de Nicodemos Sena. A inutilidade da existência
(por isso escrevemos, criamos, deixamos nosso documento-identidade em sons,
palavras, símbolos, crenças, devaneios, enigmas e artes loucas?).
O autor rasga o véu da alma-mente-espírito, e numa treva branca
destila-se, o tudo sentir, o sobre/Viver. Eis o homem.
Por fim - antes de entrarmos nos ramos qualificados da obra propriamente dita
- uma surpresa: Um pós-posfácio do próprio autor (Acerca
de "A Mulher, o Homem e o Cão"), falando de seu solilóquio,
monólogo interior, desconfianças; encerrando assim: "...
basta dizer que a selva, onde vivem as personagens (e onde eu nasci), é,
no livro (...) apenas a metáfora de todas as solidões terrenas".
Lindo.
O romance-livro realmente é de linda floração cultural
e envergadura literária (qualidade técnico-editorial de primeira,
capa de James Valdana, desenho de capa e miolo Olga Savary); de se pegar e não
largar mais. Cativador na elegante fruição, entre subidas e descidas
aos céus (todos os céus, não se sabendo se o céu
- qualquer um - veio até Nicodemos ou ele é que foi até
ele). Elogiado pela crítica especializada, esse autor paraense tem um
jeito todo próprio de narrar, ir e vir nas orações, levar
e trazer o leitor, cativando, encantando, sacudindo-o. Grande estilo.
Aqui e ali, um personagem (personagem?) meio malazártico, numa narrativa
bem macunaímica, sua narrativa às vezes nos remetendo à
literatura fantástica (personagens bizarros até), de um anarquista
misterioso, estilo utópico, B. Traven (Chicago 1890, México 1969),
que teve na sua obra, como pano de fundo, a floresta mexicana ("O Visitante
Noturno" entre outra criações de relevo), ficando um triângulo
de Nicodemos Sena entre Macário de B. Traven, Macondo (de Gabriel Garcia
Marques, do qual Nicodemos carrega aqui e ali parecenças) e o "espaço"
floresta amazônica no livro, um não-lugar, um lugar-nenhum-todo-lugar/qualquer
lugar, ele mesmo, o autor, Nicodemos Sena impregnado de talento, criatividade
e técnica densa de narrar com veias e variações, as propriedades
e impropriedades de suas origens, raízes, matrizes, mãe(s)-Terra/rio.
O fado do destino humano sujeito a incongruências mesmo... Será
o impossível?
Sim, a nova obra do autor, "A Mulher, o Homem e o Cão", tem
o sígnico da relação homem-terra, homem-rio, homem-celestidades,
homem-demônios (e fantasmas) da terra, rio (e céus?); triângulo
com o macho, a fêmea e o sobrenatural. Paradoxalmente ao que o próprio
autor diz no livro (pág.25), é na escreveção que
os homens sensíveis se refugiam da loucura. A loucura é santa?
"Deus usa os loucos para confundir os sábios?".
Coisas visíveis e invisíveis se metamorfoseiam nas narrativas
cativantes, só que o leitor tem que estar bem enlivrado, por assim dizer,
para ir, aqui e ali, sacando inteiro e completo, recebendo outro novo inédito
enfoque concomitante ou adjunto (histórias na história), a árvore-janela,
o cão-passarinho, o homem-peixe, o Deus que não é deus,
o enlevo, a catarse, o onírico, colheitas de mitos retraduzidos e retrazidos.
E o autor diz na contação da recontação literária
em graça de prosa poética:
"É esse, senhor, o efeito do espanto: o espírito esforça-se
por estabelecer uma relação, uma ligação de causa
e efeito, mas, achando-se impotente para consegui-lo, sofre uma espécie
de paralisia momentânea, e, tão logo se recupera do assombro, sente
crescer dentro dele gradualmente uma convicção que clareia a mente
e impulsiona o corpo (...). -Roubaram-nos a alma, agora tudo está encantado!"
A mulher-porca, as canoas de serpentes, o rio margem e beira (loucura-lucidez),
tudo ciciando devaneios, registros, despojos letrais, acercamento. O rio de
nossa infância, nossa origem, anda conosco, viaja conosco, sofre vazamentos,
seca, aflui, tem sua derrama espiritual? O domador de mentes o que é?
Ladrão de mulher, diria o mote popular parafraseado de um ente de circo.
Livro de peso que tem névoas clarificadas. Que dá gosto ler. Que
se passa daqui prali, num sem-pulo, de um tópico frasal para outro, levando
e trazendo o leitor boquiaberto, seduzido sim, onde a voz ora é de um
(uma), ora de outro (outra... criaturas...). O autor costurando o xale de sua
áurea-aura-halo. Incompletudes. Desabandonos. Desespelhos.
Na alegria e na tristeza, na fome e na dor... como um casamento do autor com
o dom, a sua terra, o seus rios (lacrimais), agonias, angústias, causos
do arco da velha vêm inventariados, inverdades, não mentiras, o
próprio ofício de criação com iluminuras de espectros,
ressentimentos, passados, transcendências, travessias, veios, cisternas,
corredeiras, jorros; palco iluminado para dar voz e vazão a seres e não-seres,
num imaginário pra lá de espetacularmente rico, portentoso.
Aqui e ali, paráfrases bíblicas bem situadas (há um Deus),
narrativas que lembram recorrências de um Jó bíblico negando-se
a si mesmo sem negar o Criador, chuvas, nuvens, paragens, afogadilhos e afogados
com lanternas, o repugnante e o sagracial, e entra no historial das contações
com barulhanças e tristices, de Nero a Hitler, passando por Herodes,
aqui e ali tentando um sentir imenso a partir de um nada sentir (o autor ficou
doente depois de escrever o livro?... Mistério... Lenda...).
Os sobre-humanos estão nas páginas do livro, nas páginas
de rostos-purgações, de restos-retalhos-retratações-partilhas
(histórias do ouvi-dizer, ouvi-viver), ou na própria concepção
magistral como um todo da obra?
Pois é: eis a obra, eis o autor, e, cá entre nós, eis uma
tentativa de resenha crítica de quem se apaixonou pelo romance "A
Mulher, O Homem e o Cão".
Aliás, falando sério, qual dos três (entre tantos) personagens
do tema-obra gostaria de escrever uma história assim?
Nunca se sabe o desfecho de uma fábula. Leia e deguste.
A Mulher, o Homem e o Cão
Autor: Nicodemos Sena
Editora LetraSelvagem
152 páginas
2009
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