A Garganta da Serpente
Entrevista com Cobra entrevista com nossos autores
Entrevista com:

Ricardo Corona

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- Ricardo Corona -

Entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão nosso habitante para o Balacobaco


Ricardo Corona nasceu em 1962 em Curitiba/PR, onde vive. Na década de 80 residiu em São Paulo/SP, onde cursou comunicação na Febasp (1987). É autor de "A", plaqueta de poemas e desenhos eróticos, em parceria com Said Assal (SP, ed. Arte Pau-Brasil, 1988), O sumiço do sol, livro infantil, em parceria com Eliana Borges (Curitiba, ed. Arco- Íris, 1993) e Cinemaginário, poemas (SP, ed. Iluminuras, 1999). Em 1996/97, junto com o guitarrista Johnny Tequila apresentou em bares e casas noturnas o show poético-musical Poesia'n'roll. Em 1998, organizou a antologia bilíngüe Outras praias - 13 poetas brasileiros emergentes / Other Shores - 13 Emerging Brazilian Poets (SP, ed. Iluminuras). Traduziu poemas de Gary Snyder, Baraka, Ginbsberg e outros. Atualmente prepara o CD de poesia Ladrão de fogo e edita a revista bimestral de poesia e arte Medusa.

Por que demorou a lançar seu livro? Como é a sua relação com o tempo e a maturação do material poético?
Hans Haacke diz que "os produtos artísticos não são unicamente um meio de se fazer um nome". Não tenho simpatia pela idéia de individualização da poesia e acho estranho a presença de um poeta de plantão para cada região do país ou para cada segundo caderno de um grande jornal. Gosto de fazer parcerias e sentir-me atuando no "tecido" da poesia, da cultura. Talvez por isso tenha lançado só recentemente meu primeiro livro individual de poemas Cinemaginário.

Em 1988, saiu o livro de poemas e desenhos eróticos "A", uma plaqueta impressa em serigrafia, quatro cores, que é uma parceria com o artista plástico Said Assal. Em 1993, O sumiço do sol, livro infantil em parceria com a artista plástica Eliana Borges. Em 1994, o livro-objeto Bem feito pra você, uma coletânea de fotos e poemas e também uma parceria com o fotógrafo Chico Link e o poeta Flavio Stankoski. Em 1997, Eliana e eu organizamos duas antologias de poesia, desenho e prosa infantis chamadas "Tirando de letra - poemas e desenhos infanto-juvenis" e "Sopa de letras - poemas e desenhos infantis".

Mas nunca me propus a colocar muitos poemas em livros de parceria. Quis mostrar aos poucos. Em "A", participei com apenas com nove poemas, que se somaram aos três desenhos do Said. Nossa proposta não era encher um livro de poemas e ilustrá-lo com alguns desenhos, mas colocar duas linguagens num mesmo suporte e com a mesma importância. Em "Bem feito...", pelos mesmos motivos, participei com apenas seis poemas.

Em 1998, organizei a antologia bilíngüe Outras Praias / Other Shores, uma seleção de 13 poetas representativos da produção dos anos 90. Esta antologia teve colaborações expressivas de poetas e professores brasileiros e americanos: Charles A. Perrone, David William Foster (EUA), Ligia Vieira Cesar, Antonio Risério, Jaques Mario Brand, Maurício Arruda Mendonça (Brasil). Em 1998/1999 (que se estenderá até março de 2000), a revista de poesia e arte Medusa, de periodicidade bimensal, que está em seu sétimo número e irá até o décimo. Medusa é um projeto elaborado em parceria com os artistas plásticos Eliana Borges e Key Imaguirre Jr., e os poetas Ademir Assunção e Rodrigo Garcia Lopes.

Com a revista e a antologia, aquele princípio coletivo em plano poético, ficou ainda mais forte, mais atuante. Por mais que exista um grupo aqui, outro acolá, a cena é dispersa e o que se vê são "nomes" que puxaram para si o saldo de movimentos literários de décadas anteriores, de períodos de extensa e intensa produção coletiva. Acho que é o tempo certo para projetos como antologias e revistas. A areia da ampulheta deste século/milênio está se esgotando e publicações assim têm um papel histórico importante. Ainda mais num tempo confuso como o nosso, de privatização poética, promovida, em parte, pela grande imprensa e pelas grandes editoras, mas, principalmente, por poetas que se auto-elegem cronistas de época, disseminando seus conselhos e passando a falsa idéia de que a poesia pertence a uns poucos privilegiados. Esquecem que é uma das linguagens mais antigas do ser humano, que pôde se manifestar, por exemplo, num índio da tribo Yãnoman de cinco mil anos atrás e que sequer conhecemos. A poesia, a arte em geral, é maior do que essa política de personalidades. Sou contra essa idéia de funilamento, me irrita esse filtro... Quero pensar também o tropicalismo de Tom Zé, o concretismo de Pedro Xisto, etc. Cadê a obra de Pedro Xisto? No meu entender, Pedro Xisto fez o caminho inverso e sua pesquisa é fundamental para se compreender melhor aquele movimento. O material que ele utilizou, partia da concepção do artista plástico em direção à poesia e isso faz com que seus poemas visuais contenham outros desdobramentos, outros resultados gráficos no seu designer da linguagem, etc. Nele, havia a simbiose de artista plástico e poeta que lhe conferiu uma poesia concreta singular. E quase ninguém conhece ou lembra de Pedro Xisto...

É através de revistas e antologias que se pode haver com essas diferenças que a história ou as políticas culturais acabam soterrando. Esse é um dos papéis históricos que uma revista pode e tem que fazer. Com elas, se pode interferir no leque de referências e com a autonomia crítica que boa parte da grande imprensa já perdeu. Uma revista serve para isso. Além de poder atuar de maneira sistemática na inclusão de novos autores. Além de estar em permanente diálogo com outras linguagens, como a fotografia, as artes plásticas, a música, o teatro, etc.

São esses os motivos mais fortes que me fizeram optar pelas publicações coletivas antes mesmo de sair com um livro individual. Depois vieram outros, que são aqueles que qualquer poeta enfrenta: a falta de interesse das editoras e o processo de maturação, de "pensar" um livro de poemas. Dito isto, posso crer que o tempo não me vem de forma abstrata. Ao contrário, sempre me pareceu uma máquina que imprime a ruga.
Você classifica Cinemaginário como o "cinema dentro do poema" mas não utiliza outros elementos (cinematográficos) fora da linguagem poética. Como definiu este tipo de estética? O "cinema mental" que me atribuí é o livre fluxo da minha imaginação. Utilizei-me, sim, de técnicas de colagem, montagem, grande angular, zoom, cortes, closes, etc. Mas é bom acrescentar que esses procedimentos estão a serviço do que os poemas têm a dizer. alternar climas e alterar o tempo no/do poema. Sei que esses procedimentos estão presentes no cinema, num filme de Tarkovski, por exemplo, mas também sei que eles não são propriedades exclusivas do cineasta. São, antes, de nossa tela interna, à maneira de Ítalo Calvino, quando diz que a imaginação é cinema antes mesmo de o cinema ser inventado. Enfim, dei-me liberdade, escolhi as regras, meus interlocutores e fui ao cinema "Imaginação". Leminski é uma angustiada influência à moda Harold Bloom? Como dialoga com a obra do poeta mais cultuado do Paraná?
Leminski é uma referência não só para os poetas do Paraná, mas de todo o Brasil. No meu caso, o diálogo é pensado a priori, para que minha poesia não caia na mera repetição de sua dicção, que é uma das mais fortes que conheço. Quem quiser se propor ao diálogo com a poesia deste poeta, tem que evitar o efeito "zelig", a contaminação excessiva e imediata ao ponto de sua poesia ficar parecida com a dele. A poesia de Leminski, em certo sentido, é um vírus. Penso ter escapado disso ao perceber que quase toda sua poesia contém o exercício da logopéia ("a dança do intelecto entre as palavras") e escolhi "exagerar" no exercício da fanopéia ("um lance de imagens sobre a imaginação visual"). Só isso, que é um pequeno desvio de rota, faz com que não me sinta encalacrado, nem apenas repetindo a dicção leminskiana, mas, sobretudo, se deixando influenciar na mesma medida em que se vai conquistando diferenças. A imagem, que é a proteína do meu "cinema mental", em Leminski, aparece minimizada pela qualidade superior de sua retórica. Mesmo num haicai, onde a imagem é tudo, há uma identificação imediata desta retórica. Bem, considerando que foi um dos poetas mais preparados de sua geração, já é muito não repeti-lo e ser - ao mesmo tempo - influenciado. Adquiri o vírus, mas também o anticorpo.
Como a poesia paranaense está enquadrada no contexto brasileiro?
Já foi dito que o Paraná está ainda construindo sua história cultural. Entenda-se "construindo" como um legado à disposição, que possa ser uma afirmação positiva, permanente. Tradições assim não nascem da noite para o dia. Isso demanda muito tempo e o Paraná é um estado extremamente novo, recente. Seria injusto compará-lo a Rio Grande do Sul ou a Minas, por exemplo. Guardadas as proporções, acho que estamos bem representados, com poéticas como as de Dario Veloso, Emilio de Menezes, Paulo Leminski, Alice Ruiz, Helena Kolody, Rodrigo Garcia Lopes, Josely Vianna Baptista, Maurício Arruda Mendonça, Marcos Prado, Jaques Mario Brand, etc. Isso sem citar artistas que estão produzindo nas áreas de artes plásticas, cinema, teatro, etc. Na prosa, em especial, vejo um fenômeno interessante, que é a velocidade com que se está acumulando narrativas que trabalham bem a linguagem. Se você analisar, num espaço de tempo de três décadas, apareceram autores que fizeram "prosa de arte", na expressão de Augusto de Campos. Refiro-me a Paulo Leminski, Valêncio Xavier e Wilson Bueno. São apenas três autores, mas, como disse, apareceram em espaço de tempo curto - e esse dado é importante quando se trata de literatura de invenção. O Catatau, de Leminski, é 1975, e é uma prosa experimental, um "romance-idéia" que está em igual importância com outros romances de invenção brasileiros, como Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, por exemplo. O Mez da Grippe, de Valêncio, é de 1981, e é uma "novella visual" que, na minha opinião, é uma confluência de códigos que está ainda por merecer classificação apropriada. E o Mar Paraguayo, de Wilson Bueno, é de 1992, e é uma prosa neobarroca abismal, construída no entre línguas, um disparate de ousadia... Só posso concluir que nossa contribuição vai bem, obrigado. E nem mencionei Dalton Trevisan...
Em Cinemaginário a Lua está em diversos poemas, inclusive uma parte com a denominação LUNARES. Qual a representação, o sentido e o por quê deste lugar de destaque em sua poesia?
Depois que o homem foi à lua, tenho a sensação que ela virou um bairro do nosso planeta, uma espécie de periferia estelar. Ainda me interessa, em poesia, destruir a decantação romântica da lua, através de uma idéia de contaminação, utilizando-me de descobertas e referenciais científicos, que a materializaram, que a transformaram em algo mais real. Quis conversar com a lua simbolista e zombeteira de Jules Laforgue, a lua muda de Leopardi. Da minha parte, entrei nessa conversa com minha lua-chão, palpável, como também foi a de Armstrong - sua experiência ainda me soa fantástica - que reaparece no poema "via-láctea via língua", numa inversão no modo de olhar (romântico) para a lua (inatingível). No poema, tem-se a sensação de estar "pisando" no universo e, de lá, observando a terra:

via-láctea via língua
eis minha viagem
o quasar mais além
vai estar quase ali
o planeta terra
pingo no meu i
ponto na frase que se encerra

Em outro poema, "Ondas na Lua Cheia", valorizo os efeitos lunares verdadeiros e os utilizo como metáforas para o intertexto, etc.:

ONDAS NA LUA CHEIA
(poema sob influência)

A lua que tudo assiste
agora incide

O mar
- sob efeito -
ergue-se
crispado de ondas espumantes

Sua língua de sal
lambe e provoca
as escrituras da areia firme (...)

"Lunares" também se manifesta na contrapartida de poemas "solares" de dois poetas que sempre me interessaram: Paulo Leminski e mais recentemente, Rodrigo Garcia Lopes. Em Leminski, apenas um verso: "nada que o sol não explique" e em Rodrigo, nos poemas de seu livro Solarium. Fechei o conjunto de "Lunares" pensando exatamente nesses dois poetas. Não que meus poemas tenham sido feitos a partir daqueles, pois já estavam escritos antes de eu perceber essa relação. Agrada-me a idéia poundiana de poder escolher meus interlocutores. Pound dizia ser preferível eleger contemporâneos para uma "conversa poética" do que autores já canonizados. Veja no que deu:
E NÃO EXPLICA

Praias -
eu as invento
à luz da lua alta
luz borrando zênites

A paisagem, menos
narcísica

O vento
as nuvens
- leveza -
abrindo sentidos vitais

Você nem percebe
râmulos aquáticos nascem corais

À noite,
a lua chama para si
toda possibilidade de luz

- depois, deita-se
E não explica
A segunda parte do livro é pontilhada de haicos. Há algo que só pode ser dito num haicai?
O haicai, na tradição japonesa, como se sabe, era (e ainda é) escrito num contexto de diário, de viagem, de experiência, de busca do satori. Não sou um haicaísta, mas sempre gostei de praticá-lo involuntariamente. Os haicais que aparecem em Cinemaginário estão ocasionalmente "incorporados" a outros poemas. Tem um ou outro isolado, mesmo assim, não seguem nenhuma métrica. Quis assim porque os aproximo da idéia central de Cinemaginário, pelo que tem de montagem, do olho editando imagens, etc. e podem ser apreendidos como qualquer outra imagem solta. Eles estão servindo aos poemas como um fotograma serve ao cinema. Acho que consegui me livrar da rigidez da métrica japonesa e dar continuidade a uma outra tradição brasileira de haicais "infiéis".
"Para que as musas se movam/ e tudo o mais também ganhe movimento/a paisagem passa pela paisagem." Onde estava quando escreveu "Passagem"?
Estava em Curitiba, num dia em que uma tempestade de quinze minutos invadiu o atelier de minha mulher, Eliana. O poema "Passagem" fala disso, ou seja, de uma tempestade que se arma no Sul, passa por Curitiba e vai desaguar no Rio de Janeiro. Na época, estava totalmente envolvido com um texto chamado "A estética do frio", um poderoso imaginário desenvolvido pelo músico e escritor gaúcho Vitor Ramil. Escrevi os poemas "Passagem" e "Miss Tempestade" depois de tomar contato com esse texto, depois de reler com atenção a ficção Fragmentos from Cold, de Paul Auster e também depois da enchente ter inundado o atelier. Uma tempestade não contemporiza, não faz acordos e concessões e isso que me fascina.

O mais curioso é que isso já estava se manifestando na minha poesia, pois "Paisagem Narcisista", outro poema que desconstrói a "estética do calor", porque expõe a paisagem tropical ao exagero, foi escrito antes que tivesse contato com esses dois autores que já estavam "tramando" um imaginário que faz sentido aqui no Sul do país. Gosto dessa idéia de afirmação da diversidade, pelas vias da contradição, da oposição. O estranhamento disso tudo é que é comum ouvir do curitibano que um pinheiro do Paraná não se pode transplantar. Se isso for verdadeiro, que eu acho que é, então há uma contrapartida através do nosso clima. Basta que Curitiba encontre sua porção Sul e também influencie culturalmente Sampa e Rio como uma frente fria influencia. Quero falar disso também, até que soe com naturalidade, como é normal ouvir nordestinos e baianos falando de suas características. O genial é saber que somos todos brasileiros, pertencentes de uma cultura polimorfa, multiforme, heterogênea e antropófaga.
No poema "e o amor/não é maior/nem menor/que o mar" Qual o lugar que a lírica amorosa ocupa em sua poesia?
"Na margem de todas as coisas: uma canção" veio a partir de uma experiência numa praia de Santa Catarina. Estávamos, Eliana e eu, prontos para voltar para São Paulo - na época morávamos em Sampa -, não tínhamos dinheiro, nem trabalho, nem nada e com filho pequeno... Estávamos na condição de esquecidos, de humilhados e falávamos da importância do amor, enquanto a barra pesava, no sentido que teríamos que voltar e encontrar a geladeira vazia. Estávamos nos sentindo à margem do sistema e nas delícias de uma praia - que é uma margem física - e falando de amor... Então o que eu posso lhe responder? O verso que você cita na sua pergunta: "e o amor/ não é maior / nem menor / que o mar", vem daí. Quis pegar esse sentimento e dar-lhe uma medida: o mar. Por isso a citação de "When I heard at the close of the day", de Walt Whitman.

Algum tempo depois, quando retomei o poema, percebi que ali estavam os quatro elementos: água, terra, fogo e ar. Com o uso do olho em movimento, que vai editando imagens, que é próximo do método cut-up, de burroughs, fiz o poema. Numa leitura atenta, as duas colunas ("margens"?) que dividem o poema, abrigam os quatro elementos: ar/terra, de um lado, e água/fogo, do outro, através de palavras correlatas: "vento", "pedras", "ondas", "atrito", etc.
"como as pedras duras/um dia nascem dunas". O tempo em sua poesia provoca rugas e modifica esteticamente os elementos de seus poemas. Haveria civilização sem o conceito de tempo? O tempo é sempre perda?
Como disse, meu conceito de tempo não é abstrato. Nem linear. O tempo imprime, marca, transforma e eu o vejo nas coisas. "O tempo não pára".
"OS HOMENS SÃO TODOS IGUAIS" é um poema piada? Fale sobre.
Pode ser, mas não foi o que mais me motivou a escrevê-lo. Claro, tem o humor dos poemas-piada de Oswald. Mas não pensei nisso. Sou mais devedor à charge, ao cartum e ao quadrinho. "Os homens são todos iguais" tem marcação rítmica da fala dos roteiros de histórias em quadrinhos, que é feita de uma mistura de respiração nervosa com humor. Na gravação deste poema para meu CD de poesia Ladrão de fogo, incluí risadas e cochichos. Acho que ficará mais evidente esse modernismo que você vê e que sequer pensei ao escrevê-lo. Se for um poema-piada, na gravação, virou um poema-risada.
Qual a sua relação com a mitologia grega e egípcia? Que elementos destas culturas são matérias de seu trabalho?
Leio sobre as mitologias (grega, iorubá, egípcia, etc.) como vou ao cinema. Mutação. Alucigenia. Obra aberta. Movimento. Imaginação. Etc. Se são conteúdos para minha poesia? Qualquer assunto é um ótimo assunto, desde que a poesia esteja presente.
Você colocou notas no final do livro. Ainda não se arrependeu?
Não. Notas atrapalham quando "explicam" o poema ou quando o autor se vale delas para tornar público alguma correspondência particular que pouco interessa ao leitor. No meu caso, estão funcionando como créditos que até seria desonesto não serem atribuídos. Refiro-me a diálogos com filmes ou quando aconteceu alguma parceria de trabalho. Também usei notas para dar significado a algumas palavras Sestranhas", como por exemplo, "Tunguso-manchuriana". Ninguém é obrigado a saber o que isso significa. Mas note que os poemas sobrevivem bem sem as notas. E isso é uma nota à sua pergunta...
Segundo o poeta Italo Moriconi há uma vertente "esteticista, representada por poetas como Carlito Azevedo, Claudia Roquette Pinto, Nelson Ascher, Josely Vianna Baptista, o Jorge Lúcio. De maneiras muito próprias, podem ser incluídos nessa vertente poetas como Paulo Henriques Britto e Lu Menezes. A outra vertente seria uma vertente neoconservadora, metafísica, representada por Alexei Bueno, Bruno Tolentino, Marco Lucchesi. Talvez Ivan Junqueira se encaixe desse lado. Paralelamente a isso, existe um aprofundamento e diversificação da vertente feminista/feminina, com a própria Claudia Roquette Pinto, Clara Góes e muitas outras. E como emergência temática marcante nesses anos 90, aparece a poesia gay, que é um belo rótulo, mas que eu prefiro chamar de homoerótica masculina. Nessa nova voz, incluo-me eu mesmo (Italo), e poetas como Antonio Cicero e Valdo Mota, mas nós 3 temos abordagens bem diferentes, que qualquer leitor poderá verificar por conta própria. " (A gente pode diminuir mas tive que citar para você ler, certo). Em qual destas vertentes se enquadra. Qual escolheria?
Aqui perto da minha casa tem um boteco que serve vários tipos de cachaça. Não vejo problema algum nessa diversidade de destilados. O problema começa quando algum freqüentador, que ainda não descobriu a arte de beber, fica insistindo que alguém beba do seu copo porque acha que a sua bebida é melhor... Esse sujeito normalmente é o chato do pedaço.
Você não parou no livro e vai lançar um CD de poemas. Fale sobre este novo projeto?
Ladrão de fogo é um CD em que serão gravados trinta poemas meus com acompanhamento musical de quatro instrumentistas. Os poemas não serão cantados, ou seja, não serão transformados em letras de música ou canções. Ao contrário, serão gravados com entonação de récitas para ficar mantidas as sonoridades e ritmos internos próprios da poesia e que muitas vezes são intransferíveis.

Têm vários anos que venho realizando récitas em teatros, bares, praças, livrarias, casas noturnas, etc. e com a gravação deste CD estou tendo um aprendizado e uma motivação ainda maiores. É um aperfeiçoamento de experiências e isso é ótimo. No Brasil é bem pequena nossa tradição de poesia gravada, se comparada à dos americanos, por exemplo. Então, há uma inquietação da minha parte, por perceber que este é um caminho que minha geração pode seguir, interferir.

Inicialmente, com os poetas provençais, entre os séculos XII e XIII, no sul da França, se inventou um diversificado repertório de formas e estilos, que, segundo Augusto de Campos, vão do trobar leu (a poesia leve) ao trobar clus (a poesia hermética) e ao trobar ric (a poesia rica ou rara), com equilíbrio perfeito entre poesia e melodia. Mais recente - para ficarmos com exemplos da antigüidade e de agora -, a experiência dos poetas Beats, nos EUA, que está na base do surgimento do rock'n'roll.

Os poetas brasileiros sempre foram tímidos nessa área, mas com as novas mídias, que facilitaram o registro oral da poesia, eu acho que será um caminho inevitável. Hoje podemos experimentar mais e, quem sabe, alimentar um gosto, um costume de se "ouvir poesia", que é uma coisa distinta de se "ler poesia". Para entender melhor o que estamos perdendo, basta ouvir (ler também, claro) "The Ballad of the Skeletons", de Ginsberg.
A revista Medusa é outro projeto seu. Fale sobre?
A revista Medusa não é um projeto só meu. Ela foi criada em parceria com a artista plástica Eliana Borges e os poetas Ademir Assunção e Rodrigo Garcia Lopes. Lembro-me de quando nos reunimos aqui na minha casa, em Curitiba, onde discutimos o projeto poético e artístico de Medusa. Isso depois de centenas de e-mails e telefonemas. Um quebra- pau danado. Lembro-me também que tinham três nomes na mesa. "Calibán" (depois saiu uma revista carioca com esse nome) sugerido por Rodrigo, "Canibal" por Ademir, e "Medusa", por mim. Quando o núcleo editorial da revista estava formado, fizemos uma votação e "Medusa" ganhou. Os três nomes eram fortes e bastou uma votação para resolvermos. A partir daí, o mito/mote se desdobrou em várias idéias-valise, funcionando como impulso para nosso projeto de revista. A idéia de subconsciente popular, defendido para a mitologia, prevaleceu. Todos tinham uma metáfora medúsica na cabeça. Fizemos/fazemos disso uma espécie de mitocrítica. Como por exemplo: as várias cobras da cabeça de Medusa - e agora me refiro ao mito - me parece ser a leitura, ou o ícone, mais acertado para uma época que se afirma pela diversidade: cada cabeça uma sentença, cada língua um veneno, etc, e, tratando-se de cobras, não há dúvidas de que o que se coloca é a diferença, a vitalização do que é dessemelhante, contraditório, etc. O fim do período utópico das escolas literárias de vanguarda colocou-nos algumas questões: Como pensar uma revista, que é, necessariamente, um projeto coletivo, em tempos de diversidade? Como não cair no mero ecletismo? E como trazer o coletivo para uma revista sem adotar a visão diminuidora de alguns críticos sobre a cultura feita nos anos 80/90? Conheço algumas revistas que já no título entregam sua baixa auto estima. Medusa não. Medusa é uma mulher com cabeça de serpentes! É um mito forte, polêmico, feminino e que teve seu nascimento vaticinado pela coragem de blasfemar. Disse Medusa: "Eu sou mais bonita que as deusas do Olimpo!" e Zeus a transformou em criatura horrenda. São muitos os motes que este mito nos dá para meter cobras e visões na babel contemporânea. O olhar petrificador (paralisador) do mito Medusa, na revista, transmuta-se em visão aprofundada de determinada obra. A cada edição, "petrificamos" um poeta recente, com miniantologia de sua produção, o que significa mostrar densidade contra a idéia de ecletismo que corriqueiramente tem-se apresentado por aí, com mosaicos de poetas e poemas. Não acreditamos nisso. A época pede densidade para a diversidade. Na revista, esse conceito também se manifesta nas grandes angulares (também chamados "dossiês") que costumamos fazer com determinado artista que tenha uma obra extensa e ainda pouco difundida. Neste caso, apresentamos uma miniantologia de seu trabalho, ao lado de entrevista, ensaio e fotos. Enfim, "petrificamos" criticamente o trabalho/pensamento/processo de criação de determinado artista. Com isso estamos interferindo diretamente no leque de referências.
A revista Veja publicou uma matéria em que ridiculariza os poetas cariocas e em matéria diz ironicamente que os poetas "(...) quem diria! ainda existem". Como encara a "polêmica"? Será que a matéria acaba com o marasmo? Engraçado, mas achei que a matéria é que auto- ridiculariza a revista, pois tratou o assunto poesia como modismo, comportamento de época, etc. Isso acabou ridicularizando tanto o jornalista que a escreveu como a revista que o publicou. Como encara a internet e os novos meios de divulgação. O livro acaba?
Na minha opinião, essa discussão de o livro acabar já foi problematizada e também resolvida, exaurida. Mas vamos lá: A invenção do cinema não ia acabar com o teatro?, a tv não ia acabar com o cinema?, e agora net vai acabar com o livro?! Não seria linear demais? Acho mais interessante pensar que a internet é o meio de comunicação que mais materializa nosso subconsciente mundial. A partir daí, abre-se uma discussão sobre liberdade de expressão, ética, censura, serviço público sem burocrocacia, etc. Tenho certeza que o livro continuará nosso parceiro, na estante, ao lado do cd-room, próximo dos cds, acima do computador, ao lado do fax, do vídeo.

A internet é um meio privado em que se põe rapidamente as idéias em público. Com o tempo, quero crer que esse meio poderá ser o princípio de um exercício pleno da comunicação, onde a "censura" seja apenas ética. Mesmo com todo o lixo on line, a internet é o meio mais democrático de todos, que deveria ser ainda mais, não fosse a ditadura econômica que estamos vivendo, a qual impede que todos possam comprar um computador.

Outro fato que me chama a atenção, é o retorno da escrita. Em certo sentido, através do e-mail, todos estão escrevendo mais. A carta voltou, de outra maneira, mais veloz e telegráfica, mas voltou. O e-mail, hoje, é a carta em alta velocidade. Aí fico pensando no que disse Almodóvar: "o homem é mais verdadeiro quando escreve, a humanidade deveria calar a boca e escrever". Ou, como canta Luis Melodia: "Se a gente falasse menos / talvez compreendesse mais (...)". Também acho que esse meio, que se dá pela escrita, pela carta, acaba equilibrando a ditadura da imagem e podemos ser mais confessionais. Ana Cristina César iria adorar...
Qual o papel do escritor na sociedade?
Nesse sentido, ainda vivo de horizontes utópicos. Acredito que a poesia se soma àquelas práticas que podem mudar o homem. Não que o poeta deva assumir esse compromisso. Mas não há como negar que inventar poemas é bem diferente de inventar bombas ou remédios falsos. Devolver o texto para a tribo, eis uma epígrafe para livros de poesia.

(2002)

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