A Garganta da Serpente
Entrevista com Cobra entrevista com nossos autores
Entrevista com:

Paulo Henriques Britto

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- Paulo Henriques Britto -

Entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão nosso habitante para o Balacobaco


Ele nasceu no Rio de Janeiro, em 1951. É professor e tradutor, estreou como poeta em 1982, com Liturgia da Matéria, a que se seguiram Mínima Lírica (1989) e Trovar Claro (1997).

Como foi o início do seu contato com a literatura?
É difícil dizer. Tenho muito poucas lembranças do tempo em que eu ainda não sabia ler. Minha principal atividade na infância e em boa parte da adolescência foi ler e escrever. Comecei minha leitura com gibis, depois engrenei no Tesouro da Juventude e nos livros infantis de Monteiro Lobato. Num certo sentido, o TJ e ML foram as leituras que tiveram o maior impacto sobre mim.
O que o poema tem de lúdico?
Boa parte da especificidade da linguagem poética, creio eu, é justamente esse aspecto lúdico dela, a questão do ritmo, da rima, da onomatopéia, do uso musical e lúdico das palavras. Isso é o que há de mais básico na linguagem poética, e talvez seja o que há nela de universal, ou seja, o que permite que classifiquemos como poéticas certas produções verbais de povos de cultura muito diferente da nossa.
Quais livros fizeram parte de sua formação?
Num primeiro momento, como já disse, o Tesouro da Juventude e Monteiro Lobato. Depois, quando fui morar nos EUA, ocorreu meu primeiro contato sério com a poesia - Shakespeare, Emily Dickinson, Poe, Whitman. Li também muito Hawthorne e Dickens, além de histórias de detetives: Poe, Conan Doyle, Chesterton, etc. Depois, já de volta no Brasil, na adolescência, descobri Machado e os outros clássicos brasileiros, principalmente os prosadores, que sempre me interessaram mais que os poetas. Mas por volta dos quinze anos descobri Pessoa, o que foi para mim uma verdadeira revelação e que pela primeira vez me levou a tentar escrever poesia "a sério" - ou seja, com pretensões literárias, e não como puro ludismo verbal, como eu fazia desde os seis anos de idade. Pessoa puxou os clássicos do modernismo brasileiro - Bandeira e Drummond. Por volta dos dezessete anos, outra descoberta importante: Caetano Veloso, que por um lado me fez atentar mais para a música popular - Chico Buarque, Gilberto Gil, Bob Dylan, Jim Morrison - e por outro me fez ler o Balanço da bossa de Augusto de Campos, mais um livro fundamental na minha formação, que me levou a me interessar por crítica e teoria. Outra leitura dessa época que foi da maior importância foi A interpretação dos sonhos de Freud. Foi também nessa época que descobri o autor que até hoje é meu predileto, Kafka, além de Joyce, Beckett, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Cortázar, Gombrowitz, Sartre, Mário de Andrade, Campos de Carvalho... Mais para o final desta fase propriamente de formação, li alguns autores que foram marcantes para mim: lingüistas e pensadores, como Chomsky, Popper e principalmente Wittgenstein; romancistas, como Dostoievski, Tolstoi, Melville, Flaubert e, acima de tudo, Proust; críticos-poetas, como Eliot, Pound e os irmãos Campos; e dois poetas fundamentais: Wallace Stevens e Cabral. Esses autores foram os últimos a ter sobre mim esse tipo de impacto que, depois dos vinte e poucos anos, dificilmente você volta a sentir, mesmo que você ainda venha a fazer muitas descobertas importantes.
Quando começou a escrever. Quais eram as sensações físicas e mentais?
Comecei a escrever por volta dos seis anos. O ato de escrever me dava muito prazer; antes mesmo de saber ler eu já gostava de rabiscar folhas de papel, fazendo de conta que estava escrevendo. Era realmente um prazer físico e mental. Porém com o passar das décadas o prazer de escrever já não é mais tão intenso; o da leitura, porém, permanece inalterado.
Teve algum incentivador? Quem?
Por volta dos dezoito, dezenove anos, a pessoa que lia meus escritos e os criticava com mais freqüência era um professor de português que eu tive no colegial, que tinha seus vinte e poucos anos, e que veio a se tornar um grande amigo meu, o contista sergipano Antonio Carlos Viana. Quando fui estudar cinema na Califórnia, aos vinte anos, comecei a escrever em inglês - mais contos e roteiros que poemas - e meu principal leitor era meu amigo Victor Livingston, que hoje faz montagem de cinema (entre outros filmes, montou Amadeus e Crumb). Alguns anos depois, de volta no Brasil, fiz amizade com o poeta e crítico Italo Moriconi - nós dois dávamos aulas de inglês no IBEU; ele leu e criticou muita coisa que eu escrevi e traduzi, principalmente poesia, nessa fase de início da vida adulta. Creio que esses três foram os mais importantes.
O Poeta e a Obra
A concisão é uma de suas marcas. Fale um pouco.
A concisão é mesmo uma das minhas marcas? Em comparação tanto com os poetas que seguem na trilha do concretismo e descartam a sintaxe discursiva quanto com os descendentes da poesia-mimeógrafo dos anos setenta, que cultivam o poema-piada e o epigrama, o meu trabalho não me parece particularmente conciso. Eu diria que me situo bem na mainstream da poesia lírica contemporânea. Mas é claro que, na medida em que essa mainstream toda se desenvolve sob o signo de Cabral, sem dúvida a figura mais influente na poesia brasileira das últimas décadas, minha poesia tende mais para o seco que para o úmido. Nisso, tanto quanto na tendência à reflexão metalingüistica, eu diria que sou um poeta bem típico da minha geração e do meu tempo.
"Trovar Claro" é seu melhor livro?
Bem, isso é mais para os críticos dizer, não é? Mas é claro que, como todo escritor, eu sempre fico achando que meu último livro assinala um crescimento em relação ao anterior.
Existe algo que os críticos não viram nos seus versos? Algo que nunca verão?
Essa aí só mesmo outros críticos, posteriores, para responder, se a minha poesia durar mais um pouco (espero que dure).
O Presente
Em que trabalha atualmente?
No momento, praticamente não estou escrevendo poesia. Estou traduzindo várias coisas, inclusive dois poetas - Elizabeth Bishop e Ted Hughes - e escrevendo um texto sobre Bishop.
Quais os grandes poetas da atualidade?
Não me sinto capacitado a responder a essa pergunta. Não sou crítico, e não conheço tão bem a produção contemporânea quanto eu gostaria de conhecer. Apenas acompanho alguns nomes que me interessam na poesia brasileira e na de expressão inglesa. No Brasil, o único poeta vivo cuja grandeza me parece inquestionável é Cabral. Mas há muitos poetas que me parecem muito bons. Dos que conheço melhor da geração mais velha que a minha, entre os que mais admiro eu citaria Ferreira Gullar, Ruy Espinheira Filho, Armando Freitas Filho e Ivan Junqueira. Dos da minha geração e mais jovens, eu citaria Alexei Bueno, Carlito Azevedo, Nelson Ascher, Cláudia Roquette-Pinto, Augusto Massi e Aníbal Cristobo, um argentino que mora no Rio e escreve em espanhol e português. Mas certamente estou esquecendo outros nomes que eu admiro - para não falar nos que eu não li, ou li pouco e mal.
A poesia brasileira vai tão bem assim?
Acho que já respondi essa pergunta no item anterior. Acho que vai bem, sim. Agora, é claro que a gente sempre fica querendo procurar quem é o novo Bandeira, o novo Drummond, o novo Cabral. A meu ver, não há nenhum poeta vivo da estatura desses três. Mas não é impossível que algum poeta dos que já estão produzindo agora venha a crescer e se revelar um poeta realmente maior, ou que surja amanhã alguém assim.
Qual o maior poeta de todos os tempos?
Não sei. Dentro das minhas limitadas leituras - limitadas entre outras coisas pelo fato de que só domino português e inglês, embora leia mal e porcamente as outras línguas neolatinas - os que me pareceram maiores foram Shakespeare e Dante. Em português, acho Pessoa superior a todos os outros, inclusive Camões. Mas insisto que não sou crítico, não sou um estudioso sério de literatura.
Quais são as suas influências?
De novo, uma pergunta que eu não sou a pessoa mais indicada a responder. Se você perguntar quais os poetas que eu já me vi consciente ou inconscientemente imitando, ou parafraseando, ou homenageando, a lista seria muito longa, mas os nomes principais seriam talvez Pessoa, Drummond, Bandeira, Stevens, Cabral, Dickinson, Shakespeare, talvez Byron, os poetas americanos e ingleses do pós-guerra, principalmente Ginsberg, Elizabeth Bishop, James Merrill e Philip Larkin. Eu teria que citar também poetas que só li em tradução, como Kaváfis, e muita coisa que li traduzida pelos irmãos Campos, como os provençais. Também teria que citar o impacto de alguns prosadores, como Machado, Kafka e Joyce. E certamente a música popular dos anos sessenta, o rock, Bob Dylan, e a MPB, Chico Buarque, Torquato Neto, Capinan, Gil e principalmente Caetano Veloso.
O Futuro.
O que vem por aí, quando sai seu próximo livro?
Tão cedo não vai ser!
Quais nomes, de poetas novos, fazem sua cabeça?
Não sei fazer previsões. Quanto aos poetas novos que aprecio, já mencionei alguns acima.
Internet
O que falta para cair de vez nesta rede?
Também não tenho muito o que dizer sobre isso. Sou um usuário parcimonioso da Internet. Praticamente só uso a rede para a minha correspondência eletrônica, para importar livros e fazer download de obras clássicas armazenadas em bibliotecas eletrônicas.
Teoria e Afins
Ninguém mais lê teoria literária. É algo ultrapassado?
Não sei se as pessoas lêem menos teoria hoje que antes. Sempre foi uma leitura basicamente para especialistas - alunos, estudiosos, escritores. Creio que no mundo acadêmico as pessoas continuam a ler teoria, como sempre, e fora dele quase ninguém o faça, também como sempre. O que mudou, quanto a isso? A meu ver, nada.
O que é necessário para o fenômeno poético?
Acho que não sei responder essa pergunta. Eu teria que pensar muito, e provavelmente diria bobagem. Com a palavra, os teóricos de literatura. Pedir a um poeta que se pronuncie sobre questões teóricas é o mesmo que pedir a um crítico que escreva uma sextina.
Em sua poesia, que questão técnica lhe agrada mais?
Gosto muito de explorar as formas fixas. Também adoro o verso livre, mas cada vez ele me parece a forma mais difícil e exigente de todas. Gosto de experimentar sobretudo com a rima, a assonância e a aliteração; em matéria de métrica sou quase sempre fiel ao decassílabo. Mas gosto de fazer experiências com o decassílabo, utilizar formas inusitadas - no meu último livro trabalhei com um decassílabo meio maluco, dividido em dois hemistíquios, com o acento recaindo na 2a, 5a, 7a e 10a sílaba. E há muitos anos que não consigo me livrar do soneto. Por isso às vezes faço variações em torno da forma canônica, invento uns sonetóides diferentes.
Tradução
O que é mais difícil em tradução?
Tudo. Traduzir é muito difícil. Mas para mim às vezes dá até mais prazer que escrever.
Para traduzir até que ponto é necessário o conhecimento total da língua traduzida?
Bem, "conhecimento total" não existe de nada, nem mesmo da língua nativa. É claro que é bom conhecer bem a língua de que se traduz, mas o essencial é conhecer muito bem a língua para a qual se traduz. Um tradutor que domine bem seu próprio idioma pode traduzir até de línguas que não conhece perfeitamente, munido de bons dicionários e consultando pessoas que dominem a língua da qual ele traduz.
A tradução do Rimbaud por Ledo Ivo é uma. Já Ivo Barroso manteve a métrica. O que há de comum e de diferente nestes dois casos?
Bem, não fiz uma leitura aprofundada e comparativa dessas duas traduções. Mas acredito que tradução de poesia deve sempre tentar se aproximar ao máximo da forma do original.
Quem foi e quem é o tradutor brasileiro?
Cada vez mais, um profissional reconhecido como tal. Quando eu comecei a traduzir, há vinte e cinco anos, a idéia de que ser tradutor era uma carreira como ser médico ou advogado era simplesmente inconcebível. Hoje isso mudou para melhor, embora estejamos ainda longe do ideal.
Por que a tradução de poesia é um trabalho de poetas?
Traduzir é um trabalho de escritor. Para traduzir poesia, é preciso ter domínio passivo e ativo do arsenal de recursos formais utilizados pelos poetas. Ou seja, é preciso, num certo sentido, ser poeta. Porém o tradutor não precisa ter o que dizer, só precisa saber fazer um poema. Já o poeta para ser bom tem que ter algo para dizer, na minha opinião.
Que língua prefere traduzir?
Só traduzo do inglês para o português e vice-versa. Sendo que vice-versa só em caso de textos não literários.
Existe uma conduta, um pudor em "mexer" na obra alheia?
Quem tem pudor de mexer na obra alheia não pode ser tradutor. Traduzir implica mexer, e muito, no texto do outro.
Qual o trabalho (seu e outros), em tradução, mais lhe agrada?
Os meus: em poesia, a tradução de Beppo, de Byron; em prosa, a de Gravity's rainbow, de Pynchon, que está sendo lançada agora. Dos outros, é tanta coisa que fica difícil dizer. Além das traduções de poesia dos Campos, que já mencionei, eu citaria as de Kafka de Modesto Carone.
Até que ponto a fidelidade ao texto inicial é importante?
Uma pergunta complexa demais para responder aqui. É uma discussão teórica das mais quentes no campo da teoria da tradução. Limito-me a dizer que, entre a posição tradicional que estabelece uma diferença clara entre original e tradução, de um lado, e a postura de autores associados à desconstrução e ao pós-estruturalismo que tendem a relativizar ou mesmo negar essa oposição, de outro, tendo a me posicionar como um tradicionalista.
Final
Qual o poema seu que mais o personifica? E a sua obra?
Não sei dizer.
Qual o papel do escritor na sociedade?
Há vinte anos atrás, eu diria que a principal exigência feita ao escritor era de caráter ético. Hoje, eu diria que o mais importante é de natureza técnica: ele deve escrever bem. O que mudou, além do fato óbvio de que não vivemos mais numa ditadura odiosa, é que me convenci de que a literatura é bem menos importante para a maioria das pessoas do que eu imaginava. A exigência ética, portanto, é mais premente para quem trabalha com televisão e cinema. A literatura afeta uma porção ínfima da população, e a poesia uma parte muito pequena dessa porção ínfima.

(2002)

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