A Garganta da Serpente
Entrevista com Cobra entrevista com nossos autores
Entrevista com:

Nuno Dempster

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- Nuno Dempster -

Entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão nosso habitante para o Balacobaco


Para a minha biografia, basta meia dúzia de linhas, sou português, nasci em Ponta Delgada, Açores, engenheiro especializado em Nutrição Animal, não tenho nada publicado senão em diversos sites na Web (publiquei na juventude em jornais, na rádio e participei numa exposição de pintura em que eu entrava com uma poesia penso que então de vanguarda, com quadros à base de colagens e cores, recortes de jornais, palavras, frases, fotos, versos escritos à mão); entretanto fui convidado pela editora portuguesa Sete Sílabas a integrar um livro de poemas com mais três poetas, o título é Quatro Poetas da Net a sair em Junho/ Julho e tenho um outro livro com onze contos, O Sexto Mandamento, na portuguesa Editorial Caminho à espera de um dia vir a ser impresso. Tenho poesia dispersa talvez para mais dois livros que ainda não tive paciência de organizar e ultimamente escrevi um livro com 29 sonetos sobre Teresa de Ávila que espero veja a luz do dia em edição bilíngüe de português e castelhano, intitulado A Mulher que Amava um Deus de Bruma.

Por que a sua opção muitas vezes -, por sonetos e uma linguagem elaborada chegando ao formal na elaboração de poemas?
Os sonetos são uma opção bastante minoritária nos poemas que vou fazendo, exceptuando o caso de A Mulher que Amava um Deus de Bruma, projecto de livro composto por 28 (mais um) sonetos italianos sobre Teresa de Ávila, certos na rima, na metrificação e na acentuação tónica. Fi-los assim de modo propositado, por um aparente mimetismo com a época (séc. XVI, altura de maior florescimento do soneto peninsular). Aparente, porque o discurso poético desses sonetos não é o de há cinco séculos e porque a forma compacta e esquema de rimas é diferente. Esse aspecto formal já era como que um fait divers. O soneto final (o mais um), ao contrário dos restantes, abandona a rima, prescinde da pontuação exacta e do desenvolvimento tradicional do soneto, no entanto está dividido em quartetos e tercetos que o são apenas aparentemente, enquanto os outros são divididos em quartetos e tercetos exactos e isso é escondido por os ter justaposto. Há aqui, neste soneto, uma paródia formal com quem eventualmente julgue o soneto uma espécie de fóssil.

Mas sei aonde quer chegar. Na realidade em muitos dos poemas que hoje escrevo faço-o com métrica, sendo, no entanto, rara a rima. Creio que o mais importante é dizermos o que temos a dizer e se nos sentimos bem dentro de alguma disciplina, porque não usá-la? Muita gente julga que para ser-se de hoje é proibido usar formas que dizem do passado. É uma atitude de ignorância. Um soneto pode ser mais moderno do que a mais estrambólica forma de há trinta ou quarenta anos atrás e hoje decalcada e escrita.

A linguagem não é elaborada, ou pelo menos não me parece elaborada no sentido de artificial e rebuscada, elaborada é a linguagem por exemplo dos que se constituem em ecos, em réplicas de vanguardas passadas, decalcando ipsis verbis o modo de fazer poesia, dezenas de anos passados sobre o contexto que deu origem a essas vanguardas, passe a repetição.

No fundo, escrever sob formas fixas creio ser uma reacção justamente ao passado mais recente.
Em EPITÁFIO NA LAPIDE DE UM POETA está presente todo o niilismo de Shoupenhauer. Quando este niilismo pode evoluir para algo à moda de Nietzsche, com uma maior dose de vontade de potência e transvaloração?
Penso que não haverá niilismo no poema não o havendo no meu pensamento, haverá uma visão materialista da morte. Quando se fala do nada já se está a ser metafísico. O nada não existe, é a sua própria negação, como Deus é apenas uma ideia (ou uma fé), um e outro são concepções metafísicas. O poema limita-se a dizer que a poesia de um poeta será esquecida (não negando que outra depois dela seja lembrada). É uma constatação dialéctica e a ordem como o mundo se vai construindo, conosco ou já sem nós. Aqui não cabe uma transvaloração ao jeito de Nieztche, que foi beber a Schopenhauer a sua filosofia metafísica. A morte faz parte da vida e pode raciocinar-se poeticamente sobre ela. Digamos que esse poema tem, por oposição ao niilismo, a organização poética do esquecimento, o que é um facto e o devir dialético que o niilismo nega.
Você escreve muito sobre a poesia e o poeta. Como escrever versos contundentes sem cair na metalinguagem fácil?
Escrevo alguns poemas porque gosto de meditar na poesia e na condição humana de se ser poeta.

A contundência - a ironia, a sátira, o sarcasmo, a indignação, a revolta, em suma - é uma forma de o poeta se testemunhar, e testemunhando-se a si mesmo com seriedade, a metalinguagem é honesta.
Com quantas metáforas se faz um poema?
As metáforas devem ser vivas e não uma cansada repetição; pessoalmente busco aumentar o poder da semântica poética com imagens cénicas, embora as metáforas sejam não só inevitáveis como úteis dentro daquela exigência de qualidade. No entanto fujo delas, ciente de que elas sempre me apanham.
Em FENIX você diz que "A beleza ardeu e foi alma um dia". Quando a pureza anímica se perde diante da solidez do fogo? O que é o fogo? O amor é o fogo que arde sem se ver?
A beleza perde-se com a morte e a eternidade também, foi a mensagem que quis passar no poema. Esse poema pode ser um exemplo do uso da imagens cénicas de que acima falei.

Quanto ao amor muitas vezes é um desespero, Camões sabia-o e de que maneira, e creio também que a grande maioria da humanidade que usufruiu ou usufrui o amor.
Você utiliza de toda uma simbologia grega em seus poemas. O que a mitologia grega tem de legado às gerações modernas?
Exemplos, paradigmas duradouros do ser humano, parece-me ser esse o seu uso mais frequente na poesia moderna, escuso de citar poetas, tantos são e grandes os que se socorrem deles.
Em A Vaga você diz ¨Nada me traz pois nada devolve". O mar tem que trazer e levar. Qual paralelo tais versos podem ser concernidos ao relacionamento amoroso?
Não existiu durante a feitura do poema esse paralelo. Utilizo tanto quanto possível a linguagem de um realismo transformado pelo olhar, aliada a imagens, quaisquer que elas sejam (cénicas, metáforas, símbolos). Sepúlveda faz parte de um relato da História Trágico-Marítima, uma das grandes obras da literatura portuguesa sobre relatos de naufrágios no séc. XVI. Foi uma reflexão: olhando a vaga enorme perguntei-me por esses náufragos de há quinhentos anos.
A reiteração da palavra margaridas no poema CANÇONETA transforma o prosaico num poema eufônico e belo. Qual beleza vem da eufonia? Qual rima ainda que tardia é a escolha do poeta dentro da métrica certa, como escolhe uma rima e uma métrica e uma palavra para adornar e coroar o seu poema de louros inauditos?
Sou dos acreditam no valor da oralidade em poesia, acredito que essa qualidade pode vir a ajudar a devolver o carácter que a poesia já teve, o de ser ouvida, não já evidentemente nos salões da nobreza e depois nos da burguesia, também não estou a pensar nas tertúlias em que se dizem poemas, pois aí sempre se disseram, tenham ou não eufonia. Estou a pensar sobretudo nas criações multidisciplinares de carácter cénico em que a poesia pode ter um lugar muito importante, o que de resto vai sucedendo já. Corre aqui (em Madrid) um espectáculo de dança que utiliza, além do filme, a música e a poesia: Un Poeta en Nueva York. Lorca é um poeta muito eufónico como se sabe.

Respondendo mais directamente à sua pergunta sobre a beleza da eufonia, creio que basta ouvir um poema eufónico para compreender essa beleza.

Nem só da rima vem a eufonia dos poemas, penso que hoje vem, sobretudo, do ritmo resultante do jogo de sons vocálicos e consonânticos dentro de cada verso e entre os versos, ao longo do poema, o que é conseguido pelo ouvido do poeta de forma subconsciente. A rima, pelo menos no meu caso e creio que no de muitos, quando existe não é escolhida, nem a métrica: o assunto do poema é que os escolhe, os obriga. Como pode um poema sombrio resultar sincero com rimas de tónicas vocálicas abertas? E não será contraproducente fazer esse poema em tetrassílabos? Este é um processo íntimo, mal apreendido pelo poeta no acto de escrever, embora possa, fora do poema, sistematizar com lucidez a correspondência entre a qualidade dos sons, o comprimento dos versos e a cor do assunto.
Walter Benjamim dizia que o cinema era a principal arte. Qual arte é a maior arte?
Para mim, sem qualquer hesitação, é o teatro, estando eu a pensar na encenação moderna. O teatro hoje faz-se com todas as artes. Não é novidade entrarem em cena, com o objectivo de amplificar a linguagem dramática, o cinema (o filme, o vídeo) a fotografia (por diapositivos projectados e até por fotos), a poesia, a dança, a música, as artes plásticas (a pintura e a arquitectura cénicas), e ainda a escultura. Sem esquecer os actores, o seu calor, a sua realidade. O teatro toca o máximo de humanidade possível. Nenhuma outra arte tem tanto poder de expressão.
Bloon diz que cada poeta descende de outro. De quais poetas descende?
Somos a síntese das nossas leituras mais o que é nosso, desde que começamos a ler. Descendo naturalmente de poetas portugueses, vai-se buscar um bocado a um, um bocado a outro, vão-se assimilando, Cesário Verde, Torga, Pessoa e Sena são poetas de quem julgo descender, mas também na poesia de prosadores como Raúl Brandão e o italiano Césare Pavese. Mas quem pode num mundo de grande facilidade de informação não assimilar deste e daquele poeta estrangeiro? Nada hoje é estanque. Além do mais, penso também que descendo, mal ou bem, dos trágicos gregos e de Shakespeare. Entenda-se: sempre aspirei à sua profunda sabedoria sobre o humano. Mas falar de nomes é não só redutor como injusto. Nunca se diz tudo.
DIA DE REIS é uma dicotomia em versos. Quando General Motors se tornou uma idéia genial?
Penso que Vc tenha o usado o termo genial com sentido metafórico: como de súbita visão. Não há dúvida - ninguém o ignora - que a General Motors faz parte do nosso tempo. A poesia de hoje é feita também com assuntos de hoje, com a realidade de hoje. O rei mago não se dirigia ao presépio, mas a um stand dessa marca como se fosse trocar o seu velho camelo por um carro. É uma reflexão irónica sobre o nosso tempo.
Há poesia numa letra de música? Letra de música é poema?
Claro que pode haver. A maior parte das vezes não será poesia, mas estou a lembrar-me de alguns poetas portugueses que escreveram belos poemas para canções. Zeca Afonso é o paradigma português do poeta cantor, mas também José Ary dos Santos tem belos poemas escritos para canções e outros. No entanto já Jorge de Sena dizia que raramente se escreveu poesia grande para grande música.
Quem é o escritor português?
Muitas vezes um injustiçado por ser de um país pequeno, para não aduzir mais razões. Quem conhece O Físico Prodigioso, de Jorge de Sena? E no entanto é uma das quatro para mim mais belas novelas que li na minha vida (com O Velho e o Mar de Hemingway, O Estrangeiro de Camus e A Estrada do Tabaco, de Erskine Caldwell). Quem se lembra de O Barranco de Cegos, um grande romance português, de Alves Redol? E de Aquilino Ribeiro? Portugal sempre tratou mal os seus escritores. Pense em Gil Vicente, em Azurara, em Camões, em Fernão Mendes Pinto, em Pessoa, em Jorge de Sena, como sempre haverá muitos mais.
Como encara as revelações de Alexei Bueno no JB sobre a poesia Brasileira?
À parte alguma dispensável arrogância que lhe vi e uma teatralidade escusada, creio que uns safanões e umas quantas verdades não fazem mal a ninguém. Aí, aqui e em toda a parte quem fala assim tem as suas razões. Ele disse coisas certas. No entanto a carta parece-me algo incompleta e também a puxar a brasa à sua sardinha.

Creio que Alexei Bueno representa uma tendência formal no mundo de hoje e que no Brasil julgo ter sido iniciada por Ivan Junqueira. Se alguém dissesse isto a Alexei Bueno, o polémico poeta que posou de charuto numa foto era capaz de se zangar...
Tem algum mote?
Não, mote não tenho.
Qual o papel do escritor na sociedade?
Ser inequivocamente do seu tempo deveria bastar-lhe, testemunha redactora, criadora e partícipe

(2002)

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