A Garganta da Serpente
Entrevista com Cobra entrevista com nossos autores
Entrevista com:

Neide Archanjo

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- Neide Archanjo -

Entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão nosso habitante para o Balacobaco


Poeta, advogada, psicóloga. Nascida em São Paulo, atualmente encontra-se radicada na cidade do Rio de Janeiro. Formou-se em Direito na Universidade de São Paulo e em Psicologia nas Faculdades Metropolitanas Unidas, também em São Paulo. Estreou na poesia em 1964, com o livro Primeiros Ofícios da Memória. Desde então, criou e participou de movimentos como "Poesia na Praça", varais de poesia, espetáculos em teatro, cafés, faculdades, bibliotecas, festivais nacionais e internacionais de poesia e arte. Criou e implantou a Oficina Literária da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. Foi bolsista da Fundação Calouste Gulbenkian na qualidade de poeta residente, em Portugal. Seus poemas figuram em antologias nacionais e estrangeiras. É considerada pela crítica uma das autoras mais significativas da geração que surgiu na literatura brasileira na década de 60. Em 1980 e em 2000, recebeu da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) os prêmios de poesia. Foi indicada para o prêmio Jabuti de poesia em 1995, pelo livro Tudo é Sempre Agora. Os poemas de seu livro Pequeno Oratório do Poeta para o Anjo foram gravados por Maria Bethânia. Em 2000 recebeu o prêmio APCA de poesia por "Epifanias". É assessora da Biblioteca Nacional e membro do Conselho Editorial da Revista "Poesia Sempre".

Bibliografia: Primeiros Ofícios da Memória, 1964, Ed. Massao Ohno, SP; O Poeta Itinerante, 1968, Ed. IIIa Palma, SP; Poesia na Praça, 1970, Ed. IIIa Palma; Quixote, Tango e Foxtrote, 1975, Ed. do Escritor, SP; Escavações, 1980, Ed. Nova Fronteira, RJ, Prêmio APCA; As Marinhas, 1984, Ed. Salamandra, RJ; Poesia 1964 a 1984, 1987, Ed. Guanabara; Tudo é Sempre Agora, 1994, Ed. Maltese, SP; Pequeno Oratório do Poeta para o Anjo, 1997, Ed. da Autora, RJ; CD "Poesia Falada", coleção Vol. VI, Neide Archanjo por Neide Archanjo, Participação Especial de Maria Bethânia - Gravadora Luz da Cidade, 1998, RJ; Epifanias, 1999, Ed. Record, RJ, Prêmio APCA; As Marinhas, 2a edição comentada, 2001, Íbis Libris Editores, RJ.


Quem é o anjo para o qual escreveu: Nomei-o / Alma / adequado ao clarão / que traz consigo?
É evidente que o poeta sempre parte de uma fonte de inspiração inaugural, a qual nem sempre corresponde uma pessoa real. Pode ser um feeling, uma imagem remota, um material resgatado das profundezas do inconsciente. O verso citado na pergunta faz parte do livro Pequeno Oratório do Poeta para o Anjo (1997) - poema único composto de 16 poemas - que relata a anunciação, a presença e a despedida de um ser que visita o poeta. Ele entrega-se à beleza da aparição:

Afinal, / há que suportar / essas revelações / sucumbir diante da Beleza / e sequer saber / quem nos visita.

Na vivência desse amor, percebe-se que o anjo é o ponto de diálogo entre o ser e o não ser; a verdade e a mentira; a luz e as trevas. Todos os poemas vêm precedidos por uma epígrafe que demonstram esse contraponto. Ex: Era a quimera / e parecia ser o amor. / Era a quimera ou Era uma noite / e parecia ser mil. / Era uma noite.

Esse livro remete a poeta e o leitor a Rilke em Elegias de Duino, talvez pelo tom de esplendor, entrega e tragicidade que o angélico nos proporciona. Um anjo pode ser um querubim, um serafim, um dos três arcanjos, mas pode ser também Lúcifer.
"Algumas noites / líamos Rilke". Qual influência é uma angústia para N. A.?
No poema há essa clara referência a Rilke. Sua influência - ele é um dos meus favoritos - não é fonte de angústia, ao contrário, guardo das muitas leituras de suas Elegias de Duino; de seus Cadernos de Malte Brigge, bem como do universal Cartas a um Jovem Poeta - conselhos de Jacobsen ao então iniciante Rilke - versos admiráveis e textos como este:

Para escrever um simples verso, é preciso conhecer muitas cidades, homens, animais. É preciso ter a alma aberta para o vôo dos pássaros e ser capaz de perceber os gestos das flores que se abrem ao amanhecer.

Para escrever um simples verso, é preciso viajar por regiões desconhecidas, estar preparado para encontros e desencontros inesperados.

É preciso saber voltar a momentos da nossa infância que até hoje não conseguimos compreender. É preciso lembrar do que sentimos, quando ferimos alguém que sempre nos desejou o melhor possível.

"Para escrever um simples verso, é preciso passar muitas manhãs diante do mar, muitas tardes diante do pôr-do-sol, muitas noites diante de quem amamos. Tudo isso para escrever um simples verso".
"Não amou / a quem amou tanto". A lírica amorosa ainda é a grande arte? Poesia? Como encara a metalinguagem? O concretismo? Poetas inventores?
A lírica amorosa é uma grande arte ao lado da épica, da poesia social. Vide os belíssimos sonetos de Camões - sua lírica - e o magnífico Os Lusíadas - sua épica. Assim também Dante: Vita Nova e a Divina Comédia e inclusive Drummond: Rosa do Povo e Amar se Aprende Amando. Em meu trabalho a lírica - o Anjo; Tudo é sempre agora; Escavações e a épica As Marinhas e o social Quixote, Tango e Foxtrote estão entrecruzados.

Não sou professora de literatura para opinar sobre gêneros, escolas, tendências. Gosto do metapoema, porque nele o poeta expõe sua luta com a palavra; o exercício de escrever; o encontro do criador - o poeta - com a criatura - o poema.

Em quase todos os meus livros, há uma parte dedicada à metapoesia:

O poeta avança / por tato ou faro / se preciso de rastos / nu / pastor e rei / do poema a ser criado. In, Escavações, 1980.

Passo meses / olhando o poema / meu coração partido / entre as costelas / como Ginsberg em casa / olhando as rosas / no armário. In, Tudo é Sempre Agora, 1994.

Era um fruir de formas / essência grave e leve / era a ordenação do caos / a harmonia breve.
Era o poema/ encostado no muro / qual flor vadia / que entre ramas se esquecia.

Era o poeta / lambendo a página baldia / em que o poema / encantado se escrevia. In, Epifanias, 1999.
Qual o ganho Maria Bethânia lhe concedeu ao recitar em CD o Pequeno Oratório do Poeta para o Anjo?
Ninguém escolhe Maria Bethânia. É escolhido por ela. Nossa amizade é antiga e Bethânia quis me dar o presente de gravar minha poesia. Escolheu os poemas do Anjo, gravou-os, sob a direção de Bia Lessa, e fez um recital memorável, para mais de mil pessoas na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, na noite do lançamento do livro. Como Bethânia, até então, não havia dito outro poeta, além de Fernando Pessoa foi uma honra incomensurável, uma demonstração de amor, respeito e reverência à minha poesia.

Sempre tive uma ligação íntima com o teatro, o cinema e a música popular. Atrizes como Regina Duarte, Natália Timberg, Lúcia Veríssimo, Maria Fernanda Cândido, Glória Pires, Arlete Sales e Camila Amado, leram e apresentaram meus poemas em várias ocasiões. Acho isso bonito. É uma espécie de fraternidade: o repartir da imagem pública, da fama, do sucesso do artista com a humildade do poeta, com o sagrado da poesia.
Como foi participar da Coleção Poesia Falada? Há diferença entre o velho recitar e o novo falar?
Fiquei feliz com o convite de Paulinho Lima para participar da sua coleção de CD - Poesia Falada. O meu CD é o n. 6 da Coleção. Gravei uma antologia dos meus poemas prediletos.

Paulinho tem um talento especial e uma experiência antológica de produção musical. Fizemos um belo trabalho e repeti a experiência, participando de outros CDs, como convidada. Gravei Drummond, para as festividades do seu centenário em outubro de 2002 e Sosígenes Costa, poeta baiano, cantor dos mitos do mar e de Ilhéus - terra do cacau. Paulinho acha que digo bem poesia. Sérgio Brito e outras pessoas concordam.

Há uma grande diferença entre o velho recitar e o dizer poesia. Recitar, quer dizer representar, declamar, teatralizar. Dizer é outra coisa: você interpreta, você tenta transmitir os sentimentos, os pensamentos, a escrita do poeta, com o mínimo de interferência. O intérprete é apenas o veículo anônimo, espelho para o reflexo do poema e do poeta.
"Não canto os rios / cascatas cachoeiras regatos / canto o mar". O poeta não deve cantar acidentes geográficos?
Não é isso. Em minha poesia há dezenas de referências a acidentes geográficos. Nem poderia ser diferente, pois vivemos neles ou somos cercados por eles. Em As Marinhas quis dar ao mar a magnitude, o esplendor, o sagrado. Quis fazer o leitor viajar comigo e dar-se conta que o mar não é apenas um acidente geográfico, como aprendemos na escola. Ele é a configuração eterna do inconsciente individual e coletivo, como diz Carl Jung. É a fonte da vida; cenário de guerras e signo da história. Tanto que termino As Marinhas dizendo:

Nunca soubemos bem / cretenses / fenícios / egípcios / assírios / persas / gregos / vikings / portugueses e seus filhos / que coisa é o mar.
"Há qualquer coisa de grego / Nestas colinas (...)". O que há de mitologia grega na poesia de Neide Archanjo?
Havia na Aliança Francesa uma professora que proclamava: "Fora as forças da natureza, tudo o mais é grego". Voilá! Em toda e qualquer manifestação artística: teatro, dança, música, romance, poesia, artes plásticas, a presença não só da mitologia, mas de toda a cultura grega, é fundamental. Sem os gregos, não haveria a cultura ocidental. Por isso procuro trazer para minha poesia seu pathos, seu drama, sua comédia, seus protótipos, seus arquétipos; o culto ao belo e ao verdadeiro. Assim, eram os gregos. Aliás, como dizia Jorge Luis Borges: "Somos el tiempo (...) / Somos el rio y somos / aquel griego que se / mira en el rio".
Qual a maior dificuldade em escrever um épico como As Marinhas?
As Marinhas consumiram mais de cinco anos entre pesquisas e elaboração do texto. Foi um trabalho emocional, mental e braçal.

No poema épico há que se relatar fatos históricos. Portanto, você não pode errar. É preciso também fazer a releitura desses mesmos fatos. Não há como copiar os clássicos; nem se teria talento para tanto...
Permaneci um ano em Portugal, na qualidade de poeta / bolsista da Fundação Gulbenkian, em Lisboa. Percorri o país inteiro. Para escrever um simples poema, era preciso ir buscar a sua ponte histórica: Sagres, Tomar, Porto, Guimarães, Minho, Coimbra, Batalha, Alcobaça, Alentejo e as terras de Dom Diniz. O perigo era tentar, inutilmente, repetir Camões ou Fernando Pessoa. Tive arrepios!
Tem alguma epígrafe?
Em todos os meus livros ponho epígrafes. Elas são o invólucro que apresenta o poema.

As Marinhas: "É para além do mar a ansiada ilha". Fernando Pessoa.

Tudo é Sempre Agora: "E Deus ajuda a amarga beleza desses dias". Herberto Helder.

Epifanias: "Para que servem os dias? (...) / São feitos para sermos felizes neles". Philip Larkin.
Qual o papel do poeta na sociedade?
Ao poeta cabe o contemplar e o nomear. Dizer o indizível. A palavra, trabalhada se põe em movimento, brilha e só então faz a linguagem. Entretanto há que existir o obstinato rigore, pois a poesia é um lugar de saberes e de fulgor, como ensinou Roland Barthes. Além desse papel de rigor no resgate da palavra, o poeta na sociedade de qualquer tempo, deve fazer o ser voltar-se para si mesmo. O poema proporciona um momento de reflexão, de mergulho, de êxtase em meio à balbúrdia da globalização, da cultura de massas, do cinismo, da banalização do cotidiano e do mal. Deus está nos detalhes (Borges) e acrescento: Deus está na introspecção, no silêncio e isso a boa poesia proporciona. Então é necessário valorizar a poesia e dar espaço ao poeta para que ele possa, de alguma forma, maior ou menor, afugentar as sombras da ignorância e do descaso e penetrar no caos, como uma torrente de luz!

(2002)

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