A Garganta da Serpente
Entrevista com Cobra entrevista com nossos autores
Entrevista com:

Luiz Roberto Guedes

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- Luiz Roberto Guedes -

Entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão nosso habitante para o Balacobaco


Paulistano, nascido em setembro de 1955. Redator publicitário, jornalista, tradutor, letrista de música popular, operário de comunicações. Seu primeiro texto publicado foi É A GUERRA, MEU GENERAL, em Contos Jovens número 6, Editora Brasiliense, 1975. Sua poesia surgiu em MAUS MODOS DO VERBO, antologia de Osmar Reyex, LRG e Glauco Mattoso, edição FIM, 1976. Participou também de QUEDA DE BRAÇO, Antologia do Conto Marginal, com 51 contistas de todo o país, edição CAM, RJ, 1977. A partir dos anos 80, dedicou-se também à música. Como letrista (sob o nome de Paulo Flexa) , é parceiro de compositores e intérpretes como Luiz Guedes & Thomas Roth, César Rossini, Beto Guedes, Ronaldo Rayol, Beto Strada, Ivaldo Moreira e outros. Os citados Luiz Guedes e Beto Guedes, músicos mineiros, são primos do paulistano LRG. Nos anos 90, publicou obras infanto-juvenis como os dois álbuns de poemas para crianças PLANETA BICHO (Bicharada de Tinta / Bicharada de Letras), FTD, 1996, e LOBO, LOBÃO, LOBISOMEM, Saraiva, 1997. Obteve um Prêmio Escriba de Contos (Piracicaba, SP) em 1997, e o Prêmio de Poesia Lilia Pereira da Silva, em 1999, com o poemário inédito CALENDÁRIO LUNÁTICO - Erotografia de Ana K, lançado em 2000, em português/italiano, pela Edições Ciência do Acidente. Em parceria com o poeta e ensaísta Claudio Daniel traduziu GEOMETRIA DA ÁGUA, do cubano José Kozer, parcialmente publicado na Coleção Memo da Fundação Memorial da América Latina, SP, 2000. Prepara o lançamento de um livro de contos - COMO SER NINGUÉM NA CIDADE GRANDE.

Por que "o amor é a mais alta subliteratura"?
Esse é um poemínimo auto-derrisório, expleção marginalóide em meio aos poemas monotemáticos do 'calundú' lunático. É auto-explicativo: o amor é a moeda poética de maior circulação, a mais desgastada pelo abuso. (Se você ligar o rádio agora, talvez ouça uma cantora trauteando "Amor, I love you".) O trocadilho ironiza a 'vala-comum' do sentimentalismo, da emoção - que Eliot já aconselhava a manter sob controle. De fato, só levei avante o projeto do Calendário Lunático porque Roland Barthes havia revalidado nossa "licença para trovar" com seu Fragmentos de Um Discurso Amoroso, que restituiu 'legitimidade' a um tema tão banalizado. Tanto que o Prêmio Ignobel 2000 de Química foi concedido a três pesquisadores italianos por sua incrível descoberta: que o estado amoroso não difere, em termos bioquímicos, do chamado transtorno obsessivo/compulsivo.
O que as barras | | representam em sua poesia?
Valem o mesmo que simples parênteses: campo para inclusão de alguma imagem que eu quis enfatizar. Nesse livro ou em outros poemários, ainda inéditos, utilizei as barras verticais porque a incorporação de um sinal gráfico 'inusitado' me pareceu compor melhor a visualidade do poema na página.
Ferreira Gullar é o maior poeta brasileiro vivo?
Acho tediosa essa necessidade de laurear e pedestalizar um 'maior poeta brasileiro vivo'. É tratar a criação literária com critérios de jogos olímpicos. Poetas são como peixes no aquário da linguagem, da cultura. E Ferreira Gullar é certamente um dos mais importantes poetas brasileiros vivos. Seu 'Poema Sujo' é uma das obras seminais (sem trocadilho) da poesia brasileira. Gullar reflete seu estar no mundo, sua circunstância, seu idioma, sua utopia no horizonte da história. E a sociedade precisa, sim, de poesia, de xamãs que reflitam os sonhos da tribo. Gosto de uma definição dada por Tom Jobim: "O sueco precisa pintar o quintal do sueco, e o brasileiro, o quintal do brasileiro. Agora, se o brasileiro quiser pintar o quintal do sueco, aí já fica mais difícil". Isso não significa que a poesia não possa imergir em seu próprio umbigo semiótico, abrir-se ao experimentalismo, mas deve, de quando em quando, rever o rio que banha nossa aldeia, lançar sua rede verbal sobre a materialidade do mundo.
A poesia brasileira se divide atualmente em poetas que escrevem com menos e com mais palavras?
A cena literária atual parece confirmar essa generalização. O paradigma da concisão, da poesia magra, ainda vigente, parece já ter cumprido satisfatoriamente sua missão de 'enxugar' o derramamento verbal de ciclos anteriores da nossa poética. Creio que as lições de rigor e contenção do concretismo já foram assimiladas e incorporadas nessa poética 'pós-tudo'.

Assim, notamos hoje uma retomada do poema em prosa, como uma busca de restituir liberdade à linguagem. Mas tenho a impressão de que a nossa poesia culta, de modo geral, regira dentro do círculo de giz da ruptura, da recusa do passado imediato, da desconstrução da sintaxe, da abolição do sujeito - numa tentativa paradoxal de individualização dentro dessa impessoalidade paradigmática. A recente antologia de poesia brasileira moderna organizada pela revista argentina Tsé-Tsé me parece uma excelente amostragem de tendências e filiações. Um memorial do milênio: museu de vozes, museu de eus. "Tudo ao mesmo tempo agora", como apontou Arnaldo Antunes. Todas as formas parecem estar velhas, fatigadas, e não estamos certos de vislumbrar o novo, quer recriando ou destruindo as formas. A questão consiste em encapsular poesia no objeto final, seja um poema discursivo, visual, holográfico, cinético etc. Não importa muito qual seja a cartilha poética, mas sim a temperatura poética do artista, seu grau de febre e liberdade criativas. No frigir dos ovos, o talento é que é a prova dos nove, seja qual for a sua 'bula' eletiva. Já dizia Lorca: "el arte, o tiene duende o no tiene duende".
A androginia da capa de Calendário Lunático reflete a obra do autor e o autor também?
Você teve essa impressão? Curioso. Nem eu, nem o poeta Joca Reiners Terron, meu editor, pensamos nisso. A moçoila mascarada na capa é talvez uma prostituta francesa da belle époque ( a foto é de 1890). Lindo achado do Joca Terron. "Que tal uma mulher nua na capa?", ele me telefonou. "Linda", eu aprovei, depois de receber a imagem por e-mail. Ela não me parece andrógina: é redonda, curvilínea, opulenta - 'venuda formusa'. Um cânone de beleza oposto à anorexia dominante em nossa Idade Mídia. Aliás, o jornalista Paulo Francis pontificava que "a mulher magra é uma invenção de costureiros homossexuais, que desejavam apenas um cabide para pendurar suas criações". Exceção feita às falsas magras, claro. O escritor Reinaldo Santos Neves, que me mimoseou com amável resenha no posfácio do livro, adorou a moça da capa, que lhe pareceu uma "soberba Tiazinha oitocentista". Quanto à androginia, não faz parte do meu show. Quando ela pintou na cena pop, eu já estava de 'cabeça feita'. Venho de gerações anteriores, quando Luiz Vieira cantava no rádio dizia: "Quero amar você inteirinha / Abraçar você inteirinha"...
Considero Medusa um excepcional veículo cultural, editorialmente inovador e de alta qualidade gráfica. Considero também a dita polêmica muito útil por atrair a atenção para Medusa: isso demonstra que ela não pode mesmo ser ignorada. Penso que o artigo de Martins tratava principalmente de sua 'fadiga' de vanguardas e manifestos - e Medusa estava à mão para servir de alvo. É claro que uma publicação cultural deve, sim, "aproveitar os subsídios oficiais" e botar autores e idéias em circulação. À parte bulas e posturas, o que se deve levar em conta é a importância de haver uma publicação como Medusa, sua função fundamental em nosso meio. Nós, escribas, não podemos abrir mão de nenhum espaço aberto às nossas criações e más-criações.

Quanto à farpa adicional sobre "o culto semi-religioso do ícone Leminski", creio que a tribo precisa, sim, de grandes poetas populares, de rebeldes românticos, "o rosto crestado pelo hálito das multidões", como num poema do próprio Leminski. De resto, não é tão fácil esmagar os cabeças da Medusa: é cobra a dar com o pau. Enfim, a polemiquinha é "da hora": serve sempre para sacudir a canoa e fazer ondinhas.
Qual a diferença entre o calendário lunar e o Calendário Lunático?
Espero que a diferença esteja na arte: que 'haja poesia'. Meu livro tem realmente um eixo astrológico, o signo de Câncer/Caranguejo, que seria regido pela lua. A exploração do tema gerou uma 'poemítica' - uma somatória de arquétipos e de deusas-lunares encarnadas em Ana K. As vinhetas de fases lunares que assinalam os poemas podem significar um estado psíquico movido pela lua. No livro, os encontros amorosos se dão sob a lua cheia. Substrato arquetípico à parte, é uma opereta fatalmente romântica, uma 'versopopéia', como disse Reinaldo Santos Neves. A lua, como escreveu Claudio Daniel, 'é metáfora do amor e da invenção poética' nesse meu videoclipe verbal, que revisita cânones e acolhe a coloquialidade de um cancioneiro popular, baladas ou canções em metro popular e sem pudor da rima. À revelia do alerta de Décio Pignatari, para quem "poesia em versos é jurássica, mas o acesso ao parque não é proibido". Tanto meglio.
Pensa em alguém quando escreve?
Não. Ana K é uma criação verbal, ainda que descolada de uma pessoa real. E o livro se compôs per se, ao longo de uns cinco, seis anos. Quando escrevo, procuro ouvir uma voz. A voz que narra um conto, por exemplo, ou que ressoa através do poema, enquanto ele se faz ou se deixa ser encontrado. Essa voz, muitas vezes, pode ser um eco ou ressonância de uma outra voz poderosa que se impregnou em nosso espírito, desde muito tempo antes. O poeta dialoga com essas vozes, em busca de ouvir o seu daimon, (re)conhecer sua própria 'dicção'. Aquele algo em ti que "diz que és tu", como no verso de Cecília Meireles.
O que tem em comum a sua poesia e a poesia marginal dos anos 70?
Tem algo ou muito a ver, sem dúvida. A irreverência ou o vício do humor, que nos vem já dos modernistas, e até de antes, se lembrarmos de Emílio de Menezes e de seus sonetos humorísticos como aquele "Tertuliano, frívolo peralta / Que foi um paspalhão desde fedelho". Quem poderia passar incólume pela era da repressão & do desbunde? Era um tempo sombrio, em que o Jornal Nacional noticiava até instalação de semáforo diante de uma escola, e o ministro da Agricultura vinha à TV, em rede nacional, noticiar supersafras e desejar "feliz primavera" aos brasileiros. Como herdeiro e usuário da linguagem, sou fruto de minha época, minha formação. "Cada um transpira aquilo que bebeu", costuma dizer Glauco Mattoso. Contudo, rotular meu canzoniere desbocado simplesmente como "marginal" é menos uma avaliação crítica do que a projeção de um preconceito. Aspirar por uma poesia feita só de "poetas para poetas" é uma idiossincrasia acadêmica. Poeta 'marginal' também cresce e ingressa na poesia adulta.
Mário de Andrade pagou para publicarem os seus poemas. Quando haverá público para a poesia? Poesia vende?
A questão é estruturalmente econômica: a sociedade brasileira precisa alcançar primeiro um patamar de mínima satisfação das necessidades básicas antes de ter proteínas e propensão para degustar o pão da poesia ou biscoitos mais finos. Vale lembrar que os militares, ao proclamarem a república, instituíram um Ministério da "Instrucção" Pública que foi simplesmente extinto poucos meses depois. Devem ter considerado que era supérfluo educar uns mestiços destinados ao cabo da enxada... Foi uma decisão política, cujo preço pagamos até agora. A brutal concentração de renda deste país determina ainda que o "espaço do sucesso" seja muito pequeno: cabem uns tantos happy few, como no camarote carnavalesco da grande cervejaria. O drama econômico é responsável pelo miserê cultural. Só muito recentemente é que numa telenovela da Rede Globo personagens apareceram lendo, comentando ou recomendando livros. Sobre a presença da poesia no cotidiano, essa necessidade da tribo vem sendo satisfeita, há já algum tempo, pelos compositores de música popular, os mais cultivados, naturalmente. Me vem à memória um verso de um Cazuza já terminal: "Disparo contra o sol minha metralhadora cheia de mágoas". Porém, sempre haverá um público para a poesia, essa fome de 'alumbramento'. Parece haver um novo espasmo criativo atualmente, uma revivescência da ebulição poética, com novos e velhos lidadores insistindo na 'luta mais vã'. É sempre um pequeno exército Brancaleone, em qualquer canto do país. Contudo, para o grande público, a poesia parece ainda um ofício especializado, de interesse restrito, um pouco como o enxadrismo ou a filatelia. De certo modo, pode-se dizer que os poetas se recolhem a seus Poetburos, seus templos e minaretes, ressentidos com a sua aparente desimportância no mundo moderno. Ainda mais nesse contexto global de "desencantamento", de míngua de mitos e utopias. Os filósofos advertem para a necessidade de um novo "encantamento do mundo", mas o humano está convidado ou induzido a abandonar o mundo real, com seu ameaçador buraco na camada de ozônio, para navegar num universo virtual, de fantasias prontas, consumíveis. Se a poesia, esse "inutensílio", vende? Creio que, primeiro, a poesia precisa tocar o receptor, trazê-lo para si. Poesia sempre será supérflua como "o brilho do sol no pêlo do cavalo" (Nietzsche): pode ser apreciada, mas não quantificada. Não é mercadoria, embora tenha circulação universal. A Internet abre agora um campo planetário. E, felizmente, não abolirá o cordel, o repentista e o cantador de feira.
Para quem daria um Nobel de literatura?
De bate-pronto? Guimarães Rosa, obviamente. Drummond. Dalton Trevisan. E um nome menos óbvio: o escritor José J. Veiga, criador extraordinário, que capturava a estranheza do mundo em livros e contos equivocadamente tomados por uma fusão de regionalismo e realismo fantástico. É um clássico universal, ainda por "descobrir". Em sua última entrevista, Veiga ocupava o rodapé da contracapa de um segundo caderno de um grande jornal. Na capa, em página inteira, com duas ou três fotos coloridas, noticiava-se o lançamento do mais recente romance de um escritor inglês. Essa prioridade editorial me parece claramente inscrita no quadro do "complexo cultural do colonizado", como definiu Darcy Ribeiro. Se pensarmos que Tom Jobim batiza uma "passagem subterrânea" em São Paulo - um túnel fuliginoso -, e que a avenida Mário de Andrade, na Barra Funda, teve seu nome trocado para Auro de Moura Andrade (um senador: mas quem lembra?), vemos que vai levar muito tempo até Lima Barreto ser honrado com sua estátua em praça pública. Enquanto isso, nossos emergentes globalizados continuarão preferindo Orlando, Flórida, a Jeriquaquara, Ceará.
O poeta deve refletir seu tempo?
Creio que é fatal, desde que o poeta não respire somente o bafio da Biblioteca de Babel... A poesia decorre da circunstância de se estar vivo, da sensação de orfandade cósmica do humano, como definiu Octavio Paz, ou mesmo da busca de uma "convulsão pela beleza", uma ebriedade celebratória.

Se toda poesia for mesmo 'de circunstância', esta sempre propiciará poemas como Congresso Internacional do Medo, de Drummond, ou 1o de Setembro de 1939, de Auden. E até mesmo Cazuza cantando "me chamam de ladrão, de bicha, maconheiro / transformam o país inteiro num puteiro / pois assim se ganha mais dinheiro". Para quem canta um pássaro? Acho que canta por estar vivo, debaixo do sol. No mais, muito obrigado por não fazer perguntas 'técnicas' como o que é poesia e para que serve. Foi um prazer, Seomario.

(2002)

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