A Garganta da Serpente
Entrevista com Cobra entrevista com nossos autores
Entrevista com:

Luis Dolhnikoff

  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

- Luis Dolhnikoff -

Entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão nosso habitante para o Balacobaco


Luis Dolhnikoff (SP, 1961) iniciou sua carreira literária com o livro de poemas Impreciso emigrar (SP, Massao Ohno, 1979).

Depois de um intervalo no qual cursou medicina e letras na USP, retornou com Pãnico (SP, Expressão, 1986, com apresentação de Paulo Leminski).

Em 1987, participa da fundação da editora paulistana Olavobrás, pela qual publicaria Impressões digitais (1990), e Microcosmo (1992), ambos de poemas, além da coletânea de contos Os homens de ferro (1991).

Publicou poemas em Atlas Almanak 88 (SP, Kraft, organização Arnaldo Antunes), na página de arte e cultura Musa paradisiaca (Curitiba, A Gazeta do Povo, 1997, edição de Josely Vianna Baptista e Francisco Faria), na revista Medusa (Curitiba, 2000), na revista Tsé=tsé 7/8 - número especial com 30 poetas brasileiros contemporâneos (Buenos Aires, 2000), na antologia de poesia brasileira contemporânea Moradas provisorias (in Hipnerotomaquia, Ciudad de Mexico, Aldus, 2001, organização Josely Vianna Baptista) e na revista Cult (SP, set. 2002, no. 61).

Colaborou com resenhas e artigos literários em O Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde, A Gazeta do Povo (Curitiba), A Notícia (Joinville), revista Sibila (SP) e jornal Clarín (Buenos Aires).

Entre 1992 e 1995 coorganizou, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday de SP, em que deu a público suas traduções de poemas de James Joyce.

Em 2001 recebeu Menção Honrosa no "Prêmio Redescoberta da Literatura Brasileira", da revista Cult, com a trilogia poética Consubstanciações I (sendo os jurados os poetas Nelson Asher, Waly Salomão e Cláudio Willer).

Em 1995 muda-se para Florianópolis, residindo no sul da Ilha de Santa Catarina, onde se dedica ao ofício literário.


Você tem um currículo vasto. Desde o seu início em 1979 até hoje em dia muita gente surgiu e muita gente ficou pelo caminho. O que o fez se manter ainda dentro da poesia? O que a poesia tem que uma vez dentro dela só se sai morto? É alguma maldição (bendição)?
Não me lembro se foi Rilke escrevendo a algum jovem poeta. Mas há uma história de alguém querendo saber se era, ou seria de fato um poeta, e de alguém respondendo que, para sabê-lo, era preciso imaginar-se na cadeia, sem lápis e papel na cela. Se o que o angustiasse mais fosse, não a prisão, mas a falta de papel e lápis, então a resposta era afirmativa. Quando li isso, há poucos anos, ri, porque já havia imaginado a mesma coisa, ainda adolescente. E, de fato, o que me incomodava mais era a idéia de não ter papel e lápis. Ao contrário, a idéia da cadeia, em si, até que podia ser agradável, desde que excluísse a tortura e a tortura da superlotação, pois significava a libertação do cotidiano pequeno-burguês em que estamos imersos. O que pode ser muito produtivo.

A poesia é uma vocação, no sentido denotativo - ou seja, um chamado (não metafísico, não romântico, mas um chamado, um "imperativo"). No meu caso, é o modo como penso melhor (o segundo modo são os artigos e ensaios). A poesia é uma linguagem, e cada linguagem uma forma de conhecimento. Conhecimento dessa própria linguagem, da cultura que a desenvolveu, da condição humana e do mundo. A lingüística contemporânea, a partir do trabalho de Chomsky, entre outros, demonstrou que nossa capacidade verbal é inata. Ao contrário da antiga tábula rasa em que a cultura escreveria seus ditames, nascemos com uma gramática interna que se realiza numa dada língua. Por isso é tão natural aprender uma língua, a partir de um ano de idade, quando se completa a maturação do sistema nervoso e a laringe assume uma posição humana (pois nascemos com ela numa posição mais próxima à laringe dos grandes símios, menos vertical, o que impede a fonação de sons articulados). Fazendo um paralelo com a linguagem verbal senso lato, me parece evidente que algumas pessoas, além da necessidade humana de se comunicar verbalmente (Robison Crusoe é um herói por simplesmente sobreviver sozinho: de fato, para nós, animais grupais, apenas viver assim é um ato de grande heroísmo; já para um grande felino, essa história não faria qualquer sentido), além dessa necessidade padrão da espécie, algumas pessoas têm necessidade de se comunicar também através de outras linguagens.

Acontece que a linguagem verbal utilitária, cotidiana, já cumpre o papel de grande mantenedora da ligação social entre os indivíduos. Portanto, as demais linguagens têm, necessariamente, outras funções. Não por acaso, a linguagem poética não é a ideal para fazer uma lista de compras. Mas é a melhor, por exemplo, para experimentar, no sentido científico, de teste, a condição de cada palavra, de cada estrutura sintática, de cada construção verbal histórica memorizada pela tradição e de cada inovação. Num outro exemplo, também é a melhor, entre as linguagens verbais (além da cotidiana há a prosaica, a filosófica, a jornalística, etc), para criar beleza.

Santo Agostinho "definiu" o tempo como algo que todos sabemos o que seja, quando não temos de descrevê-lo, mas que não sabemos, quando temos. A beleza é semelhante. Sabemos o que seja, mesmo que não saibamos defini-la. E, do mesmo modo, sabemos, sem saber por que, que temos necessidade dela. Da beleza natural, mas também daquela criada por nós. Não existe um povo que não tenha ido além do mero utilitarismo de seus artefatos cotidianos e, apesar de sua inutilidade, acrescentado beleza a eles. Há alguma "verdade", alguma pertinência, na beleza, que tem a ver com harmonia, com simetria, com recorrência. Provavelmente, então, com a memória. E a memória é, ao mesmo tempo, o que nos faz humanos e, talvez não por acaso, o que originou a poesia (as nove musas eram filhas de Mnemóssine, a Memória).
O que o fez cursar medicina e letras? Há um ponto de interseção entre estas duas disciplinas?
Fui estudar medicina especificamente para ser psiquiatra. Por causa da obra de Freud. Mas depois descobri que, tanto quanto gostava de lê-la, não gostava da psiquiatria na prática. Ou da clínica, ou da cirurgia. Tratava-se, na verdade, de uma aproximação filosófica, não médica, com essa obra. Não por acaso, ficara em dúvida entre fazer medicina e filosofia. Também não por acaso, seus textos que mais me interessavam eram os de cultura, senso lato, como "O mal-estar na civilização" e "O futuro de uma ilusão". Então, no meio do curso, sem saber mais o que fazer com a medicina, prestei outro vestibular, a passei a fazer também letras, à noite. Neste caso, fiquei em dúvida entre português, latim e grego. Porque o que eu queria, especificamente, era uma aproximação mais profunda com a língua, do mesmo modo que, com a psiquiatria - ou com a filosofia -, o que queria era uma aproximação mais profunda com as coisas. Acabei estudando alguns anos de grego clássico. O que permite um contato "anatômico" com grande parte das palavras da língua portuguesa, que, ou são inteiramente gregas, ou greco-latinas. E aqui está o que ambas as disciplinas (no sentido antigo, de ofício, de métier) têm em comum: junto com a ciência e a filosofia, a medicina (que não é ciência, mas um conjunto de tecnologias) e a literatura (ou as artes) são os quatro meios complementares para conhecer melhor a condição humana, excluída apenas a religião.

Sendo que, do meu ponto de vista, o conjunto está completo justamente por excluir a religião - que não é uma forma de conhecimento (epistéme), apesar de toda pretensão em contrário (a não ser histórico e cultural), mas de doxa (opinião: que aliás também é o significado de mytos em sua primeira acepção). Não é por acaso que o ensaio capital de Freud sobre a necessidade que a maioria dos seres humanos têm da religião se chama "O futuro de uma ilusão" (em que a religião é definida como "a neurose obsessiva universal da humanidade").

O que hoje soa "politicamente incorreto", dada a robustez do irracionalismo contemporâneo - que, ao lado da sua vertente contracultural (ou seja, do "religiosismo", do multiculturalismo como antiocidentalismo e do pop como seu complemento [pois o pop pode ser entendido como uma recusa da herança ocidental]), conta também com uma vertente acadêmica, principalmente nas ciências humanas, cuja pretensão maior, na verdade, cuja razão de ser, é justamente negar a distinção entre epistéme e doxa. Trata-se do relativismo (que nada tem a ver com a obra de Einstein).

Depois da barbárie em que o século XX afundou o sonho da razão iluminista, e depois que a contracultura transformou a crítica à cultura ocidental numa pequena ideologia, o irracionalismo trocou de sinal, no Ocidente, passando a ser algo positivo. Para isso contribuiu inclusive a má leitura deliberada da epistemologia contemporânea. Pois a filosofia da ciência teve de fazer frente ao desenvolvimento da própria ciência, especificamente ao princípio da incerteza de Heisenberg e ao fim do princípio da não-contradição da lógica clássica (algo não poder ser e não ser), pela dupla natureza onda-partícula do elétron (sendo que onda e partícula têm naturezas excludentes). Não cabe discutir isso aqui. Estou, no entanto, terminando um longo livro-ensaio, de 250 páginas, em que o faço (A alternativa da ilusão - breve história do irracionalismo contemporâneo).
Você escreve resenhas literárias. Recentemente na revista Inimigo Rumor, editada pelo Carlito Azevedo, havia um ensaio que dizia que resenha literária deveria ser feita por acadêmicos. Quem deve fazer resenha literária: o jornalista ou o acadêmico?
Ambos. Pois o jornalismo ganha com a espessura acadêmica. Enquanto a academia, no caso específico da crítica (análise) literária, ganha do jornalismo um pouco de gravidade, não no sentido acadêmico, mas justamente o contrário: no sentido "físico", de pôr os pés no chão - o que neste caso significa se reaproximar da pólis, da "cidade", do centro natural e original da cultura.
Como foi ter organizado o Bloomsday? Qual influência tem de Joyce e Augusto de Campos?
Embora conheça o Augusto desde os 18 anos, e o Haroldo desde outro tanto - invertendo a lógica geográfica, pois sou paulistano, fui apresentado ao Haroldo pelo Leminski, e não o contrário - tampouco participei da organização do Bloomsday de SP, entre 91 e 94, a convite do Haroldo, o organizador-mor, mas sim do meu grande amigo Mário Fuchs, dono do Finnegan´s Pub, em Pinheiros, onde o Bloomsday sempre aconteceu. Assim, minha participação na sua organização não se referia ao núcleo do programa joyceano, a cargo do Haroldo e da Munira Mutran, da cadeira de inglês da USP. Falando em cadeiras, meu trabalho originalmente incluía as próprias: pois quando comecei a ajudar o Mário Fuchs a organizar o Bloomsday, este ainda era um pouco amador. As pessoas se amontoavam junto ao balcão do pub, era posto um microfone sobre o tampo, e os participantes, um a um, iam para trás do balcão ler a parte que lhes cabia. Então instalamos um pequeno palco, um praticável, no segundo andar, retiramos as mesas e organizamos as cadeiras de modo a formar um pequeno teatro de arena, incluindo aluguel de aparelhagem de som. Isso permitiu a participação de músicos, como o Marsicano e o Daniel Szafran, além da apresentação de pequenas peças, principalmente de Beckett, com atrizes como Beth Coelho. Além disso, na época eu era sócio do Marcelo Tápia na editora Olavobrás, e o Bloomsday de SP passou a incluir, por iniciativa nossa, um livro-programa com todos os textos lidos durante a noite, que era - e ainda é - distribuído gratuitamente. E como o Marcelo Tápia já havia traduzido poemas de Joyce para uma pequena coleção da Olavobrás (ele deve ter sido o primeiro a traduzir sistematicamente a poesia de Joyce no Brasil), decidimos incluí-la no Bloomsday, até então centrado na leitura de passagens do Ulysses ou do Finnegans Wake. Para tanto, dividimos a tarefa entre nós, ficando o Marcelo Tápia com os poemas de Pomes pennyeach e eu com os de Chamber music, os dois livros de poemas Joyce. Assim, a cada ano traduzíamos um ou dois poemas de cada livro, líamos o original e a tradução durante a noite do Bloomsday, e incluíamos as traduções no livrinho.

Trata-se de uma poesia negligenciada em função da "épica" de sua prosa. O que é um erro, porque Joyce não é um mau poeta, muito ao contrário. É, sim, um poeta classicizante e de sutilezas, no sentido oposto ao de sua prosa. Mas seu classicismo nada tem de mero passadismo. Mas de certo sabor "atemporal". Quanto à prosa de Joyce, ela pouco ou nada contribuiu para minha poesia. Pois procuro clareza (ainda que, no meu caso, isso não seja igual a simplicidade). E Joyce buscava um aggiornamento completo da função romanesca, o que incluiu dar conta do funcionamento da mente e do mundo, do fluxo da consciência ao fluxo das ruas. Em termos microestruturais, isso o levou à polissemia das palavras-valise, das palavras-colagens. No entanto, a polissemia da poesia é de outra natureza. A prosa, cuja origem mais profunda é a épica, se centra no ele, ou melhor, no eles, na pólis. A poesia, isto é, a lírica, senso lato (pois toda poesia que fazemos, hoje - excluídas a épica, substituída pela prosa romanesca, e a poesia dramática -, é lírica), centra-se no eu. Não apenas no eu do poeta, mas também, a partir deste, no próprio eu da linguagem poética. Portanto, à poesia interessa antes conhecer de fato as palavras da língua, mais do que criar novas palavras. Ainda que eventualmente as crie. Mas será como resultado, não como ponto de partida. Daí que o grande interesse da poesia seja experimentar, não tanto novos vocábulos, mas novas potencialidade sintáticas - que nada narram. Neste sentido, apesar do modismo multiculturalista de "eliminar as fronteiras", prosa e poesia pouco tem a ver. Por outro lado, também escrevo prosa. Publiquei uma grande coletânea de contos há alguns anos (Os homens de ferro, Olavobrás), e acabo de terminar um pequeno romance (ou quase, por sua estrutura fragmentária), Enquanto o Messias não vem. E aqui, ao lado de Machado de Assis, Joyce é um grande, um enorme aprendizado, especificamente de repertório técnico de formas narrativas (para além da experiência da leitura em si).

Resta responder sobre a influência de Augusto de Campos.

Prefiro me referir à influência da poesia concreta (e substituir influência por aprendizado). Porque, se for para escolher um nome da sua fase heróica, considero o injustamente ofuscado Pedro Xisto o mais importante em termos de realização poética (particularmente nos Logogramas).

Quanto ao aprendizado proporcionado pela poesia concreta, é um aprendizado-problema. Portanto, um aprendizado que exige uma solução. Problema e solução que esboço a seguir (pois, de certo modo, apontam para a totalidade da poesia brasileira contemporânea).

Numa entrevista recente, Frederico Barbosa afirmou pretender "dizer coisas relevantes de modo relevante". Não obstante, é um epígono dos concretos.

Há uma tradição do verso moderno brasileiro, Bandeira-Drummond-Cabral-Murilo-Vinicius-Gullar, que foi abortada pelo concretismo. Pela primeira vez na história o falar brasileiro atingira um status de língua de cultura, com todas suas possibilidades socioculturais. Ora, para "dizer coisas relevantes de modo relevante" não há melhor instrumental - nem foi por acaso que, logo depois de os primeiros modernistas terem apontado e aberto o caminho, as duas gerações seguintes tenham atingido os patamares que atingiram. Pois não é exagero dizer que, de certa forma, a poesia brasileira nasceu em 22. Porém, repita-se, esse instrumental foi logo condenado pelos concretos, em nome de uma visão estruturalista de poesia que nenhuma importância dava à língua. "Poesia é linguagem". Não à toa, tratava-se de poesia de natureza predominantemente visual, apesar da palavra de ordem do "verbivocovisual". E internacionalista tout court (o que é um índice às avessas de sentimento colonial).

O afã internacionalista tout court do concretismo fica clarificado quando comparado à Bossa Nova - que não era internacionalista e foi muito, muito mais internacional que a poesia concreta. A Bossa Nova realizou, não por acaso, e de modo espetacular, a máxima paradoxal de Tolstói: seja regional para ser universal. Regional, não regionalista - nem regionalista, nem superficialmente regional. A Bossa Nova não pretendeu ser, nem internacionalista a priori, nem particularmente carioca. Mas, com certeza, pretendeu, entre outras inúmeras coisas, juntar ao samba o alto modernismo poético brasileiro. Ao fazer isso, além de carioca, foi brasileira, e para além de brasileira, mundial. Não deve ser por acaso.

Frederico Barbosa aponta, com razão, a mediocridade dos novos versejadores. Mas não consegue entendê-la historicamente. A revolução modernista, de Mário-Oswald, propôs, mas não realizou, por falta de talento dos dois, a transformação do falar brasileiro em linguagem poética, em dicção poética, em ritmo poético. Isso seria feito então por Bandeira, Drummond e cia. Um patamar altíssimo logo foi atingido (Cabral, mas não só), e a poesia brasileira, não mais portuguesa (na sintaxe), como fora até o parnasianismo, tinha tudo para se tornar uma das mais importantes do mundo, "dizendo coisas relevantes de modo relevante".

Com o fim do vanguardismo, os poetas voltariam ao verso pelo vácuo, por falta de opção. Mas o antigo patamar fora perdido. Grandes poetas como Ferreira Gullar (sendo o Poema sujo um dos ápices do verso moderno brasileiro) e Bruno Tolentino (há incontáveis versos mais que memoráveis em A balada do cárcere, por exemplo) conseguiram mantê-lo por serem da geração subseqüente à última dos grandes modernistas. Sendo que sua rejeição ao concretismo se explica pela consciência disso tudo. Enquanto a reaproximação dos novos poetas à tradição do verso moderno tem algo que não funciona. Daí a ausência de qualquer grande poeta nas novas gerações.

Sem querer alimentar a pseudo-discussão sobre letra de música ser poesia (não é, por serem de tradições e linguagens distintas), tal é o motivo de tantos ingênuos afirmarem, satisfeitos, que a melhor poesia brasileira dos últimos tempos está - ou estava, até a decadência recente - nas letras de música popular. É que a tradição do verso moderno brasileiro se manteve viva nas letras, enquanto era emudecida na própria poesia. Construção, de Chico Buarque, é Noel Rosa depois de se ter intoxicado de João Cabral. Garota de Ipanema - e toda lírica de Vinicius - é simplesmente a revolução modernista limpando de roldão a dicção aportuguesada das letras de música: "Olha que coisa mais linda...". A partir daí, a dicção brasileira está na MPB, mas não está na poesia, ainda perdida depois do vanguardismo e do pós-vanguardismo. A MPB salvou-se porque nada tem de visual. Afinal, se trata de música. E da forma canção. Portanto, uma vez que a revolução modernista chegou ao samba (mas não pelos clássicos do próprio samba: as letras de Cartola são ainda bastante "portuguesas"), ficou. Seu encontro maior chama-se Bossa Nova. "É pau, é pedra, é o fim do caminho...." Como isso seria possível sem Drummond? Sem Vinicius, que fez a ponte em sua própria biografia? É por isso que um compositor popular como Caetano Veloso diz que o mundo começou na Bossa Nova. Ele tem razão. Já no caso da poesia, esse "mundo" (isto é, o falar brasileiro feito linguagem poética) acabou no concretismo.

Não por acaso, o "admirável mundo novo", em termos especificamente verbais, era tartamudo. E, muito mais que eventualmente, trocadilhesco. No entanto, não se imagina Drummond, Bandeira ou Vinicius cometendo um trocadilho.

É portanto possível explicar porque a mediocridade relativa da poesia foi muito maior que a da lírica da MPB no mesmo período histórico (sendo que a mediocridade atual da lírica da canção advém de outras causas, mercadoglobarbarizantes, etc). E a resposta está dada pela diametralmente oposta relação com o "mundo" fundante e fundamental da língua-linguagem modernista. Portanto, notar e anotar a mediocridade em si pouco esclarece. É preciso historicizá-la. Pois ela é historicizável.

No entanto, em reação ao erro dos concretos, que foi tentar amputar uma tradição moderna para criar, ab ovo, uma nova, sem concorrências, o erro especular dos Gullar e Tolentino é não reconhecer que o concretismo pôs algo no lugar. Ou seja, não foi um Hitler na Polônia. Esse "algo", no entanto, se diz alguma ou muita coisa para a poesia brasileira senso lato, nada diz para a tradição do verso moderno estrito senso. A grande e relevante diferença, e não menor contradição, aqui, é que essa tradição do verso moderno já era, em si, a poesia brasileira.

É como o judaísmo em relação ao cristianismo: o judaísmo já existia 2000 anos antes de Cristo nascer, e poderia existir por mais 2000 (como, aliás, de fato continuou existindo) sem o cristianismo. O judaísmo já era monoteísta, humanista e moral antes de Cristo. A relação é unívoca: não há cristianismo sem judaísmo, mas há judaísmo sem cristianismo. E monoteísmo. Troque-se "monoteísmo" por verso moderno brasileiro: ele já existia, e existiria muito bem, sem o concretismo. Vice-versa não é verdade.

A diferença é que o cristianismo, a cristandade, tentou por 2000 anos extinguir o judaísmo, por todos os meios possíveis, da conversão forçada à expulsão à eliminação física à perseguição legal e cultural, etc, mas não conseguiu. No caso do concretismo, quase conseguiu. Supondo que a cristandade tivesse extinguido o judaísmo como conseguiu extinguir a religião greco-romana, o mundo seria mais pobre, mas não seria pura pobreza. Eis a síntese histórica do concretismo: não significa pobreza, em si (muitíssimo ao contrário), mas significou empobrecimentos outros.

No caso da religião, se trata de preservar a diversidade: pois duas religiões não ocupam ao mesmo tempo o mesmo lugar no espaço da cultura. Porém só há uma poesia brasileira contemporânea, apesar de tudo. Aliás, esse foi um dos motivos do afã absolutizante do movimento - e de outros movimentos. O modernismo, de fato, estava certo ao se voltar para a totalidade da poesia brasileira. Então, por que o modernismo não foi empobrecimento e o concretismo foi, relativamente? Porque o modernismo agiu sobre a unidade língua-linguagem. O concretismo, não: ecoou a linguagem e emudeceu a língua. Portanto, enquanto o modernismo foi um avanço absoluto (nada ficou de fora, tudo foi incorporado), o concretismo foi um empobrecimento relativo.

Além disso, a poesia brasileira contemporânea, apesar da diversidade, é uma só. A comparação, mais uma vez, pode ser feita com o cristianismo: diversificado (catolicismo, protestantismo, gregos ortodoxos, coptas, etc), mas cristão. Ora, se Cristo foi só um, e se sua mensagem é verdadeira, a existência de mais de uma igreja cristã é ridículo, é absurdo, no limite, é infame, pois compromete a própria verdade cristã. Não há, aliás, dois judaísmos ou dois islamismos (xiitas e sunitas são divisões políticas, relativas à sucessão de Maomé: numa irônica consubstanciação, a comunidade islâmica como um todo, em árabe, se diz Umma). Há, portanto, a necessidade, a obrigatoriedade de se fazer uma síntese.

Não se trata de eliminar a diversidade. Nem de preservá-la.

Trata-se de não encarar a diversidade passivamente. Mas, insista-se, nem para a preservar a priori (pois a poesia brasileira é só Uma), nem para a eliminar (o que é historicamente falso, e talvez empobrecedor - talvez, porque diversidade não é riqueza em si ou necessariamente: há unidades muito ricas [como o judaísmo] e diversidades muito medíocres [como a música pop]).

Sendo que a última frase é verdade em tese: no caso específico da poesia brasileira, a diversidade deve ser enriquecedora - mas apenas se for tomada como um problema, não como uma solução em si.

Um problema que começa com a diversificação concretista em relação ao modernismo e se acentua com a poesia "marginal". O resto é conseqüência - e circunstância (a época facilitária, mercadológica, midiática, pop, multiculturalista, irracionalista, egóica, "andy-warholiana", etc, etc, etc).

Paulo Leminski representa o epítome de toda essa situação. Quando ele mais convence, e não apenas aos especialistas, é quando ele é mais "modernista". Quem o conheceu sabe de seu natural talento verbal. O talento verbal às vezes é só oral (têm-se um orador), às vezes é oral e literário (têm-se um poeta). Leminski tinha tudo para ser um grande sucessor dos grandes do modernismo senso lato. O falar brasileiro e a poesia em português o "obedeciam", para citar Yeats. O que ceifou o vôo ainda maior que Leminski poderia ter dado foi o momento histórico. O que o ceifou foram os trocadilhos e haicaísmos do concretismo somados à "esperteza" da marginália anos 70 (que também rejeitou o alto modernismo brasileiro, ainda que por motivos contraculturais).

Josely Vianna Baptista defende que não é mais possível fazer uma antologia de poetas, mas apenas de poemas.

Por que havia tantos grandes poetas no Brasil nos anos 60, depois mais nenhum surgiu? Por que, em paralelo, foi aí que surgiram muitos dos maiores letristas da história da música popular? É possível fazer uma antologia de compositores. Aliás, várias.

A má versação vem da malversação (dilapidação, má administração). Não importam mais os bons ou os maus versos. Eventualmente, até um macaco, digitando por anos num teclado, produzirá um ou dois bons versos. O diagnóstico de JVB é perspicaz, mas é somente um diagnóstico. Resta entender por que não há mais grandes poetas. O motivo está no mal, não no mau (ou bom). Na malversação da herança modernista.

Os bons versos eventuais nada dizem quanto a isso. Por outro lado, isso explica inteiramente porque só se pode fazer antologias de poemas - isto é, de bons versos eventuais.

Sendo que "bom" não é o que eu gosto. É o que não está muito abaixo do repertório histórico daquela linguagem naquele país.

Alardeia-se a "competência" de muitos novos poetas. Mas tal aparente competência não passa, como regra, de pastiche.

Acontece que o repertório histórico dessa linguagem neste país é a tradição do verso moderno brasileiro. Na qual a competência propriamente literária se funde inextricavelmente a uma competência lingüística em relação ao português falado no país.

À falta desta, trata-se de uma paródia. Uma paródia cruel, pois literaliza o que era, senão a coloquialização em si, a sintonização da poesia à coloquialidade (nada a ver com os poetas "pops": que apenas fazem um pastiche mais pobre).

Não havendo talento nessa seara, como havia em Bandeira e Drummond (e os pôs no lugar em que estão: os melhores no âmago), e em Leminski, mas não havia em Cabral, a saída é cabralina. Ou seja, a alto-repertorização do verso modernista (afinal, Cabral, por mais complexo que seja, nada tem, jamais, de parnasiano). O que muitos confundem com pura e simples "literalização".

Isso quanto à poesia em versos, que é o que todo mundo faz hoje em dia, salvo as exceções, que são as exceções. Estas, na maioria, fazem pastiche do concretismo, da poesia semiótica, da graforréia do Edgar Braga.

É possível agora entender, por exemplo, o Haroldo de Campos em versos: é alto repertório, mas não pela alto-repertorização do verso modernista, como em Cabral. Daí a grandeza, a pertinência e a abrangência de um Cabral, e o idiossincratismo de um Haroldo. E de tantos outros.

Nesse contexto, é preciso hoje ter em vista o rebaixamento do português falado no Brasil. O que torna impossível uma readequação à la modernismo. Nem há necessidade. O modernismo foi o momento de fundação da poesia brasileira. Assim será entendido no futuro. O que veio antes será considerado período de formação, uma poética brasileiro-portuguesa. Não é por acaso que Gregório (se foi um só) escreveu também em espanhol, que Vieira fosse português, que os árcades escrevessem como se escrevia em Coimbra. Castro Alves é brasileiro na temática. Há os românticos, com seus indigenismos. Mas isso não os torna necessariamente mais brasileiros do que um pintor holandês que pinta índios.

A poesia brasileira começa no modernismo, tanto quanto a italiana em Dante (a tal ponto de o florentino de Dante ter se tornado a própria língua italiana). A diferença de séculos entre nosso caso e o italiano se explica facilmente: pois somos um país do Novo Mundo.

Em todo caso, a partir daí já não é necessário um aggiornamento por década à coloquialidade.

Cabral, como eu disse, já significou a alto-repertorização do verso moderno brasileiro, em que a língua brasileira, seu ritmo, está incorporada. Com o rebaixamento posterior do português falado no Brasil, Drummond será, cada vez mais, nosso Dante.

Mas note-se que tal rebaixamento não é verdadeiro para Portugal - que fica na Europa da União, no centro da globalização, etc. O problema central do português no Brasil é político, simplesmente: má educação pública. Pouca e má leitura. Desconhecimento puro e simples da norma. Políticas populistas de compensação, como o baixo construtivismo estatal, que afirma não haver erro de português, e que o ensino tem de ser adaptado ao repertório do aluno, o que é infâmia e nonsense: pois o ensino serve para mudar o repertório. Junte-se o caos urbano, a favelização, a ruralização cultural dos subúrbios pela migração intensa e forçada, mais o consumo enviesado de produtos de entretenimento. Com exceção do último, nada disso vale para Portugal. Não se trata, portanto, de inevitabilidade histórica, mas de miséria política.

O que não muda o resultado.

Mas muda a compreensão do fenômeno. A comunicação da poesia com a "massa", sonho modernista ("A massa ainda comerá do biscoito fino que fabrico"), tornada paródia nos concretistas, que desejavam a comunicação sintética do slogan (apud Pignatari), é impossível. Portanto, esqueça-se a "massa".

Sendo que a velha questão cultura de massa x alta cultura é, no limite, falsa. Drummond é alta cultura. Vinicius é alta cultura. Mas não estavam distantes da cultura média do país. A Bossa Nova é alta cultura em música popular. Logo, alta ou de massa? Shakespeare, como se sabe, era popularíssimo em seu tempo, assistido por prostitutas, barqueiros e também banqueiros. Tornou-se alta cultura muito depois. No entanto, é o mesmo Shakespeare.

O verdadeiro problema é o rebaixamento ao lixo da cultura popular pelo mercado. A ponto de a própria cultura popular já não existir. Ela, como uma convenção fascista ou um jogo de futebol, é "de massa". Ora, o que é "de massa", por definição, só pode ser espetaculoso, na linha do circo romano. Rock. Entretenimento. Portanto, no limite, a verdadeira questão é arte x mercado. O mercado visa o lucro imediato (e massivo: economia de escala). A arte, o diálogo mediato. Nada têm em comum.

Como me escreveu o grande artista plástico Francisco Faria, "a modernidade, que veio para se aproximar da vida e das ruas, foi engolfada por uma excessiva vulgarização, e virou parte pop, parte slogan." Na primeira metade da frase ("aproximar [a arte] da vida e das ruas") estão os grandes modernistas: alta cultura ou popular?

Como se não bastassem todos esses problemas estético-histórico-culturais, há ainda o problema sociológico do estofo para a estafa. Estofo que a multidão de apressados que andam por aí, com suas questões pós-modernóides, parâmetros modistas, fraquezas contemporâneas, hábitos pop, hedonismo robusto e, no caso específico da poesia, não pouca literatice, recorrendo ao budismo de butique porque o mundo está muito complicado, simplesmente não têm.

Afinal, não é por nenhum acaso que, depois da Segunda Guerra, o mundo ocidental como um todo parou de produzir os gênios que produziu à mancheia, ininterruptamente, em todas as áreas do conhecimento e da arte, desde o século XVI. Pense-se num grande do século XX e se verá que ele nasceu antes da Segunda Guerra. Seja Drummond, Cabral, Sartre, Camus, Popper, Picasso. Não importa. A lista é infinita, pois absoluta: nenhum nasceu depois da Segunda Guerra. Inclua-se todo mundo. Os grandes cineastas. Depois, compare-se com John Lennon e cia. Ou seja, os baby-boomers, os nascidos logo após a Segunda Guerra, que fizeram 68, o pop e o resto, à sua imagem e semelhança. A primeira metade do século XX (1914-1945) foi demais para a cultura ocidental.

Mas isso tampouco é desculpa. É preciso, simplesmente, redobrar o esforço. Ninguém escolhe o tempo em que nasce. Age e reage de acordo, ou não.

O excesso de diversificação atual torna tudo igual, tudo igualmente pertinente e, portanto, tudo irrelevante. O caminho é outro: a história. Nem o beco sem saída cheio de "produtos" diversificados, nem o futuro distópico do pós-tudismo.

É mais ou menos como o ambientalismo, vulgo ecologia: preservar para as gerações futuras. Pouco importam os vivos. Preserva-se para que os que ainda sequer existem possam ter o melhor do que temos e tivemos.

O tempo estético não é como o tempo pessoal. Os anos 70 podem estar distantes, mas muitos sonetos de Camões, do século XVI, parecem ter sido escritos ontem. São os menos conceptistas, os mais clássicos. Não têm uma vírgula datada. O vocabulário é simples, a sintaxe, natural. Não por acaso. Clássico é aquilo que é atemporal. A saída, portanto, está em buscar um novo classicismo. Um classicismo moderno - quanto à poesia verbal (quanto à poesia brasileira contemporânea, lato senso, a saída é uma grande síntese).

Certa simplicidade de base, à qual se incorporem elementos da tradição e da modernidade (como a carga paronomástica). Sem nenhuma proximidade com os atuais falares deteriorados do português do Brasil. Poucos podem ter tal proximidade: apenas a norma culta é constante (daí, aliás, ser norma), a deterioração é, por definição, compartimentalizada. Cartola, na Mangueira, compunha como Chico Buarque no Pacaembu. Hoje, não se entende o que os "manos" falam nas favelas. Compartimentalização: muito do que se fala nas favelas vem do idioleto das prisões.

Trata-se, portanto, de questões estruturais de coloquialidade, melhor, do falar brasileiro. Mário de Andrade, numa carta famosa, tripudiava de um Drummond iniciante que, num poema, dizia que pessoas chegavam à estação. Mário pergunta: à estação de Lisboa ou do Porto? Pois, se for no Brasil, chega-se na estação.

Daí chegamos a Eliot, que diz que a função social da poesia é manter vivas as potencialidades da língua. Ele não pensava em meu "ambientalismo poético". Mas, não por acaso, parece pensar. Pois, ao fim e ao cabo, a literatura que importa sempre é uma ponte extensa entre passado e futuro, passando pelo vau estreito do presente. Passar pelo presente é diferente de ficar nele. O que muitos fazem hoje é tentar, pateticamente, atrelar-se ao presente. Não têm e não terão estofo para ficar. Como boa parte das canções de Caetano. Ao contrário das canções do Chico - que, cada vez mais, serão indiferentes das de Noel. No futuro, não fará diferença a distância de décadas que eles têm. Noel nos anos 30, Chico nos 60. Será tudo o bom samba do século XX. Isto é, o século XX em forma de samba. Já coisas como Alegria, alegria, Odara, Tigresa, Divino maravilhoso, as tentativas meio "culturalistas" meio mercadológicas do Caetano de ser a antena do instante, envelhecerão como vinho ruim.

Portanto, a reaproximação à coloquialidade é uma causa perdida, mais, é uma causa falsa. Foi a grande causa no modernismo. E justamente por ter sido, não é mais. Uma vez feita a revolução, espera-se que a revolução não precise mais ser feita.

Não obstante, e não por acaso, o verso livre pós-modernista é muito diferente do verso livre pré. Já havia o verso livre, isto é, poesia sem métrica. Mas não havia a polirritmia significante do modernismo. Sendo que tal polirritmia não é anárquica, mas estruturada sobre elementos da tradição literária portuguesa e orgânica com os ritmos do falar brasileiro (Poema sujo).

Voltando enfim à questão da síntese, que é, por tudo isso, muito mais importante que a da diversidade. E é, digamos, uma retomada de certos ideais revolucionários em outro contexto, o da revolução já vitoriosa. Portanto, não têm mais um caráter de fato revolucionário. Nem por isso deixam de ser relativos à revolução.

O modernismo foi revolução, síntese e gênese. A síntese é outra vez necessária, para reprover a gênese.

A grande poesia brasileira do futuro, depois da amputação concretista da linha evolutiva do verso modernista, do golpe de 64, que amputou as ligações orgânicas entre alta cultura e cultura popular, que vinham se fortalecendo, não por acaso, desde a síntese modernista, depois da falência do ensino público, da babel midiática e da globarbarização, essa grande poesia tem de ser um novo classicismo, que incorpore o melhor da grande diversificação modernismo-vanguardismos dos anos 50. Não a diversidade pobre, "favelizada", de gueto, de hoje. Os literalizantes para cá, os "pops" para lá, os new-beats, a poesia "feminina" dessa e daquela, a poesia urbana zona-zul do... Redutos ecológicos não são grandes florestas. Tampouco existem para guardar diversidades contemporâneas. Hoje, a Austrália é muito mais diversificada, na sua biosfera, do que antes da chegada dos ocidentais com seu animais. Mas o que se quer preservar são as espécies endêmicas. As espécies "clássicas", as que definem a especificidade ecológica do lugar e são a razão de ser de sua preservação. Pouco importa ser raro. Ao contrário: quanto mais raro, menos "de massa", mais importante. O que é "de massa" e/ou "da hora" não importa preservar. Tampouco o que é mumificante. Mas o que está vivo e é ligado a um passado profundo.

No caso biológico, a ligação é congênita. No caso cultural, não. Todos nascem ignorantes. É preciso aprender e apreender o passado. Da maneira mais profunda possível. Mas não como um paleontologista ou um taxidermista. E sim como um biólogo. Pois queremos exemplares vivos de linhagens antigas. Exemplares que, em seu presente, sintetizam e atualizam o longo passado da sua linhagem. Ou da sua linguagem.

Portanto, não estou falando da síntese impossível da diversidade contemporânea. Impossível, de fato - e desimportante. Estou falando da síntese da diversidade histórica. Da diversidade do passado imediato. Do que importa nesse passado.

A diferença é absoluta. Pois a síntese possível do passado imediato, da tradição do verso moderno e da ainda mais recente tradição visual (sendo que síntese não é colagem), não significa a geração de mais uma "diversidade" entre as tantas do momento. Ao contrário. Será uma continuidade vertical em meio ao mar poluído da diversidade horizontal contemporânea, que a perfurará como uma ilha vulcânica a emergir do fundo do mar.
Você recebeu a menção honrosa pelo prêmio "Redescoberta da literatura brasileira", da revista Cult. Qual a importância de um prêmio literário?
Não sei. Se houver dinheiro envolvido, é o dinheiro. Por exemplo: embora as pessoas não se dêem conta, este é o principal motivo de o Nobel ser o maior prêmio. Pois tem a maior dotação, em torno de 1 milhão de dólares. Principalmente quando se leva em conta que o Nobel de Literatura foi transformado numa espécie de prêmio de consolação multiculturalista. O que não é uma homenagem às literaturas nacionais premiadas, como crêem os ingênuos, os bem-intencionados e os hipócritas, mas uma des-homenagem. Pois fica implícito, pela decorrente rotatividade do prêmio, que se ganha porque não se é ocidental e/ou branco. No entanto, ninguém jamais ganhou um Nobel de física por ser uma cientista mulher, ou negra, ou, melhor ainda, mulher e negra, mas por ser um grande cientista. A desculpa é que não há critérios tão objetivos para julgar a literatura como há para a ciência. Ora, então o caminho seria tentar estabelecer um critério mínimo de comprovação de qualidade literária, por mais difícil que isto seja. Em vez, aproveita-se alegremente dessa dificuldade para tentar compensar as culturas não-científicas por não poderem jamais receber os Nobeis científicos. O resultado é que, assim, o Nobel, ao mesmo tempo que glorifica a ciência, reduz a literatura a prêmio de consolação. O que, no entanto, combina muito bem com a má-consciência sueca pós-contracultural e, mais genericamente, com a ocidental - para não falar do multiculturalismo, do relativismo, do irracionalismo, do...

Voltando à pergunta, se não houver dinheiro, pode ser a possibilidade de publicação (caso do concurso da Cult). Por fim, é a notoriedade.

Os prêmios literários foram inventados na Grécia. Ali, os trágicos participavam de concursos cujo prêmio era a encenação da peça como espetáculo público, bancado pela pólis. A cidade patrocinava o concurso, o ganhador era encenado e a cidade assistia à peça e ao desenvolvimento de sua dramaturgia. Não por acaso, além da célebre função catártica da tragédia (e de sua origem em festas religiosas populares do culto dionisíaco e órfico), os próprios temas eram escolhidos pelo concurso, sempre versando sobre a tradição lítero-mitológica da própria cidade. O concurso, em suma, era parte orgânica da cultura da pólis. Algo equivalente deveria ser o propósito de qualquer concurso literário realmente significativo. O que leva à uma sonora gargalhada. Pois isso não cabe no mundo contemporâneo. Ainda que, de alguma maneira, tenha cabido até o século XIX, por exemplo, no caso dos vários salões parisienses de pintura.

O problema, em suma, não está nos concursos, que são sintomas da natureza da cultura contemporânea. Aqui, só resta citar o velho Karl Marx: "Tudo que é sólido se desmancha no ar."
No poema História compacta (mas completa) do Brasil as palavras casa grande & senzala entram numa metamorfose até formar condomínio & favela. O que deve ser motivo de poesia? O que é poesia? O que é poema?
Tudo pode, logo, tudo deve ser motivo de poesia, ou seja, objeto do poema, desde que haja uma forma que o justifique. Pois a poesia é a linguagem verbal em que significado e significante, forma e conteúdo, referente e referência, se impregnam mutuamente, se co-determinam, se atritam, se esclarecem e se (re)constróem. Neste poema em particular, usei uma ferramenta de computação para evocar graficamente a passagem do tempo no próprio corpo das palavras. Desse modo, "casa grande & senzala" se transformam materialmente em "condomínio & favela" - do mesmo modo que, através da história brasileira, o que é por elas nomeado foi transformado um no outro. E apenas para dar lugar a uma forma mais moderna da mesma exclusão: trata-se, assim, de certa maneira, da tradução gráfica da expressão latina mutatis mutandis, ou seja, "mudado apenas o que deve ser mudado" - para que o resto continue igual. Daí o poema se restringir às quatro palavras, enquanto o grande "silêncio" assim criado em torno delas se expande até incluir todo o país. Muitos tratamentos desse tema correm o risco de parecer panfletários. Não é o que ocorre, por exemplo, nas mãos de um João Cabral. Por isso mesmo ele é João Cabral. Tudo depende, portanto, do resultado, não das intenções. A arte, assim como a ciência ou o esporte profissional, nada tem de democrática, ao contrário do que pretende o populismo "politicamente correto" .

Daí, aliás, a necessidade de considerar qualquer lixo algo pertinente.

Para isso, tem-se de anular as distinções entre arte pop (senso lato) e de alto repertório, por exemplo. Pois já que não se pode dizer que o pop seja alto repertório, enquanto o "politicamente correto" exige o nivelamento, então não existe (ou não deveria existir) o alto repertório. Principalmente porque, historicamente, ele sempre esteve a cargo (horresco referens) de "homens brancos" - a maioria, inclusive, mortos. Como ficam as "dicções femininas"? As "dicções homossexuais"? As...
No poema A casa da idéia se é tomado pela filosofia do objeto. Qual casa (objeto) é o lar do poema? Qual casa é o lar do poeta? Fale-nos do poema.
Mais do que filosofia do objeto, creio que se trata da heurística da palavra. Esse poema, não por acaso, integra marginalmente a série principal em que venho trabalhando nos últimos anos, chamada consubstanciações.

O velho Aurélio define heurística como "1. Conjunto de regras e métodos que conduzem à descoberta, à invenção e à resolução de problemas [Cf. heureca.]; 2. Procedimento pedagógico pelo qual se leva o aluno a descobrir por si mesmo a verdade que lhe querem inculcar; 3. Ciência auxiliar da História, que estuda a pesquisa das fontes." Isto se aproxima razoavelmente do que pretendo dizer ao afirmar que a poesia é uma forma de conhecimento. Primariamente, da própria linguagem verbal.

Através de toda literatura ocidental, desde o Gênesis (2:19), na metade judaica de nossas origens, e os pré-socráticos, na metade grega, há referências e especulações sobre a relação entre nome e coisa nomeada. Na poesia metalingüística, são simplesmente inumeráveis os versos sobre a nomeação ideal, a nomeação verdadeira, aquela do mito adâmico, da língua pré-babélica. Flaubert, o prosador que tratava cada parágrafo como um poeta trata um verso, reescrevendo-o vezes incontáveis, em função do ritmo de um vírgula facultativa, por exemplo, refere-se a "le mot juste", a palavra exata. Em termos poéticos, a palavra exata deve cumprir duas premissas distintas de exatidão: em relação ao próprio poema e em relação àquilo que nomeia. "Flor é a palavra flor", diz Cabral. Pois a palavra flor re-presenta, isto é, presentifica, o objeto flor. Não por acaso, popularmente existe a crença arcaica nesse poder presentificador das palavras, de onde as palavras nefandas, literalmente, que não devem ser ditas: assim, até há pouco tempo não se dizia a palavra câncer, ou, se por um acaso ela era dita, batia-se na madeira ou recorria-se a outra superstição qualquer, para "anular" o efeito presentificador da palavra. Símbolo, em grego, significa "ir junto", do prefixo sym, com, em paralelo, junto, e do verbo boléo, lançar. Um símbolo é algo que nos lança ao que é simbolizado, ou que o lança até nós. O problema é que as línguas naturais, as línguas históricas, são convencionais. A palavra casa não é determinada pela coisa casa. No entanto, há um tipo de palavra que guarda uma relação direta de causa e feito entre coisa e nome, as onomatopéias. Assim, a palavra sussurro, de certa forma, é em si um sussurro. Por outro lado, a escrita começou a partir dessa relação formal de causa e efeito. Tanto nos ideogramas orientais quanto na escrita fenícia, que está na origem dos alfabetos hebraico e grego (e este do latino), no Ocidente. Ora, na escrita fenícia, o círculo que mais tarde dará origem ao nosso o significava "olho". Uma linha ondulada, que está na origem de nosso m, significava "água". Uma cruz, que está na origem de nosso t, significava "marco, baliza". Ora, em português, a palavra olho tem um par de oo: OlhO. A palavra mar começa com a água ondulada do m, e se completa com ar, ou seja, o vento que ondula a água e o próprio céu contíguo ao mar. A palavra morte tem, incrustada no imperativo de morar, uma cruz, morTe - e o túmulo é a "morada" inevitável.

Voltemos à heurística, que em sua primeira acepção significa "conjunto de regras e métodos que conduzem à descoberta, à invenção e à resolução de problemas [Cf. heureca.]". O palavra olho não tem dois oo porque o círculo era "olho" em fenício. Porém a relação de causa e efeito das onomatopéias é verdadeira. Trata-se então de um tanto de descoberta e outro tanto de invenção, visando à resolução poética do problema cultural, senso lato, da nomeação, que interessa desde a cultura popular até a epistemologia, passando pela filosofia e a ciência - que, não por acaso, onde pôde, ou seja, nas ciências duras, como a física, abandonou o código verbal pelo matemático. Física vem de physis, que significa natureza e também origem. A física é portanto o estudo das coisas da natureza e da natureza das coisas. Sendo que a linguagem humana por excelência é a verbal. O que a poesia busca, de maneira mais ou menos consciente, dependendo do poeta, mas de modo invariável, é dar à linguagem verbal um caráter natural, físico, ou seja, a capacidade de nomear a natureza das coisas através da simples nomeação das coisas da natureza (na poesia as palavras se cristalizam). O que é possível, não como fato científico, mas como realidade estética.

Minha série consubstanciações faz isso objetivamente (cada poema partindo de uma palavra e descobrindo nessa palavra prováveis ou possíveis índices e ecos de uma nomeação arcaica, fundante, "verdadeira", tanto em aspectos formais, sonoros e gráficos, quanto de seus formantes semânticos). Já o poema A casa da idéia aborda o problema por um ponto de vista complementar, justamente de negação da possível verdade das consubstanciações - para então discorrer não mais sobre o problema da nomeação, mas sobre a natureza do nomeador, ou seja, nós.
Você - assim como muitos poetas, mas citaria Glauco Matoso - tem um humor bastante corrosivo. Com perdão da corrosão e da cacofonia, como tornar a poesia algo menos empolado, menos ABL?
A palavra idiota vem do grego idiotés, que significa privado, particular, próprio. É o oposto de político, que significa público (de pólis, isto é, a cidade). A conotação de estúpido, de cretino, que a palavra idiota adquiriu vem do fato de que, para os gregos, só era possível haver vida inteligente na vida política, na vida pública, ou seja, na participação nos negócios da pólis, o que exigia boa educação, retórica, esperteza, conhecimento de história, de filosofia, de armas, em suma, a busca da areté, que significa virtude, excelência, e era o objetivo da educação grega (daí o "mens sana in corpore sano", mente sã em corpo idem, ideal grego aqui traduzido para o latim). Por outro lado, a vida idiotés, a vida privada, a vida doméstica, ou seja, a vida retirada, na qual a dedicação é apenas aos interesses particulares, só podia portanto gerar o que Marx nomeia, não por acaso, como a "idiotia rural" - expressão em que a palavra idiotia possui simultânea e sinteticamente o sentido antigo e o moderno.

No mundo contemporâneo, o que existe é um paradoxo: a idiotia urbana. Pois o pequeno materialismo (há o grande materialismo da ciência) do capitalismo tardio, traduzido no consumismo como prática e como crença - como sub-ideologia - centrais, se baseia no narcisismo, de que o hedonismo e o juvenilismo são correlatos. Além do mais, a contracultura, outra pequena ideologia, centrada na negação da tradição moderna (no sentido histórico) da cultura ocidental, impôs um corte na percepção da dívida existencial que cada geração tem para com todas que a antecederam. O resultado é uma "cidade", uma pólis, uma cultura de idiotas, em que cada cretino se dedica orgulhosa, militante e ignorantemente aos seus pequenos interesses pessoais imediatos - tanto em termos práticos quanto "intelectuais". Não é por acaso que na expressão "iniciativa privada" a palavra privada, em grego, se diga idiotés. Poesia é uma forma de comunicação. Comunicar é, denotativamente, tornar comum. Comum que é do campo semântico do político. A poesia, portanto, pode ser tanto idiota, ao servir apenas ou fundamentalmente para alimentar o ego do autor, ou política, ao conseguir se comunicar com a cultura a que pertence - o que portanto nada tem a ver com arte engajada. O humor, na poesia, serve a dois propósitos políticos. O primeiro é que, de uma forma ou de outra, de maneira mais ou menos explícita, ele sempre se dedica a apontar a idiotia. O segundo é que o riso, além da função catártica (e portanto política...), também é em si uma forma de comunicação. Por outro lado, neste mundo é impossível não levar tudo, infelizmente, muito a sério - e ao mesmo tempo é quase impossível levar alguma coisa a sério. Portanto, enquanto eu mesmo me divirto com meus poemas, também incito os que me lerem a rir - ainda que apenas mentalmente. Melhorando assim a chance de que a poesia cumpra seu papel de comunicar-se. Enfim, respondendo agora diretamente à pergunta, trata-se de tornar a poesia menos idiota - em todos os sentidos.
Para que serve a poesia?
A resposta é uma soma das respostas 1, 7 e 8: conhecimento, comunicação (restando acrescentar que a dimensão política inclui o passado, ou seja, a herança recebida, o presente e o futuro, ou seja, a herança a ser deixada) e criação de beleza.
Tem alguma epígrafe ou mote?
Dois. Um, atribuído ao pintor grego Apeles: nulla dies sine linea, isto é, "nem um dia sem uma linha" - poesia é uma disciplina. O outro, de Mallarmé: "Considero a nossa época um interregno para o poeta, que não pode se misturar a ela, caduca demais, e em ebulição preparatória, para que ele tenha outra coisa a fazer além de trabalhar em segredo com vistas a mais tarde ou a jamais."

O que, de início, pode parecer um convite à idiotia. Mas se revela afinal o contrário. Pois se trata de se retirar da cidade de idiotas urbanos visando, justamente, livrar-se da idiotia, para assim poder tentar realizar um trabalho politikós.

Não por acaso, em certa passagem Sêneca diz a mesma coisa, ou seja, que em tempos de barbárie o filósofo, para preservar a filosofia, deve, em vez de freqüentar a pólis, afastar-se.
Quais as suas influências literárias?
Como me referi acima, prefiro falar em aprendizados, em vez de influências. Pois influência tem algo de passivo - e me parece mais pertinente para se referir a algum "guru", o que nunca tive. Quanto ao aprendizado, de uma vasta lista, não é difícil destacar Camões, Bandeira, Drummond, Cabral, o Gullar de Poema sujo, os vários concretistas, em especial Pedro Xisto, a poesia grega arcaica (principalmente Arquíloco), a poesia do Velho Testamento, o Edgard Poe de O corvo, Eliot, Pound, Maiakóvski, Mallarmé e, the last, not the least, Machado. Não em sua poesia, evidentemente, que é muito ruim, mas em sua prosa, tão magnífica que bastaria, aqui, um de seus aspectos, o virtuosismo sintático, o controle absoluto da frase, aliado à uma ironia sublimemente inteligente. Joyce declarou que, a certa altura, descobriu poder fazer o que quisesse com a língua inglesa. Yeats, como citei acima, escreveu que as palavras da língua inglesa lhe obedeciam. Junte-se as duas coisas e temos o Machado de Memórias póstumas e de contos como O cônego ou a metafísica do estilo - cujo título, aliás, comprova sua pertinência neste contexto.

No entanto, teria, na verdade, de me referir ao conjunto da poesia brasileira pós-22. Sendo que o conjunto, aqui, é o conjunto - cuja natureza é diferente da mera soma das partes.

Posso afirmar isso porque passei pela experiência incomum de ler, em seqüência, praticamente todo conjunto da poesia brasileira do século XX, mais especificamente, entre 22 e 92, o que foi minha experiência poética mais importante.

Isso se deu por acidente. Minha namorada então estava na graduação da Letras da USP e fazia um curso com o Augusto Massi. Eu não era mais aluno da faculdade. Como trabalho de final de curso, o Massi propôs que os alunos montassem uma antologia poética de poesia brasileira contemporânea. O critério poderia ser temático, cronológico ou temático-cronológico. Nessa época, depois de abandonar a medicina e a letras, pois não tenho vocação para a carreira acadêmica, tive de "ganhar a vida" (em todos os sentidos) como redator publicitário. Eu acabara de sair de uma agência (felizmente, também não tinha vocação para isso) com algum dinheiro no bolso e fazia, então, um ou outro free lance para o dinheiro render por mais tempo. Ela, que além de estudar trabalhava com horário fixo, pediu-me para fazermos a antologia juntos. Começamos por nossas bibliotecas particulares e logo descobrimos um tema incomumente recorrente: o da "pedra". Além da pedra drummondiana e das pedras cabralinas, o tema aparecia e reaparecia em virtualmente todos os autores, com importância. Decidimos então por uma antologia temática. Como, porém, o tema parecia surpreendentemente ubíquo (e como eu tinha tempo), decidimos testar essa ubiqüidade não fazendo um recorte cronológico. Ou seja, a antologia incidiria sobre toda a poesia brasileira do século XX - que começa em 22.

Fizemos então um belo trabalho bibliográfico, juntando aos não poucos volumes de poesia brasileira de nossas duas bibliotecas o que pudemos retirar da biblioteca da Letras da USP, da Mário de Andrade e da biblioteca particular do poeta e editor Marcelo Tápia, além do obtido em visitas aos inúmeros sebos de Pinheiros e aos principais do centro da cidade (um volume que me lembro ter encontrado num sebo de Pinheiros nessa ocasião foi o raro primeiro livro de Bruno Tolentino, Anulação e outros reparos, com apresentação de José Guilherme Merquior, editado pela Massao Ohno em 1964).

Juntamos, enfim, várias centenas de volumes sem qualquer distinção de qualidade poética, o que incluiu todas as obras completas que pudemos montar. Por exemplo, eu tinha tudo da última fase de Edgard Braga, que havia ganho de amigos comuns, como o Régis Bonvicino (assim como as obras completas do próprio Bonvicino, incluindo suas primeiras edições, do autor). Como Braga foi um poeta longevo que acompanhou, um tanto como companheiro de viagem, todos os movimentos desde a segunda geração modernista, passando pela de 45 (para acabar um poeta "concreto"), faltavam suas edições do Clube do Livro paulistano dos anos 40 - o que conseguimos. Obviamente, as obras completas das Cecílias, Drummonds, Bandeiras, não foi problema (como não foram os "novíssimos" de todas as latitudes). Mas queríamos juntar a amostragem mais completa possível. Noutro exemplo, Ronaldo Azeredo, o benjamin dos concretistas, só publicou um livro, nos anos 80, porém essa edição foi embargada pelo autor. Tínhamos vários exemplares da revista Invenção, dos anos 60, a revista oficial do movimento, em que aparecem seus poemas mais conhecidos, como velocidade, mas faltavam os trabalhos de Azeredo dos anos 70 e 80. Consegui um exemplar da edição embargada com o próprio editor. E um grande etc.

Eu não tinha cama na época, apenas um colchão de casal no chão do quarto. Construímos uma verdadeira barricada de pilhas de livros em torno do colchão. Passava os dias lendo os volumes em ordem cronológica, a partir das obras completas de Mário de Andrade, até terminar, mais de três meses depois, em algum dos novos poetas do início dos anos 90. Anotava os títulos dos poemas com o tema da pedra num caderninho. Não era uma leitura dinâmica, mas uma leitura poética. A diferença era apenas que eu tinha a "obrigação" de ler (ou, em muitos casos, reler) tudo, sem pular nada, e terminar antes do fim do semestre, para que ela pudesse fazer a seleção final e nós escrevermos a introdução.

Não creio que muita gente tenha passado por experiência semelhante, de ficar quase quatro meses, todo santo dia, o dia inteiro lendo poemas, milhares de poemas, um atrás do outro. Os dois volumes da Nova reunião de Drummond, por exemplo: 19 livros de poemas, 950 páginas, ½ século de poesia, lidos em seqüência, página a página, hora após hora, como um grande romance russo lido na prisão. De fato, havia um grande drama de inúmeras vozes, estilos, personae, temas e subtemas, sintaxes, se desenrolando através de todos aqueles volumes - e esse drama (no sentido de ação) era o do própria poesia brasileira contemporânea.

Depois disso, fiquei quase um ano sem escrever um verso (e quase dez sem publicar). Na verdade, sem sequer pensar em poesia. Ao menos conscientemente. Pois depois dessa quarentena involuntária, recomecei a minha obra - que se divide em a.GL e d.GL: antes e depois da Grande Leitura - num trabalho exaustivo que durou quase uma década e resultou na trilogia inédita Consubstanciações I.
Você não aderiu a moda do verso curto e do minimalismo. Como é ser um poeta fora de moda, mas tão atual e pós-moderno e por isso estar mais na moda do que nunca?
O modismo, em se tratando de poesia, é apenas uma muleta para os medíocres. Em outras linguagens, como o cinema, e mesmo as artes plásticas contemporâneas, os modismos se justificam pelo dinheiro envolvido. Porque a arte tornou-se entertainment, isto é, show-business, ou seja, business, e, se você não estiver integrado, não há possibilidade alguma de ganhar dinheiro. Acontece que não há possibilidade alguma de ganhar dinheiro com poesia, mesmo estando integrado. Portanto, o modismo, aqui, serve à integração em si mesma, como um fim, não como um meio: o que é sinônimo de aceitação - que se materializa, na prática, em fama. Ou melhor, em famazinha - o objetivo maior dos poetas medíocres. No fundo, muitos gostariam, portanto, de ser pop stars. Mas não levam jeito para a performance, nem têm apelo sexual suficiente. Sendo que a poesia guarda, apesar de tudo, certa aura de "nobreza" literária que compensaria tais frustrações. No entanto, a poesia é uma coisa importante demais para servir a isso. Esteja ou não travestida de minimalismo intelectualista, ou seja qual for o modismo do momento.

A poesia é uma forma de conhecimento da linguagem mais importante da espécie, a verbal. Enquanto a lingüística, por exemplo, é o seu conhecimento teórico, no sentido de hipotético (a despeito do método experimental), o verdadeiro conhecimento empírico profundo da linguagem verbal é a linguagem poética. É a isso que Eliot estava se referindo, quando diz que a função social da poesia é manter vivas as potencialidades da língua. Isso nada tem a ver com modismos, muitíssimo ao contrário.

Portanto, nada mais apropriado do que ser um poeta fora de moda. Pois a moda, por definição, passa, e logo. As grandes realizações artísticas duram um pouco mais. E se estar fora da moda, dos modismos, não é, evidentemente, suficiente para garantir uma grande realização artística, ainda assim é uma condição necessária.

(2002)

Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente