A Garganta da Serpente
Entrevista com Cobra entrevista com nossos autores
Entrevista com:

Jussara Salazar

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- Jussara Salazar -

Entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão nosso habitante para o Balacobaco


Você concorda quando dizem que a sua poesia é pouco lírica. O eu lírico. Em sua poesia, perde lugar para os objetos e as coisas. O que existe entre a coisa objeto do poema e a coisa em si poema? Qual a relação entre objetos e poética? Há uma possível hierarquia dialética aí?
O lirismo sempre deu conta um universo subjetivo, que diz respeito ao caráter de diferentes épocas, e imagino não existir “um” lirismo, mas tantos e quantos o tempo produziu e irá produzir ao longo da história da linguagem. A poesia reorganiza o pensamento em sua origem, em seus estratos mais profundos e subterrâneos, onde “eu”, “coisa” e “objeto” são um único acontecimento, jogo verbo-poético, sonoro e intransferível, gênesis e apocalipse, e novamente gênesis. Tautologias ou tao-tologias, dando à luz aos caminhos do sem fim, situados na natureza mesma da linguagem, que em sua pureza, será sempre um território da poesia, fogo e encantação. A relação entre todas essas coisas adquire um sentido elevado na poesia, e esse sentido vai além de todas as teorias. A poesia não é hierarquizante, e sim uma dialética anárquica e vertiginosa.
Walter Benjamin costumava colocar o cinema como arte superior. Você além de poeta é artista plástica. Qual a relação da pintura com as outras artes? Walter Benjamin erra quando hierarquiza arte?
Antes de tudo, acredito que cada qual pode se permitir hierarquias próprias, e se Benjamin, em algum momento pontuou aspectos superiores e inferiores da sensibilidade da criação, estava definindo questões estéticas que refletiam um certo estado de coisas da época. Ele afirmava que o cinema produzia em massa e reproduzia as massas, onde o público não separaria a crítica da fruição, uma vez que a pintura e as outras formas de expressão, não se destinariam ao grande público. Quem se concentra diante de uma pintura, por exemplo, afirmava ele, mergulha nela, e o cinema, visto como diversão, seria a obra de arte que penetra na massa. Benjamin questiona a perda da aura da arte na modernidade, em função da capacidade de reprodução da obra, ao contrário de Adorno, seu contemporâneo, que tinha uma visão metafísica da arte — que seria algo revestido de uma aura sem fim, e que prometeria uma felicidade espiritual para além da dimensão física. Enfim, eram como disse antes, conceitos que diziam respeito ao caráter de uma época. Benjamin acreditava numa arte revolucionária, que despertasse o espectador e o levasse a refletir através da contemplação, e talvez por isso tenha hierarquizado o cinema. Quanto ao meu trabalho, ao fato de ser artista plástica e gráfica, e poeta, creio cada dia mais, que quanto mais atividades eu desenvolvo em criação, mais entendo que estou fazendo uma coisa, única e total.
O que a sua escrita tem de surrealista? Quando vale a pena utilizar a escrita automática?
O surrealismo, movimento inaugurado por Breton, na década de vinte, profetizava em seu manifesto, o fato de naquela época ainda vivermos sob o império da lógica. E esse movimento fazia reverberar as ondas que andavam em sintonia com as descobertas da psicanálise, os escritos de Freud, e toda uma forma de pensamento que seria a grande instigação, para que se produzissem obras como a de Picasso, com seu multifacetado “Demoiselles D’Avingnon”, Braque e futuramente Duchamps, além dos estilhaçamentos do Finnegans Wake, de Joyce. Com o acontecimento da leitura dos sonhos, abrem-se mais ainda, esses caminhos narrativos, que já existiam em Vico, e muito antes, e que também já haviam orientado poetas como Blake. Quer dizer, essa história de movimentos disso ou daquilo, esses territórios que convencionamos para situar experiências, confundem-se com a nossa história mesma, todo tempo, e observando com um pouco mais de atenção, percebemos que a palavra encontra uma origem também aí, no desencadeamento não-lógico, primeiro. O procedimento da colagem no surrealismo, realiza experiências poéticas como nos versos: um par/de meias de seda/não é/ um salto no vazio, onde as palavras foram recortadas de um jornal qualquer, e que Breton exemplifica em seu manifesto. Quer dizer, dentro uma determinada concepção de filosofar e criar, propiciada pela linguagem, a palavra acontece muito além da simples idéia de escrita automática, pois tudo é riqueza, tudo quer dizer, e o que o surrealismo fez, foi dar a isso uma organização. Acho que minha poesia se inscreve sim, dentro dessa concepção originária da palavra, desse guerrear dos eus – os sonheus de Joyce – que “abre as suas portas” - , e a possibilidade do “raio invisível que nos fará ver, que nesse verão as rosas são azuis, e a madeira é de vidro.
Glauco Mattoso utiliza o soneto e talvez seja o único poeta pós-moderno do Brasil. Glauco faz sonetos metrificados à moda antiga de uma forma atual. Por que ainda existe a vontade de inventar? Por que no fundo ainda somos modernos? O modernismo é eterno?
Concordo com Augusto de Campos, quando afirma que os pressupostos do modernismo ainda são vigentes, e que “pós-moderno” é um conceito de contornos indefinidos, pouco sustentável, parecendo antes um rótulo que serve de pretexto a ecletismos de índole conservadora, na verdade pré ou anti-modernistas. Glauco Mattoso é um grande poeta que inventa poemas metrificados, que parecem feitos “à moda antiga”, mas que substancialmente, são dos mais transgressores hoje. O sonetos compõem o sentido “melopeico” do poeta Glauco Mattoso, afinado com seu tempo, e inventor de si. Porque temos que imprimir esse sentido princípio/meio/fim, de território escravizante à poesia?
A vanguarda vive?
Eu diria que essa questão de morte e vida da vanguarda está ficando clássica, e que toda vez que pisamos nesse terreno, corremos o risco de nos reportarmos a um saudosismo histórico, eterno revisionistas de nossas próprias vidas. O que acontece é que hoje realizamos pequenas rupturas, diárias e pessoais, o tempo inteiro. Ninguém mais se ocupa com grandes movimentos coletivos, mas que existem rupturas, como sempre existiram, existem.
Em Proust, por exemplo, o mobiliário é requintado como o século passado. Hoje não existe mais a forma de descrever que havia anteriormente. Concisão é sinônimo de inapetência textual?
Não, muito ao contrário, é dificílimo dizer de maneira concisa. Algumas formas da poesia oriental existem assim há milênios, e são formas de sabedoria incontestáveis, verdadeiros exercícios de contenção verbal, e densidade poética, em que a essência é a percepção instantânea, onde as idéias, o sentido e a música das palavras criam uma intuição do mundo. Hoje, acho que os códigos visuais existem em maior número, os fatos acontecem com uma agilidade maior, dando a impressão que o mundo ficou menor, que abarcamos tudo com maior facilidade e velocidade, e nossos sentidos estão voltados para uma quantidade enorme de apelos, onde a fragmentação faz parecer que não há o tempo de observação do mundo que encontramos em Proust. Mas seria equivocado afirmarmos que a visão proustiana das coisas é uma ocorrência lingüística hiperbólica, parte de uma subjetividade e de um sentido imaginário que o ser humano vai perdendo, na medida da passagem que o tempo realiza. A linguagem é o lugar da riqueza, e é onde encontramos o vigor da palavra e do pensamento.
Qual a influência tem de João Cabral de Melo Neto. Harold Bloom dizia que cada poeta forte descende de outro poeta forte. Concorda com a teoria da angústia da influência ou tem mais sentido quando falamos de anglo-saxões?
Bloom fala da intertextualidade como sendo o nosso cânone aqui no ocidente, teorizando um relação complexa do processo criativo, onde a grande escrita é sempre reescrita. Gosto quando Borges afirma que “mitologias, estados de felicidade, certos crepúsculos e lugares, querem dizer algo, ou estão prestes a dizer algo, ou algo disseram que não deveríamos ter perdido, e essa iminência de uma revelação, que não se produz, é talvez o fato estético”. Então, penso que é preferível remontar aos estados míticos da imaginação criativa, a um ethos do imaginário, do que ficar pregando mais um tipo de angústia qualquer. O intertexto mítico, circular, o livro único, grande palimpsesto, escrito e incansavelmente re-escrito, lugar da escrita real, esse me interessa. Quanto a João Cabral, eu diria que cresci como ele, aprendendo a amar o encantamento do brilho do sol refletido sobre as águas do Capibaribe, rio escrito sobre minha infância, e minha vida. E ao invés de influência, eu diria de uma certa afluência de origens, fluxo vital.
Tem algum verso, palavra, mote, pedaço de música que sirva como força em horas difíceis ou que sempre está martelando a sua cabeça? Qual?
Tem sempre alguma canção, ou poema o tempo todo, mas agora em especial, lembro de uns versos de Mestre Salustiano, grande poeta popular e versejador do povo lá de Pernambuco, mais ou menos assim: Salu na Rabeca é Bom / Igual a Doce de Caju / Não Tem Inveja de Tu / Quem Quiser Luxar que Luxe / Eu sou o Tampa de Crush / Cantando Maracatu.
Como é participar da antologia Na virada do século – Poesia de Invenção no Brasil? O que é um inventor?
Participar dessa Antologia é uma experiência interessante, e os critérios de Claudio Daniel e Frederico Barbosa, os organizadores, foram bastante generosos e pertinentes. O inventor tanto pode ser alguém dialogando com os estados sagrados da alma, como alguém querendo achar soluções à sua volta, ou as duas coisas. Meu livro, Inscritos da casa de alice, inicia com a epígrafe “Não narração é play-invenção”, o que de certo modo coloca os poemas do livro em alinhamento com uma postura atemporal, não-linear e universal, sendo Hélio Oiticica, ao mesmo tempo, um herdeiro soberano do modernismo. Em minha opinião toda nossa herança há de ser essa, sermos cada vez mais o tempo que vivemos, inventores, neo-inventores de nós mesmos, numa Opera mobile.
A metáfora é condição sinequanom para a poesia antiga? Aonde anda a metáfora? É possível poesia sem metáfora?
Numa outra ocasião, eu dizia que nossa primeira referência, a mais original, é a beleza do verbo. A palavra Veda, que designa em sânscrito os hinos sagrados e encantatórios dos brâmanes, quer dizer conhecimento, e a primeira palavra para eles é Aum, mantra e palavra inseparável da idéia primordial e eterna. Além de ser o princípio análogo ao dizer afirmativo de São João, no Evangelho: “No princípio era a palavra, e a palavra estava com Deus e a palavra era Deus”. Podemos construir assim, semiologicamente, o universo visível da língua, a poesia, com seus símbolos profanos e sagrados, idéias, sons e pensamentos indivisíveis, e essa me parece uma ocorrência muito próxima da dos sonhos, da força mítica dos sons, da força da natureza. Alguns poemas que conheço, sectários do mais rigoroso formalismo, possuem as mais belas metáforas. O que não é possível é ficar fazendo uso eterno de clichês gastos e repetitivos. Santo Isidoro de Sevilha, século um, propunha que saboreássemos a transparência de cada palavra, e não que pensássemos a palavra como linguagem opaca, mera construção de convenções. Quer dizer, desde a sua origem e etimologicamente, no início tudo era metáfora, logo poesia, e se somos originários dessa matéria poética, se dizer, no início era poesia, porque falar da metáfora como uma condição circunstancial?
Como é ser um poeta Paulista?
Sinceramente, deve ser diferente de ser poeta em Curitiba, onde vivo, eu espero que sim.
Qual uso faz da internet?
Todos os usos possíveis do dia a dia.
Qual livro gostaria de ser?
Qualquer livro do cubano Lezama Lima.
Há ainda um certo niilismo no ar. Há futuro para a poesia? O livro tem lugar no futuro do homem? Como editora: por que o e-book ainda não fez sucesso?
Eu diria que existem alguns niilistas no ar, e existirão sempre, verdadeiros profetas do apocalipse e criadores de fatos, decretando de vez em quando a morte e o fim de algumas coisas,. Toda vez que consulto a Internet, pesquisando este ou aquele assunto, tenho mais e mais vontade de ter livros. A factura de um objeto, de um poema, a produção de um objeto de arte, arte factu, manu factu, existirá sempre. A tecnologia vem dar suporte, background, trazendo possibilidades de mais invenção, diálogo, e não estranhamento. O que seria equivocado, seria pensar o mundo a partir da tecnologia, quando na verdade atravessamos essa via historicamente. O e-book faz muito sucesso sim, dentro do campo de acontecimentos que lhe é dado. O que não podemos, ainda bem, é reduzir a “nada” um dos sentidos mais essenciais do ser humano, o tato. Isso sim, seria o niilismo definitivo.

(2002)

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