A Garganta da Serpente
Entrevista com Cobra entrevista com nossos autores
Entrevista com:

Joyce Cavalccante

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- Joyce Cavalccante -

Entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão nosso habitante para o Balacobaco


Joyce Cavalccante nasceu em Fortaleza e mora em São Paulo. É jornalista, romancista, contista, cronista e conferencista. Publicou seis livros de prosa de ficção individualmente, e participou de oito coletâneas de contos com outros autores. Contribui sistematicamente com a imprensa publicando contos, resenhas ou artigos, e já faz algum tempo vem se dedicando a palestras sobre literatura feminina brasileira nas universidades do Brasil e do exterior. Escreve crônicas para o Jornal da Tarde de São Paulo. É a atual presidente da REBRA-Rede de Escritoras Brasileiras, e diretora da RELAT-Rede de Escritoras latinoamericanas.

No programa LITERATURA do Ricardo Soares, você afirmou que existe escrita feminina. O que embasa esta afirmação?
A constatação das evidências. Considerando que a mulher faz parte de um segmento cultural específico, sua literatura, ou escrita, como queira, obviamente refletirá tal segmento. O mesmo vale para o homem, porque a gente é também a cultura na qual se está inserida.

O aspecto anatômico tem inegável influência nesse reflexo, como tem em todos os setores da vida. Falo do fato da mulher ser côncava e o homem convexo. Partindo daí ela desenvolveu um pensamento que determina seu comportamento acolhedor, tépido, aprofundado; enquanto o homem desenvolveu um comportamento, pontiagudo e mais exposto. Será que isso é pouco?

Tomando por base essas considerações, podemos ler um texto de autor anônimo e rapidamente identificar seu gênero sexual. Quem duvidar que faça a experiência e, em seguida, se surpreenda com o resultado.

Um outro argumento é que nas línguas latinas, como o português, os pronomes pessoais tem gênero definidos. Sendo assim o autor ou a autora se denunciam em dois tempos, quando se referem a si mesmo.

Claro que existem exceções curiosas como a de uma autora gaúcha que fez questão de escrever um livro inteiro simulando-se um autor e, mesmo usando seu próprio nome, deixou todo mundo convencido. Fez isso principalmente usando os pronomes pessoais, jogo interessante que só vem provar que a literatura é gendrada.

Eu, particularmente, reconheço minha escrita como feminina. Só para ter uma idéia, veja os títulos dos meus livros: "De Dentro Para Fora", "Costela de Eva", "Livre & Objeto", "O Discurso da Mulher Absurda", "Retalhos Místicos", "Inimigas Íntimas". São denunciantes, não são?

Não diria aqui, como em outro qualquer lugar, que uma versão é melhor ou pior que a outra, ou seja ela masculina ou seja ela feminina. Sou normal. Na minha visão as duas versões literárias são complementares e profundamente necessárias, pois o mundo seria muito aborrecido sem esse encaixe.
O que é a REBRA?
A REBRA é a Rede de Escritoras Brasileiras. Um sonho que passou pelo papel, depois pulou para as páginas da Internet e está fazendo o que já deveria ter sido feito há muito tempo, ou seja, equiparar em oportunidades o produto literário masculino e o feminino.

Se já tivéssemos uma coisa assim desde o começo do século, o papel da REBRA, hoje, seria dispensável, pois a equiparação, o equilíbrio entre os sexos, já seria um fato. Com isso teriam saído ganhando homens e mulheres, pois tudo seria mais rico.

Isso quer dizer que os nomes de nossas mulheres escritoras do passado, se perderam da memória do país, justamente porque nunca tiveram oportunidade de serem registrados. Consultando qualquer história da literatura brasileira se nota imediatamente a raridade de nomes femininos lá registrados. E isso não é porque as mulheres não escreviam e sim porque tinham enorme dificuldade de publicar e divulgar seus escritos, e se conseguissem, nunca seriam registradas nos anais exclusivamente masculinos. É a partir daí que se pensa que apenas os homens tinham talento literário. Mas essa visão é falsa.

De lá pra cá a coisa não mudou muito e, nem mudaria, se iniciativas como a REBRA e inúmeras outras que se dedicam ao resgate do passado feminino e a garantia de sua permanência, não estivessem acontecendo. Exemplo: livros sobre escritoras, festivais, associações e encontros femininos, essa rede que pretende facilitar a comunicação entre todas as escritoras de nosso país etc. Ainda precisa muito trabalho para pelo menos empatarmos as chances. Depois, se pensará como melhor fazer a manutenção de tão sonhada igualdade entre os sexos.

Para informações mais didáticas sobre o papel da REBRA-Rede de Escritoras Brasileiras, convido para uma vista ao site: http://rebra.org .

Finalizando, só para aquietar corações predispostos ao litígio, iniciativas como a REBRA não são contra os homens mas a favor das mulheres.
Há uma crise de identidade em pleno ano 2000. As mulheres (de caça) estão passando a caçadoras. Uma cantada de uma mulher (a um homem) é coisa normal hoje em dia. Quais os aspectos positivos e negativos da mudança? Só se pode mudar absorvendo os valores do ser dominante?
A crise de identidade é dos homens. Nós mulheres estamos apenas exercendo a natureza. Só.

Acostumados a ditar as regras e ter suas vantagens duplicadas em relação às femininas: (quem decide é ele, quem caça é ele, quem canta é ele, quem escolhe é ele, quem se farta é ele, quem manda embora é ele); quando se deu essa virada e a mulher foi reconhecida como ser humano, os homens, em geral, ficaram tontos pois não conheciam outra forma de agir. Muitos não encontraram dentro de si criatividade suficiente para detectar a mudança e a ela se adaptar com talento. Por isso é comum encontrá-los choromingando e reclamando, lançando mão de argumentos moralistas que não convencem mais ninguém, tipo: "ela é uma garota fácil" etc.

Essa mudança não começou agora de uma hora para outra e sem motivos. Não é coisa do ano 2000.Veio se formando durante anos de sofrimento, repressão, frustração e injustiça. Olhe para sua avó, para sua mãe e sinta a razão do argumento. Fomos ousando aos poucos e nossa ousadia está ainda muita aquém do que a natureza nos permite. Partindo do pressuposto de que, segundo a natureza, homem deseja mulher e mulher deseja homem; e partindo também do pressuposto de que o ser humano é guiado em direção a satisfação de seus desejos; nada mais legítimo do que a mulher lutar pelos seus anseios da maneira que os homens sempre tiveram o direito de fazer. E esses anseios pode muito bem incluir desejar um homem para namorar.

Para aquelas que tem um estilo mais ágil e gostam de conseguir um namorando cantando-o, deve cantá-lo. Dizem que é um barato.

Para outras, como eu, que preferem o sofisticado ritual de serem cantadas, devem esperar que a iniciativa venha deles, enquanto isso, a gente se distrai engendrando mil provocações. É um luxo.

Isso é seguir o ritmo da natureza. É lúdico. Não é absorção nenhuma de "valores do ser dominante" porque, quem disse que o homem é dominante? Foi.

Ainda para aquietar os corações beligerantes, quando digo que, segunda a natureza, homem deseja mulher e mulher deseja homem, estou focalizando o universo heterosexual, mas sem negar as outras combinações do desejo sexual humano.
É mais difícil uma mulher publicar um livro?
É difícil publicar livros, mas mesmo assim tem tanto livro no mundo. É o tipo do mercado que eu não entendo e vou morrer sem fazê-lo.

Porque tudo é mais difícil para a mulher, é também mais difícil para ela publicar do que para o homem, pois como é sabido, mulher quando ganha empata. Mas mesmo assim tem muitas mulheres que publicam e fazem sucesso e vendem e são lidas e festejadas como grandes nomes. É um mistério o como se chegou lá. Acho que é porque, se existe uma coisa que o machismo nunca pôde se intrometer foi na distribuição de talento feita por Deus. Graças a isso podemos exercer o prazer de ler Virginia Wolf, Clarice Lispector, Marguerite Youcenar, Joyce Carol Oates, Simone de Beauvois, Anais Ninn, Natália Correa, Gilka Machado, Catherine Maisfield e por ai vai. E assim todo mundo saiu ganhando, como queríamos demonstrar.
INIMIGAS ÍNTIMAS é o seu romance de maior sucesso. Existe uma receita para se fazer um romance de sucesso?
Concordo que Inimigas Íntimas, minha publicação mais recente, obteve muito sucesso, pois foram vendidas três edições consecutivas de cinco mil exemplares cada uma. Acho que ele, além de ser um ótimo livro, referendou a carreira de vinte anos e seis publicações anteriores de uma autora sazonada. Creio que por isso, para muitos leitores, ele já é considerado um clássico. Mas nem sei se ele é meu livro de maior sucesso. Não sei. O "Livre & Objeto", publicado em 1982, fez um carnaval nas mentalidades quando veio a tona, sem falar da excelente recepção que tive por parte da crítica e dos leitores, quando publiquei meu primeiro livro, "De Dentro Para Fora". Tudo tem convergido para me incentivar a prosseguir com entusiasmo. Tudo, incluindo essa paixão destemperada que tenho pela literatura. Aguarde "O Cão Chupando Manga".

Existe sim uma receita para um livro, ou melhor, uma obra. ser bem sucedida: Talento, dedicação, seriedade. Talento: todo mundo tem para alguma coisa, sendo assim, para a criação literária a gente tem ou não tem. Dedicação, é preciso disciplina. É preciso varrer da vida da gente a frase: não tenho tempo para escrever, pois quando se é escritor escrever é prioritário. Seriedade, levar-se a sério e não ceder um milímetro das coisas que pautam nossas crenças. Não perseguir o sucesso na mídia ou na boca do povo, mas sim a excelência.
É possível viver de literatura no Brasil? Quem é o escritor brasileiro?
É possível viver de literatura. É. É possível tudo, e as dificuldades fazem parte das possibilidades. A gente vai dando um passo atrás do outro e quando se nota já se está pela metade do caminho. Mas para isso não tem receita, como para qualquer outra profissão. Tem engenheiro milionário pelos frutos de seu trabalho e engenheiro desempregado na rua da amargura. Cada um deve descobrir seu próprio veio. Quem procura se escorar numa receita pronta, conta com muito menos possibilidade de conseguir.

E sobre quem é o escritor brasileiro? sei lá. Sobre os contemporâneos não sei falar, pois estão muito próximos, coisa que impede um julgamento distanciado e objetivo. Para os antepassados só consigo ter um olhar de leitor, um olhar de baixo pra cima, e assim também não posso fazer um julgamento objetivo. Por isso, vamos pular essa parte.
Quando/como a internet pode ajudar na divulgação de literatura?
A internet é uma mídia não uma arte. Portanto, não compete com a literatura mas a apóia e divulga. E por causa dela está voltando a moda o ato de escrever. As pessoas estão se comunicando assim.
Ela, a Internet, veio pra ficar, revolucionar, democratizar as oportunidades. Muita gente que jamais conseguiria publicar está apelando para as chamadas : "publicações virtuais", ou seja, o livro que não passa pelo papel. É uma oportunidade para um bom texto, quem sabe, ter sua hora e sua vez. Ao mesmo tempo, uma boa obra publicada virtualmente, pode vir a ser confundida com um monte de entulho que rola na rede. Tudo tem que ser refletido com muito critério.

Eu, por exemplo não publico nada virtualmente. No meu site pessoal: http://www.geocities.com/~joycava/ disponibilizei em cinco idiomas pequenos textos, uma espécie de amostra grátis, para que o meu leitor se entusiasme e vá em busca do livro propriamente dito. Mas uma obra completa eu não disponibilizaria. Ainda não tomaria essa decisão.

Sou entusiasmada pelas livrarias virtuais, isso sim. A maioria de minhas compras de livros são feitas desse modo, pois as livrarias físicas me deixam muito impaciente pelo despreparo dos atendentes. Daqui a pouco as livrarias virtuais venderão muito mais porque são mais confortáveis. Mercado é assim mesmo. É uma corrida de biga. Que vença o melhor.
Tem alguma epígrafe?
Pra que? Pra usar como lema seria uma de Bernard Shaw, repetida por Clarice Lispector e agora e muito por mim: "A vida é muito curta pra ser pequena". Para o jazigo seria: "Não deu tempo". Porque nem que eu viva 150 anos, nunca vai dar tempo de realizar todos os projetos que tenho em planos. Além dessas tenho um monte de frases de efeito escondidas na manga do casaco pra impressionar.
Qual o papel do escritor na sociedade?
A4, A5, carta, executivo, legal, guardanapo de papel e até a areia da praia, como fez Anchieta. Qualquer coisa serve quando se precisa fazer o registro da recriação da vida. Assim é o escrever.

(2002)

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