A Garganta da Serpente
Entrevista com Cobra entrevista com nossos autores
Entrevista com:

Fábio Fiorese

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- Fábio Fiorese -

Entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão nosso habitante para o Balacobaco


Fernando Fábio Fiorese Furtado nasceu em Pirapetinga, Zona da Mata Mineira, no dia 21 de março de 1963. Residindo em Juiz de Fora (MG) desde 1972, participou do grupo de poetas, escritores, artistas plásticos e fotógrafos que, durante os anos 80, editou o folheto de poesia Abre Alas e a revista d'lira. Poeta e contista, estreou em 1982 com Leia, não é cartomante, ao qual seguiram-se Exercícios de vertigem & outros poemas (1985) e Ossário do mito (1990), todos de poesia. Publicou ainda o ensaio Trem e cinema: Buster Keaton on the railroad (1998), além de contos e poemas em coletâneas, antologias e periódicos do Brasil, Itália e Portugal. Tem inéditos os livros de poesia A primeira dor, Pequeno livro de linhagens, Corpo portátil e Dicionário mínimo.

Como professor do Departamento de Comunicação e Artes da Faculdade de Comunicação e do Curso de Especialização em Estudos Literários da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e membro do Grupo de Pesquisa "Estéticas de Fim-de-Século" da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), desenvolve pesquisas nas áreas de Cinema e Literatura, com publicações regulares em coletâneas de ensaios e revistas especializadas. Além disso, atua como professor-convidado em cursos de pós-graduação de faculdades e centros de ensino de Juiz de Fora e região. Mestre em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da UFRJ, atualmente elabora tese de doutorado em Ciência da Literatura/Semiologia na Faculdade de Letras desta mesma instituição, tendo por objeto a obra poética de Murilo Mendes.


A sua geração é a de poetas embasados em teorias. São professores, doutores. Em que aspectos o fato de ter uma vasta formação acadêmica os afasta da poesia mais popular? A poesia pode ser popular?
Ao menos desde Baudelaire já não é possível o leitor ou o poeta ingênuo. A poesia exige o “olho armado” - a expressão é de Murilo Mendes - para o que faz questão nas relações entre a poesia e a sociedade. Não creio que este olho seja “armado”, nem apenas nem principalmente, nas universidades, pois a poesia sempre inaugura outros circuitos de aprendizagem. Com o uso exaustivo a que foram submetidos nos últimos 50 anos, os termos “erudito” e “popular” parece que chegaram ao limiar da dessignificação, converteram-se em clichês, talvez enredados em discursos e práticas sem consistência. No entanto, o popular continua a ser um fenômeno fundamental na cultural brasileira, mesmo quando folclorizado ou simplesmente excluído pela indústria cultural. Permanecer à margem é a estratégia de sobrevivência do popular, talvez a única possível. Desta forma, o popular não se deixa conspurcar com os valores e lógicas estranhas à sua sofisticada trama. E neste âmbito cultural, a poesia foi, é e sempre será popular, pois ela é o próprio fundamento desta lógica que nos estranha.
Você estuda a obra de Murilo Mendes. O que lhe fez tornar-se um especialista em Murilo Mendes?
Não me empenho no especialismo, mas nas paixões que duram até a consumação completa. Pretendo-me apenas um “amador” em/de Murilo Mendes, no que esta palavra barthesiana tem de manuseio e de cuidado com uma obra ainda pouco explorada em sua multiplicidade. Assim, como poderia falar do advento de uma paixão sem remeter ao enigma, ao obscuro cerne da própria poesia? E toda paixão é um desafio, uma questão que se nos impõe e da qual, quando a reconhecemos no seu vigor, já não podemos fugir. Haverá alguma lógica, mesmo casual, que decida as nossas “afinidades eletivas”?
Como no surrealismo as imagens são um dos pilares de sua poesia. Toda a poesia tem um toque de surrealista? Como qualificaria a poesia que faz?
Ainda não tenho uma obra publicada consistente em termos quantitativos para que possa qualificá-la. Pretendo que seja uma poesia visceralmente abismada no tempo presente, empenhada nas questões e perplexidades do homem contemporâneo, afinada com os paradoxos da cultura brasileira. O vigor e a radicalidade que caracterizam a melhor poesia surrealista são horizontes que persigo, sem pretender alcançá-los.
“para estar aqui/atravessamos muitas mortes.” Quantas vidas têm o poeta?
Na cena da palavra, as vidas do poeta são tantas quantas forem as personae que ele lograr in-vestir. Penso o ator no poeta, para experienciar múltipos “eus”, assumir vozes díspares, multiplicar-se em corpos e sentidos.
“escrever não é só enfermaria..” Falar do poema é o futuro da poesia? Qual o seu paradigma já que as dores do mundo sempre moveram a inspiração dos antigos bardos?
Falar da poema é o exercício diário da poesia numa época que recusa olhar-se no espelho. Uma época que desvia o olhar de si e do outro. Diferentemente de Narciso, no frágil espelho da palavra a poesia procura o outro, a diferença radical que nos comunga a todos. Neste sentido, não pretendo paradigmas, se deste termo depreende-se a possibilidade de forjar uma igualdade que aponta para a homogeneidade. Assim, prefiro horizontes, um termo menos marcado e, necessariamente, plural, porque multiplicando-se na medida em que avançamos ou recuamos, estrategicamente. Os horizontes da linguagem - reino de ação e matéria da poesia, casa da memória e do segredo do homem histórico e plural - são o lugar onde todos e cada um acolhem as aporias com que o presente nos desafia a existir.
No poema A CASA você quer proteção afastando todos da sua casa. O que uma casa deve ter para abrigar um poeta? Quantos sonhos esta casa abriga?
A sua interpretação do poema, mesmo explicitada sinteticamente, parece-me interessante. Soubesse você das circunstâncias fortuitas e banais que engendraram tal poema... mas não cabe aqui falar da gênese de um texto. A casa é um motivo recorrente na poesia ( incluindo a minha) - e a amplitude da sua simbólica pode ser aferida pelas inúmeras páginas que lhe dedicou Gaston Bachelard. Para abrigar não apenas o poeta, mas o homem, a casa deve ter o sentido do “habitar”, que não se confunde com o “morar” ou “residir”. Habitar preserva as janelas e as jornadas, o teto e o horizonte, o interior uterino e as verticais do exterior, o descanso e a passagem, todos os sonhos (no sentido freudiano de representação da realização de um desejo) e as ásperas realidades.
Você também é contista. No conto a tensão entre os personagens deve existir de uma forma bem particular. Há toda uma teorização sobre o assunto. Qual a importância da teoria para a elaboração de um bom conto?
Escrever é o esquecimento de toda a teoria. Não em direção à ignorância ou à ingenuidade, mas no sentido de abrir-se aos corpos e às máscaras dos personagens, de entregar-se à trama da história, deixando surgir o tensionamento próprio da vida que urge e age. Não digo que a teoria não participe, mesmo porque ela é constitutiva do escritor enquanto “eu civil”. Mas creio que, mais ainda que um lance de dados, a teoria não abole o acaso. Neste sentido, talvez a comparação mais adequada do contista seja com o músico de jazz, aquele que se dedica ao longo aprendizado da teoria musical e à árdua tarefa dos ensaios (até a perigosa proximidade do virtuosismo) apenas para que possa rasgar as partituras e se entregar ao improviso.
Seus poemas são curtos como a maioria dos poetas atuais. É mais fácil fazer um texto minimalista?
Nos inéditos Pequeno livro de linguagens e Corpo portátil, escritos em 1998 e 1999, respectivamente, predominam os poemas longos (embora não muito). No entanto, acredito que os textos curtos se adequam à urgência que domina os internautas, garantindo aos poemas disponibilizados no site Corpo Portátil um mínimo de leitores. De qualquer forma, a poesia moderna já se afirmara no fulcro dos paradoxos da consciência de linguagem, denunciando a longa dicção como tentativa de restaurar uma idéia de totalidade fundada sob os princípios da linearidade histórica, da razão positivista e da natureza domesticada. Os poetas contemporâneos continuamos debruçados sobre a verticalidade de uma época em que os fragmentos não reconstituem qualquer totalidade, em que o verbo já não se refere a qualquer verdade (seja teológica ou científica), em que o estranhamento e o artifício são condições de ser homem. Resta-nos, então, desmontar os ardis deste tempo, até o âmago (caso seja possível extrair deste termo o seu sentido metafísico).
O cinema é uma de suas paixões. Confesso que não vejo um filme bom há muito tempo. A trilha sonora tornou-se mais importante do que a ação. Geralmente há um eterno sintetizador “minimalizando” uma nota que visa provocar a tensão. O tiro sai pela culatra. O que deveria ser adorno passa a parte principal. O som acabou com o cinema? A trilha atual não está ocupando um lugar muito relevante na linguagem do cinema moderno?
As circunstâncias do circuito comercial nos condenam a uma filmografia específica e restrita. Nas últimas décadas, os custos da tecnologia cinematográfica reduziram drasticamente as produções, inclusive nos países europeus. Desta forma, tornaram-se mais evidentes as relações de interdependência entre o cinema (leia-se Hollywood) e os demais setores da indústria cultural, notadamente a fonográfica. Assim, a música no cinema tornou-se tão comercial e anódina quanto os roteiros e as interpretações, de forma a adequar-se ao que os “capitalistas” da indústria cinematográfica denominam espectador médio, uma abstração que pretende dar conta do perfil do público nos cinco continentes. No entanto, creio ser um equívoco considerar a música apenas um “adorno” das imagens. Em sendo um meio audiovisual, o cinema deve experimentar as múltiplas possibilidades desta acoplagem entre som (música, ruídos, diálogos) e imagem, explorando no limite os recursos significantes de cada um destes elementos.
Você criou o “Linko, logo existo.” Quais os sites mais interessantes da internet? A rede é o meio exato para o texto curto: o poema? Qual o futuro da internet?
“Linko, logo existo” é apenas a tradução de “Link therefore exist”, de um poeta norte-americano cujo nome não me recordo agora. O meu contato com a Internet é muito recente e restrito para que possa eleger os sites mais interessantes. Como estou conectado a apenas três meses, não me sinto habilitado para tanto, e mesmo os sites que “linkei” na minha página ainda preciso passá-los por um crivo mais rigoroso. Quanto à rede, creio que se trata de um fenômeno muito recente, tanto para dizer da sua adequação ao texto curto (o poema) quanto para exercícios de futurologia. Contudo, constato que multiplicam-se as páginas dedicadas à prosa curta e à poesia. Seria de se pensar se tal recorrência deve-se à adequação da rede ou (um motivo bastante prosaico) ao exílio a que o mercado editorial brasileiro tem condenado poetas e contistas inéditos.
Seus ensaios abordam temas variados. Você discute o trabalho de grandes nomes como Buster Keaton, Murilo Mendes, Silviano Santiago, Visconti. Como surge um ensaio? É uma idéia colhida entre as preferências pessoais? Qual inspiração ou trabalho esconde um bom ensaio?
Como disse acerca da paixão por Murilo Mendes, um ensaio nasce do desafio que a obra nos propõe e impõe. Embora seja difícil explicitar, existe uma lógica sutil nestas escolhas, no mais das vezes desvelada a posteriori. Uma lógica que não repudia o acaso, o desvio, o paradoxo; ao contrário, faz destes plataforma de trabalho, trabalho cuidadoso e paciente. Inspiração, trabalho... qual o nome daquilo que nos move para o interior de uma obra e nos faz habitá-lo?
A pós-modernidade é modernidade. De uma certa forma a pretensão de abranger o novo, de absorver o novo, congela o mundo à modernidade eterna? ou à repetição? O pós-moderno não é um conceito carnavalizante que não pegou?
O termo “pós-moderno”, aproximei-me dele com extrema desconfiança. Depois, como todas as modas acadêmicas, revelou-se de baixa operatividade, quando não vazio, nas mãos dos que operam com os antolhos do conceito. Definições, classificações e conceitos são tributários daquela idéia de totalidade a que me referi anteriormente, servindo àqueles que preferem a superfície ao mergulho nas aporias do nosso tempo. Nominar é, de alguma forma, dominar, domesticar, tomar posse e impor uma identidade. Mesmo o discurso que elege o “novo” como definidor da modernidade parece-me uma armadilha, pois que este “novo”, não poucas vezes, o é em relação a referenciais bem estreitos. Onde o “novo” na poesia chinesa tão fundamental para a obra de Ezra Pound? Onde o “novo” nas máscaras tribais que tanto influenciaram a pintura de Pablo Picasso?
Qual a epígrafe ou epígrafes mais interessantes guarda em seu interior?
“But yet the body is his book”. De um poema de John Donne.

“Escrever é tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu”. De uma crônica de Clarice Lispector.
Qual o papel do escritor na sociedade?
Resistir ao prosaismo, à banalização, à despoetização do real, ao empobrecimento da linguagem, elegendo-se como testemunha de outros possíveis, de outros modos de ver, pensar, sentir e estar no mundo.

(2002)

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