A Garganta da Serpente
Entrevista com Cobra entrevista com nossos autores
Entrevista com:

Elson Fróes

  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

- Elson Fróes -

Entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão nosso habitante para o Balacobaco


No poema MOTE E VOLTAS, você escreveu "demolindo o que não presto/o ouro de ser um outro". O poeta se constrói no leitor? A construção é sempre melhor do que o poeta?
MOTE E VOLTAS
a Rosana Urbes

"Por quê não és
tal como escreves?"

O ouro de ser um outro
para aquela que soube
amaldiçoar com precisão
quem de não ser tão bom
tal saiu-se seu escrito
pois pensava-se inscrito
o aquém de algum sol
sem pejo de um despejo
por não pagar aluguel
além de si proscrito
foi-se depurando revés
em via de transcende
em vez de esquecer
eis o "gênio da memória"
de cor e sen saber a
flor de ferida mais
dor de menos vale mais
uma vida nova a fel
que move um céu se eterna
e interna intensa mais
que a que adulando anula

Envoi:
Teu lance de praga
sempre traga tua graça
a revolta que detesto
demolindo o que não presto
o ouro de ser um outro

Penso na permanente necessidade de renovação, ou make it new, num sentido mais amplo, de renovar além do poema, também renovar-se interiormente o poeta. O outro que pode me ver melhor, onde sou mais falho, me enriquece apontando esses "defeitos" do ser que todos temos. Este o ouro de ser um outro, como lapidando a palavra "outro" extraio o "ouro", mínima diferença para múltiplo sentido. Viver é um aprendizado que muita vez requer a perda ou troca de algo enraizado profundamente. Vago, mas certeiro.

E há também, em contrapartida, a busca da outridade, escrever tentando anular um "eu lírico", invertendo um pouco a maneira de Pessoa, que "concentrou-se" em vários "eus", mas "dispersando-se" em nenhum "eu".

Sim, os bons poetas sabem decor a estética da recepção, e elegem seu leitor ideal. Agora, quanto à construção ser melhor que o poeta... Parece-me que a construção do poema é a riqueza individual do poeta, sua forma personalíssima de criar, inseparável dele e razão pela qual ele é poeta. Agora se tomarmos o termo "construção" por "poema", só mesmo se for um excelente poema.

Toda a poesia é autobiográfica?
Em parte sim, pois simultânea com a vida do poeta, num jogo de espelhos e reflexos entre vida e obra. Mas não creio que seja plenamente autobiográfica. Isto é recorrente na crítica que enfoca a obra a partir da vida do autor. Um ponto de vista muito limitado e geralmente deformante. Tampouco acredito que se possa dissociar de vez vida e obra, enfocando-se apenas a materialidade da obra. São defeitos do olhar e do pensar, rígidos e redutores. Prefiro o ponto de vista múltiplo e o pensamento flexível. Há poesia que é autobiográfica, toda ou em parte, de fato, mas não toda poesia.

Em sua poética existe um "descontinuo revelar". Há uma espécie de esquizofrenia no escritor pós-moderno? Muito pelo contrário, conforme Lacan, o poeta é o único dentre diversos tipos de "loucos" que escapa. Lacan demonstra isso muito bem em gráficos e tais que fiquei rindo à-toa desde que o descobri. Aquela chacota do poeta como lunático cai por terra. A citação é riquíssima e suas referências e mais ainda: "descontínuo revelar" esta relacionado com o que afirma Mallarmé sobre o sujeito do enunciado na poesia moderna, que oculta "tanto o poeta como o leitor", ou seja, revelar-se pouco e a intervalos, como a lançar luz e sombra no "continuo espaçotempo" da lógica ocidental, quebrando-a e remoldando-a ao desloca-la de sua seqüência natural. Neste ponto o leitor e o poeta trocam de lugar.

Ainda um pouco na questão acima, o tempo poético desta revelação é oscilante? O tempo onde o jogo poético acontece é acelerado e depois freado? Como é o tempo dos acontecimentos em seus poemas? Eu diria que o tempo(espaço) é sempre flexível, e o espaço(tempo) é curvo, contrariamente ao ritmo do pensamento que é linear. O tempo dos acontecimentos é simultâneo e é também uma das causas da estranheza da sintaxe. Muito de minha poesia esta na tentativa de criar jogos complexos entre a linguagem e a sintaxe, passiveis de algum entendimento se o leitor de certa forma "sublimar" o que está ali.

"Deus é uma face obscura do poeta". O poeta necessita acreditar em Deus?
AFORISMOS

o obscuro é um poema de deus sem face
deus é uma face obscura do poeta
o poema é uma face obscura de deus
a face é um poema obscuro de deus
o poeta é um deus do poema sem face

Estes aforismos são circulares, pois os termos trocam de posição e função. Isto vai longe, um pouco de Tao, onde "o um é o todo e o todo é o um". Falar nesta questão de acreditar em deus serve para lembrar o episódio absurdo que se seguiu à morte de João Cabral, promovido por oportunistas mesquinhos, mais interessados em aparecer no calor dos fatos. Soube até de uma briga entre dois poetas divergentes nesta questão. Será que isto é tão relevante? Crer ou não crer, para mim, não é premissa para fazer a boa poesia.

O que vaga no além/voga em sua obra?
C'EST LA MORT

Do morto, restos do mundo
porque sim esquecer
este safado? ao eterno
safou-se? absoluto:
abismo de luto
não vale este putrefo
defunto um puto se
o que vaga no além
voga em sua obra? sobras
de tudo definharemos
como de ti aqui
comodamente sorvemos

É uma pergunta que fiz ao Drummond num poema, chocado com o seu falecimento. Como poeta eu espero que sim. Um pouco da eternidade, da imortalidade. O poeta como "gênio da memória": vale o que fica, o que se consegue transmutar desse fluído volátil e imponderável do além na matéria do poema. O éter, o fugaz, bem à vista ali, flagrado no verso, na figura, no som, no movimento. É mais um poema sobre a morte, a companheira definitiva. Como nas cenas metafóricas do filme surrealista de Cocteau, Orfeu, em que o poeta recebe mensagens do além pelo rádio, este é exatamente o sentido que tento dar ao poema.

Você nasceu em 1963, qual a principal característica da sua geração? É uma geração perdida?
Eu me perdi da minha geração. Fui pelo meu caminho de poeta, solitário e cosmopolita. Gauche? Praticando todos os estilos. Não editei nenhum livro. O mundo das editoras? "No, thanks", sabe bem cummings. Fui uma única vez a uma editora e me arrependi. Sou descaracteristico. E das panelinhas de poetas? Sempre muito chato. Fui ridicularizado gratuitamente numa lá do Rio, da Verve, jornalzinho da Claudia Roquete Pinto. Ninguém sabe disso, mas doeu fundo. Aquela matéria da Veja sobre as panelinhas diz tudo. E eles posaram direitinho pra foto! No jornalzão Folha de São Paulo, agora me publicam espontaneamente, mas já rejeitaram as únicas traduções de poemas do Updike em português feitas por mim, justo na época em que faziam um carnaval para ele por aqui. Quantos poetas e tradutores da minha geração ficaram à margem dessa maneira? Excluídos, sem vez, esquecidos? Geração é um conceito muito frágil ante o poder e a política de influências. Luto à minha maneira, me esquivo dessas armadilhas do tempo. Quero a poesia e não a autopromoção. Glória sim, vanglória não.

O fato de ser tradutor torna a sua autocrítica maior em relação à publicação de seus textos?
Sempre. Quanto maior o repertório, o contato com outras poéticas, proporcionalmente volto-me para minha própria produção com olhos mais rigorosos. Um pouco de influência (sem angustia) faz bem. É meu universo em expansão, eu e os outros poetas, além das línguas, numa semiosfera de afinidades e contrastes. A tradução de poesia é uma arte muito mais difícil que a criação, pois quando vista como tradução criativa requer, mais que habilidades de tradutor, habilidades poéticas limitadas pelo poema original. Qualquer deslize ou excesso e o poema passa a ser outro, um poema do tradutor e não daquele poeta que o escreveu primeiro. Como malabarismos numa corda bamba, muita disciplina e treino. Traduzir é um excelente exercício para poetas, talvez o melhor deles.

Pop Box é o nome de seu site. O que deve haver num sítio para que interesse ao público? Qual o uso faz da internet?
Para criar um site interessante e diferente, principalmente na área da literatura e poesia, é preciso ter um bom repertório da produção histórica e contatos com poetas atuais, mais algum conhecimento das linguagens e códigos da internet. Isto já é um bom começo. O segundo passo está em saber divulgar o site e conquistar novos colaboradores. O mais difícil é mesmo conquistar um espaço na rede. Os provedores brasileiros de acesso à internet não são simpáticos a iniciativas culturais (o meu, por exemplo, demorou mais de um ano para dar um simples link!). Não cedem espaço sem retorno comercial. Por usura, desinformação, privilégios de pequenos grupos ou por qualquer outro motivo menor.

No caso de Pop Box (http://users.sti.com.br/efres), aplicar um conceito do neobarroco, o deslocamento do ponto de vista único, do sujeito (sub-jecto) para o ponto de vista múltiplo (super-jecto), ampliado para a mudança de foco da produção pessoal para a produção coletiva, foi fundamental na concepção do site. Criar um espaço virtual e flexível para um recorte de certa poesia, de certas afinidades intelectuais e sensíveis o tornou possível e cativante. Abusando dos termos, uma pequena noosfera proliferante.

A poesia impressa é limitada aos recursos desse suporte e de quem detém o poder sobre eles. Novos poetas sempre tiveram enorme dificuldade em publicar e divulgar seus livros, geralmente às próprias custas. Tem sido assim há muito tempo, nada mudou, e com o sucessivo desaparecimento dos bons suplementos culturais, a imprensa tem se escusado a divulgar a poesia e sua crítica. Até mesmo um campeão de vendas como o excelente Caprichos e Relaxos de Leminski teve apenas duas edições já esgotadas. A impressão em jornal ou revista tem um alcance maior, porém efêmero, tendendo ao esquecimento.

Além destas limitações, some-se o altíssimo custo de se incluir cores, por exemplo; ou mesmo o limitado número de exemplares de um livro, que geralmente acabam sendo lidos apenas por uma pessoa e vão dormir nalguma estante. Um poema virtual na internet tem todas as cores, movimento, interação, som, pode ser visto e reproduzido por qualquer pessoa em qualquer parte do mundo a um custo baixíssimo, sem limite de tempo, sem gastos com transporte, gratuita e democraticamente.

Kamiquase é o nome do site que fez para Paulo Leminski. Qual a importância de Leminski e que legado deixou para a poesia?
Leminski é fundamental. Poeta de qualidades singulares, eruditíssimo, caia na boca do povo naturalmente com suas canções de sucesso. Sabia de tudo. Gênio nato. Sua passagem deixou uma cicatriz profunda na poesia brasileira. Não se pode mais fazer nada sem esbarrar em algo que ele já fez. Teve como ninguém uma enorme capacidade de síntese das poéticas anteriores. Ele era múltiplo e se espalhava pelo mundo generosamente. Daí a necessidade de criar-lhe um site, para recolher o que deixou disperso em jornais, revistas, livros, entrevistas etc., além do material inédito datilografado ou manuscrito que ficou com amigos. Há uma enorme aceitação para este material recolhido em Kamiquase (http://users.sti.com.br/efres/Leminski/kamiquase.htm) que até já originou um dossiê especial na revista argentina Tsé=tsé. Sei que meu esforço é pouco ainda, mas não darei ouvidos às sereias que dizem que não há mais nada dele que valha a pena. Este ano promete ser especial com a reedição de seus livros pela Brasiliense. Que venham todos, inclusive as traduções que há muito já se esgotaram. Sua morte é muito recente para que se possa avaliar sua real importância sem que se seja tocado pela emoção, pela sua presença tão forte, personalíssima, no seu legado poético.

Tem algum mote que o acompanhe?
Nec spe nec metu.

Qual o papel do escritor na sociedade?

Jogar a bolinha para o cachorro ir buscar

(2002)

Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente