A Garganta da Serpente
Entrevista com Cobra entrevista com nossos autores
Entrevista com:

Edson Kenji Iura

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- Edson Kenji Iura -

Entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão nosso habitante para o Balacobaco


Em tempo de banalidades, um Haicai pode parecer trivial, mas como disse ao Balacobaco, Edson Kenji Iura - o homem à frente do site "Caqui" -, a "coisa" é mais complexa. O nosso entrevistado contou-nos o surgimento do "sítio" e a proposta de vida em 3 linhas. Claro como o bom Haicai, respondeu as perguntas com a suavidade oriental.

Edson por Edson:
Nasci em 1962, em São Paulo. Moro em São Bernardo, SP. Sou técnico eletrônico. Participo desde 1991 do Grêmio Haicai Ipê, estudando e compondo haicais. Edito o "Caqui" visitar link, o primeiro sítio de haicai em língua portuguesa. Participo da edição da página de haicai do semanário "Notícias do Japão". Não tenho nenhum livro publicado com o meu nome, fora as participações em antologias.


Como surgiu o site Caqui?
O "sítio" (adoro esta palavra!) Caqui surgiu em 1996, com a função de ultrapassar as limitações de formato e conteúdo de outro "Caqui", também editado por mim: o boletim de divulgação do Grêmio Haicai Ipê (GHI), grupo paulista para o estudo do haicai, nascido em 1987. O Caqui impresso, um panfleto xerocado, supre a necessidade de escoar parte da produção do GHI, mas carece de espaço e recursos para artigos mais profundos e produção gráfica mais requintada, que podem ter lugar na Internet. Além disso, a versão em rede tem uma orientação editorial que privilegia (até certo ponto :-)) a pluralidade de expressão das diversas correntes do haicai em língua portuguesa, ao mesmo tempo em que mantém uma certa ortodoxia na área didática, sendo de minha total responsabilidade. A versão impressa é praticamente um órgão oficial do GHI.
O haicai é ancorado em teorias antigas. Ainda sobrevivem hoje?
As teorias que norteiam o estudo do Haicai consolidaram-se há mais de 300 anos no Japão, através de um mestre chamado Bashô (1644-1694), mas só se pode falar de "antiguidade" de maneira relativa. Ultrapassando o fosso cultural e lingüístico que separa as civilizações, poemas tão velhos ainda conseguem disparar uma centelha de emoção em leitores de diferentes origens. Ainda há outro ponto. Em diversos momentos da história, o ocidente foi buscar em outras culturas o fôlego de que precisava para fugir da estagnação estética e atingir novos paradigmas de criação e apreciação artística. As xilogravuras que serviam de embalagem e forração às quinquilharias importadas do Japão inspiraram os pintores franceses do século 19, enquanto o século 20 viu nas poéticas chinesa e japonesa (haicai incluído) a possibilidade de ultrapassar os limites até então conhecidos de utilização da linguagem (especialmente a partir de Ezra Pound). Sempre que se falar em vanguarda poética, alguém se lembrará do haicai.
É necessário o fenômeno poético para ser um haicai? ou qualquer ensinamento de três linhas é haicai?
A noção que temos hoje de poesia é muito ampla e foi construída inclusive com a colaboração do haicai. Assim, é também amplo o contexto em que se dá o "fenômeno poético". Para limitar um pouco o nosso campo de apreciação, poderíamos dizer que, da mesma forma que "ensinamentos" morais em forma de quadra rimada, tão presentes em nossa tradição, não têm lá grande eficiência poética, o mesmo ocorre com aforismos e observações sobre a natureza humana dispostos em três linhas, ainda que obedeçam à métrica 5-7-5.
O que é preciso pro texto receber a denominação de haicai?
Há algum consenso, entre os haicaístas brasileiros, ainda que mínimo, sobre a forma do haicai: deve ter três versos :-) A quem acha que é pouco, lembremo-nos de que nos Estados Unidos nem isso vale. Lá, haicai pode ter de um a "n" versos e, além disso, fala-se muito em "concrete haiku", isto é, haicai concreto, que, comparado aos poemas de nosso movimento concretista, acaba parecendo brincadeira de criança, "naïve", pueril mesmo. Aqui no Brasil, ninguém pensa em escrever "haicai concreto", e sim poesia concreta ou visual (com a exceção, talvez, de Pedro Xisto, mas este manteve a forma do terceto). Já quanto à métrica, à rima e à temática, a variedade de opiniões é muito grande. O GHI, ao qual me alinho, pretende fazer uma poesia dita "tradicional", da natureza, ligada à percepção das estações, à fugacidade das sensações físicas e descolada do subjetivismo, além de formalmente obedecer à métrica de 5-7-5 sílabas.
Como começou a gostar desta arte?
Minha formação literária é errática e precária. Ao tempo do colégio, no fim dos anos 70, lia avidamente o Folhetim, a Folha Ilustrada e jornais alternativos, como Movimento, Versus e Pasquim, embora não entendesse muita coisa. Além disso, muitos romances, especialmente Jorge Amado e Graciliano Ramos. Poesia era algo que não me entrava na cabeça. Foi só no decorrer dos vinte anos que comecei a apreciá-la. Por esta época, cresceu em mim o interesse pelas coisas japonesas, dentro de um esforço de decifrar minha identidade cultural nipo-brasileira. Meu avô escrevia haicais em japonês, o que me gerou certa curiosidade em conhecer o gênero. Descobri o haicai traduzido, acho que através de Olga Savary e do clássico de Paulo Franchetti, "Haikai - antologia e história", então recém-lançado. Em 1990, descobri que se realizava em São Paulo, no Centro Cultural, um encontro anual de aficcionados de haicai, hoje extinto, e fui lá ver do que se tratava. Fiquei siderado. Dois meses depois, o destino me colocou cara-a-cara com um dos palestrantes da ocasião, Francisco Handa. Apresentei-me, e então fui introduzido às reuniões do Grêmio Haicai Ipê, onde estou até hoje.
Quais são suas influências? Quais os "papas" deste tipo de expressão?
Em haicai, leio os clássicos japoneses. Os principais mestres são Bashô, Buson, Issa e Shiki, e há uma plêiade de outros poetas não tão notórios. Na medida em que meu pobre japonês permite, leio os originais e procuro traduzi-los, para divulgá-los em jornal e pela Internet. Muito importantes para mim também são os comentadores ocidentais do haicai, em especial o inglês Reginald H. Blyth e os americanos Harold Henderson, Kenneth Yasuda e Hiroaki Sato. Aqui no Brasil, meus gurus são os companheiros do Grêmio Haicai Ipê, em especial H. Masuda Goga, um autêntico mestre japonês de haicai. Via Internet, nutro-me da sabedoria de Paulo Franchetti, o maior estudioso brasileiro do assunto. Vejo algo da atitude do haicai em poetas como Bandeira e Drummond, que construíram uma obra embasada na afirmação das coisas simples, que, enquanto haicaísta, posso aproveitar. Acredito que Pessoa, através de seu heterônimo Alberto Caieiro, tem algo de proto-haicaísta, em sua recusa de intelectualizar o que vê e sente, ansiando apenas por fundir-se com a natureza ao redor. Não entendo poesia concreta, por absoluta falta de base cultural. Também não entendo a obra de Manoel de Barros que, ainda que construída sobre a natureza, como o haicai, me parece, salvo engano, apenas um exercício de non-sense.
Quem são os brasileiros que se dedicam a fazer haicai?
O haicai é a forma fixa mais praticada no Brasil. Há mais brasileiros hoje fazendo haicai do que sonetistas no século 19. A lista começou com Afrânio Peixoto, um escritor de múltiplas habilidades, que pertenceu à Academia Brasileira de Letras e teve notoriedade a seu tempo, mas que hoje está totalmente esquecido. Outra personalidade da história do haicai é Guilherme de Almeida, poeta laureado, autor da "Canção do Expedicionário", inventor de um formato de haicai que alguns chamam de "parnasiano", com rima interna, mas que hoje também está esquecido. Millôr Fernandes publica seus "hai-kais" há décadas, embora estes situem-se melhor no campo do humor do que no da poesia. Quanto a isto, o nome mais influente que tivemos foi certamente o de Paulo Leminski, que mergulhou fundo no estudo da literatura japonesa, ainda que imprimindo um toque muito pessoal aos seus próprios haicais. Creio que quase todo mundo já tentou, ao menos uma vez, sintetizar um momento poético em três versos, mas entre aqueles que têm uma obra consistente em haicai, com alguma importância no cenário literário nacional, eu gostaria de citar Alice Ruiz, que tem uma atividade didática importante, difundindo o haicai em oficinas por todo o Brasil. Logicamente, não poderia esquecer os poetas do Grêmio Haicai Ipê, que ainda que não tivessem nenhum mérito por suas obras, seriam notáveis apenas por se constituírem num excêntrico grupo de brasileiros reunidos especificamente para estudar e compor haicais. E não poderia esquecer Paulo Franchetti, que levou a reflexão sobre o haicai para dentro da Universidade.
O que acontece na sua lista de discussão?
Não é minha lista, e talvez não seja nem do Professor Paulo Franchetti, seu administrador oficial. É um espaço público, gratuito e sem restrição de acesso, que ele conseguiu nos computadores da Universidade de Campinas, para se discutir haicai. Uma crítica que costumo ouvir é que lá discute-se ("briga-se", dizem) demais e compõe-se de menos. É possível que haja algo de verdade nisso. No decorrer de 3 anos de existência, a lista amealhou um núcleo de pessoas absolutamente apaixonadas por haicai, do Amazonas ao Rio Grande, altamente articuladas e que escrevem muito bem e bastante (não necessariamente versos), tratando-se como velhos amigos embora nunca se tenham dado as caras. É este grupo que gera as discussões e que, talvez, iniba, involuntariamente, a entrada de outras pessoas que desejam apenas expor seus versinhos. Mas é um ambiente muito estimulante, e divirto-me muito por lá.
Como vê a www? É a modernidade a serviço do passado?
A Web, hoje, é apenas um arremedo das novas tecnologias que vêm por aí. Até o momento, temos uma grande predominância do texto, a ponto de se falar em renascimento da escrita. Mas não sei se o otimismo vai durar por muito tempo, à medida em que som, vídeo e outras experiências sensoriais forem se integrando de maneira mais perfeita à Rede. Aproveitemos agora para ler e escrever à vontade, enquanto a Internet 2 não chega por aí.
Qual o papel do escritor na sociedade?
Esta é uma pergunta que se deveria fazer a quem escreve por profissão. Sou apenas um médium. Como leitor, posso palpitar: o escritor deve escrever o que lhe der na telha. Em algum lugar, a algum tempo, encontrará um leitor que o admire. Especialmente agora, em tempos de Internet.

(2002)

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