A Garganta da Serpente
Entrevista com Cobra entrevista com nossos autores
Entrevista com:

Claudio Daniel

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- Claudio Daniel -

Entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão nosso habitante para o Balacobaco


Claudio Daniel nasceu na cidade de São Paulo, em 1962. Estudou Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero, e trabalhou como repórter e redator free-lancer na Folha de S. Paulo. Atuou também na Editora Abril e na Nova Cultural. Em 1989, criou com um grupo de amigos a revista Gaia, dedicada a assuntos culturais. Publicou dois livros de poemas: Sutra (edição do autor, 1992) e Yumê (Ciência do Acidente, 1999). Traduziu autores como Rimbaud, Quevedo, Huidobro, entre outros, e publicou ensaios sobre a poesia latino-americana do século XX. Colaborou em diversas revistas e jornais literários: Cavalo Azul (SP), 34 Letras (RJ), Bric a Brac (DF), Dimensão (MG), CULT (SP), Medusa (PR) e no Suplemento Literário de Minas Gerais. Publicou também em várias revistas estrangeiras, entre elas Tercer Milenio (EUA), Serta (Espanha), Tsé- tsé (Argentina) e Doc(k)s a lire (França). Na Internet, seus poemas podem ser acessados no site Popbox, http://users.sti.com.br/efres Atualmente, Claudio está trabalhando em dois livros: A sombra do leopardo, sua terceira coletânea poética, e Geometria da água, com traduções de José Kozer. O autor reside em São Paulo com sua mulher, Regina, com quem vive há dez anos.

Quando você começou a se interessar pela poesia? Quais foram as sensações do primeiros contato?
A poesia vem das palavras, mas é alguma coisa além de sons e conceitos. Talvez venha de uma zona escura entre a sensação e o pensamento. Algo que se nutre dos nomes e das formas, dos ritmos e das cores. Só posso dizer que por trás de toda definição está um gozo animal, uma música estranha, um sabor de massala e uma ascese. Não sei dizer quando começou, com quantos anos corri atrás do coelho de Alice. Sei que, quando criança, uma de minhas aventuras secretas era a de entrar, sozinho, na biblioteca de meu pai: eu trancava a porta, acendia o seu cachimbo italiano e folheava os volumes de capa dura. Foi assim que descobri esse rosebud que é O corvo, de Edgar Allan Poe. A leitura desse texto nervoso, metálico, foi um choque. As palavras tinham música. Elas cantavam: "... quem te trouxe a meus umbrais, / A este luto e este degredo, e esta noite e este segredo / A esta casa de ânsia e medo...". O poema provocou reações físicas em mim, algo que não sei descrever. Depois, li as Flores do mal, de Baudelaire: "Uma ilha preguiçosa e molenga e sem dono / Em que há árvores ideais e frutos saborosos; / Homens de corpos nus, finos e vigorosos, / Mulheres cujo olhar tem franqueza e abandono". Aquilo eram palavras. Mas eu sentia o sabor, o cheiro, o calor táctil de cada sílaba, lendo em voz alta, com pausas e ênfases. Depois, vieram outros demônios familiares: Rimbaud, Mallarmé, Valéry. Descobri com fervor William Blake, com suas Canções da experiência; Trakl, com Sebastião em sonho; Rilke, com os Novos poemas. Vieram também Hopkins, Yeats, Celan... a Semana de Arte Moderna, Murilo e Cabral. Eu já estava tomando chá com o Chapeleiro Maluco, e em breve jogaria críquete com a Rainha, em seu jardim. Escrevi poemas antes dos quinze anos, mas não tenho registro deles; o senso crítico falou mais alto que a vaidade. Aos trinta, publiquei o primeiro livro, Sutra, que já apresentava temas que eu iria retrabalhar em Yumê: o tempo e a eternidade, a memória, o silêncio, o sexo, a aniquilação. Assim, por exemplo, em As dádivas:
os dons
da água e do vento
silêncio de tigres
— o branco
areais
a areia sem tempo
— o branco
primícias
da sublime
desmemória:
vôo de borboletas
Hoje, trabalho em um novo livro de poemas, A sombra do leopardo, em que o tecido poético é costurado como um jorro de breves metáforas. Gostaria de destacar, dessa coletânea o poema Tocar os poros do verde:
O
verde,
sua pele
ácida. Tocar
os poros
do verde, florir
metálico. Ouvir
sua voz de asa
e sombra.
Olhos, faisões
de cegueira.
Jóias de irada
divindade.
Abelhas e lagostas
amam-se, odeiam-se,
tulipas caem
na goela
do tempo.
Tuas mãos tateiam
a nervura imprecisa
da cicatriz
e não há mar,
nem pão, nem página.
Alucino-te
ao mirar-me
no silêncio
de uma laranja
quadrada.
Aqui, nada mais viceja.
Lacraias afogam-me
em tua lágrima
e se fecha a porta
esquerda. Toda palavra
me fere com sua cor.
Quando cessa
o canto, calados,
ouvimo-nos
em um corte
azul.
Este é um poema com versos breves. A concisão permite grande agilidade rítmica. Qual é a importância do ritmo, para você? A peça inicia com "O verde" e termina em "azul", o que não é coincidência. O que é a cor na sua poesia?
Tudo é um jogo entre o claro e o escuro, o som e a idéia. A música dá sentido ao mistério, torna concreto o que é abstrato - essa é a função do ritmo. Não se trata de ornamento, mas de um princípio construtivo. A tensão no poema, o choque entre luz e sombra, alto e baixo, não se resolve na anarquia, no aleatório que dissolve todo o efeito estético. É preciso haver unidade dentro da variedade de ritmos, dentro da dissonância. Isso é o que eu procuro em meus poemas. Tocar os poros do verde é uma peça construída a partir de relações entre os sons e as cores, que representam estados psicológicos: "Toda palavra / me fere com sua cor. / Quando cessa / o canto, calados, / ouvimo-nos / em um corte / azul". A concisão dos versos, além de dar movimento e agilidade ao poema, concentra a expressão das metáforas. A elipse, por sua vez, cumpre uma função sonora e de sentido: ocultar o objeto, para revelar a dúvida. Esse vazio desejado por mim, essa ausência de uma figura de contornos nítidos, não é apenas um recurso de estilo: forma e fundo são o mesmo, "amam-se, odeiam-se, tulipas caem / na goela / do tempo". Outro poema de meu novo livro que gostaria de citar é O poeta pedólatra:
Até
a última carícia
do prazer atípico, longe
dos seios estéreis —
plumas ou punhais, não
músculos enrijecidos
de basalto, suor de metal
libidinoso — assim os jaguares
mastigam iguanas de poliéster
sob o sol. Porém, a lenta
desaparição do olhar
(estranha metamorfose)
faz o tempo esférico
ser menos do que o espaço
indefinido pelo tato
— diálogo mudo
entre as mãos e o vazio.
(Fica o consolo das narinas
o odor — para ele —
tão sweet love, sweet honey
de pés fortes, grandes e sujos
e a voz das palavras, o mar
interminável das vogais.)
O contraponto entre o jaguar e as iguanas de poliéster produz uma antítese entre o real e o falso. Qual o lugar da realidade em seus poemas? Qual a importância da realidade para o poeta?
O tempo é algo abstrato, concebido pela mente. O espaço é percebido pela visão e, em menor grau, pela audição e pelo tato. Tempo, espaço e movimento formam aquilo que imaginamos ser a realidade. Para quem sofre de cegueira, no entanto, as percepções são diferentes: o tempo é quase irreal, e as distâncias só são compreendidas com o auxílio dos ouvidos e das mãos. Quando dormimos, esquecemos quem somos, e o que é o mundo; algo similar ocorre, talvez, na loucura. No sono profundo, não há percepção de formas; não há altura, largura, volume ou profundidade. E é provável que, na morte, tais noções se desarticulem por completo. A realidade, assim, é uma construção subjetiva, pois depende da ação dos sentidos e da mente. Em nossa própria consciência cotidiana, as coisas não são o que aparentam: nada é estático, nada permanece igual a si mesmo, tudo se altera, se transforma em outro, numa contínua metamorfose. O que nos faz recordar, é claro, de Ovídio e dos disfarces de Zeus, que se fez de cisne para seduzir Leda e de chuva de ouro para amar Dânae. Também nos relatos indianos, no Mahabharata, no Ramáyana, temos a transfiguração dos heróis divinos, como Krishna, que assume a forma do universo. Tudo isso parece fantástico, mas acontece conosco todo o tempo - com o nosso corpo, por exemplo. As células nascem e morrem, a compleição muscular se altera ao longo dos anos, e também a ossatura, a vitalidade dos órgãos e a textura da pele. Até os nossos pensamentos mudam. Essa constante mutação, ou vir-a-ser, fogo heraclítico, é a única coisa que não muda, na matéria; é o único "real" que podemos apreender. E os meus poemas, claro, refletem essa eterna metamorfose, como em Até cinzas:
Talvez
pétala, bailado
mudo, ardência:
aqui
é onde a seda
inflama o azul
em amarelo
(fosse tingida
em volátil púrpura,
cicatriz esculpida
em outra voz).
Algo de felina,
ruidosa volúpia
em seu desejo,
que se consome
até cinzas.
O tempo esférico é o que acaba com a concepção de progresso?
Sem dúvida. No Ocidente, desde o cristianismo, firmou-se a idéia de que a história é uma linha reta, evolutiva, da Gênese até o Apocalipse. Depois, tal princípio perdeu o sentido bíblico, de história da salvação, e ganhou outro significado, o de avanço econômico e tecnológico. Prefiro pensar no tempo como esfera, não linha reta; como um sonho (yumê) ou jogo cíclico. Nesse sentido, não acredito em evolução ou progresso, mas em sucessivas mutações; porém, como as possibilidades combinatórias são quase infinitas, nesse I Ching ou caleidoscópio ilimitado, temos uma variedade de resultados que não pode ser calculada. A matemática não seria possível sem as noções de zero e de infinito; a filosofia também não, e a poesia dialoga com a idéia e o número. Em meu poema Nagarjuna, digo:
Olho
peixe flor
tão falange
pelicano
— pedra até
morder
o verde
leopardo:
cego espaço
para um galo
acender o chá
de manteiga
e a sopa
de cevada.
Disse
Nagarjuna:
por trás
das treliças,
o avesso
do sonho
(impalpável),
que não cessa.
O que a poesia tem em comum com a filosofia?
A poesia é uma forma de pensamento. Quando o poeta muda a linguagem, ele age sobre a consciência: mudar as relações entre as palavras é alterar a nossa atitude junto às pessoas e ao mundo. Por que é assim? O idioma, regido pela gramática, tem uma lógica própria, que define não apenas a nossa forma de ler e escrever, mas também o nosso modo de sentir, pensar e agir. Todos nós somos aristotélicos, pelo uso que fazemos do idioma. Porém, ao criar outra lógica verbal, outra sintaxe, diluindo e alterando as funções normais de sujeito, ação verbal e objeto, o poeta cria uma nova visão de mundo. Dos pensadores que tenho lido ao longo dos anos, poucos me impressionaram tanto como Schopenhauer, autor de obras maravilhosas: O mundo como vontade e representação, Parerga e Paralipomena, entre outras. Dediquei a ele um poema, que leva o seu nome por título:
Breve,
a jornada
— água de nenhuma
fonte, gema
de extinta mina —
não mais que o fulgor
de vidros (cristaleira)
e o viço de madeira nova,
lua líquida. O tempo
lacera o verde
nos olhos do gato,
lepra das flores, ácido
que corrói toda cor ou pele
em escuro miasma,
peixes do nada.
Sim, você sempre soube:
este é um ofício doloroso,
uma ópera ruidosa.
Porém, tu foste o tigre.
A existência da morte, um fato que hoje não preocupa tanto a filosofia, sempre foi uma questão central em Platão, Sêneca, Descartes, Montaigne, Schopenhauer, porque ela põe em xeque todas as nossas certezas. Em nosso íntimo, mesmo se formos ateus, existe a esperança de uma vida infinita, de algo que sobreviva às mutações. Esse algo pode ou não ser um Deus interior (Atman); talvez seja uma Vacuidade, Nirvana budista, ou algo que jamais saberemos, ou sempre soubemos. De todo modo, se "la vida es sueño", tem de haver Aquele que sonha este sonho.
Você é um poeta dionisíaco? Como lida com as sensações e as percepções? Como vê o mundo? Como é o mundo no filtro que é o poema?
Tudo o que sabemos e sentimos vem de nosso contato com as palavras e as coisas. Quer dizer, da experiência sensorial e intelectual. O poema reflete tudo isso, nama-rupa. Porém, o texto poético não é um simples reflexo ou eco do "real", mas um ente em si, uma coisa, com sua lógica interna, estrutural. O poema tem sua própria fauna e flora, como queria Huidobro. Não acredito na inspiração, nem na "escrita automática" dos surrealistas, para mim uma desculpa psicológica para justificar maus versos. Concordo com Poe, que em seu ensaio O princípio poético afirma que a imaginação é combinatória: ela faz permutas e simbioses com os elementos de nossa memória, que vieram de leituras e vivências. O trabalho do poeta é coisificar as impressões que vêm desse vasto repositário de lembranças e obsessões. Ou, como diz Poe, nessa memorável sentença: poesia é a "construção precisa do impreciso". Com Mallarmé, aprendi a buscar "o verso que, de diversos vocábulos, refaz uma palavra total, nova, estranha à língua e como que encantatória". Apolo e Dioniso, diz a Sibila, são duas máscaras de um deus sem rosto. Onde começa em mim o exaltado, o delirante, e onde termina o cerebral, o geômetra? Não sei bem o que dizer. Sei que a linguagem de meus poemas é planejada; nenhuma palavra é colocada ao acaso. O ato de escrever, porém, é compulsivo; sinto um êxtase de bacante, de sultão com odaliscas, de santo levitando sobre as ondas.

O camaleão alucinado de nossa época acena em duas direções: a primeira, alvorada, jardim de cerejeiras, manga fatiada num prato; a outra, glacial, cabelos de Medusa, escorpião mordendo a própria cauda. Dizendo de outro modo: fico animado com as chances de um novo humanismo, que vem do encontro entre a ecologia profunda, o pacifismo, a nova física e o budismo tibetano. Surge desse caldeirão, aquecido por uma nova safra de intelectuais, a hipótese de que a Terra é a nossa única pátria, sem distinções entre etnias, credos e fronteiras. Por outro lado, vemos ressurgir a fênix mórbida do racismo, do fascismo, das guerras coloniais; e vemos a rapinagem dos grandes monopólios, que tentam impor um "monoteísmo de mercado", na frase feliz de Roger Garaudy. Os EUA se arrogam em ser a polícia do mundo, e um resultado dessa prepotência foram os ataques brutais da OTAN à Iugoslávia, que motivaram meu poema Olhar atrás do pêssego:
I

Olhar atrás do pêssego:
pálpebras, mãos
que se tocam
esse canto, algo entre
a garganta
e a coluna cervical.


II

Malva túnica, água verde água
jasmim é nome de flor
a pele (pétala)
brutalizada em grafite.
Áspero é o tecido da voz, modulada
em pontas de agulha.

III

Todo lugar é aqui, o dentro se expande
metal canta metal, florações
de lâminas, e o tempo
se desfaz. (Ela sorri, manqueja
e traz o cego alaúde
decorado.)

IV

Rosbife, queijo de cabra, presunto
vinho serbo, esterco ou nada,
uns tocam violoncelo,
águias bicéfalas, os turcos
/se foram com o crescente
em ondas: celebra-se
o rito bizantino, liturgia em esloveno.

V

Campa, campânula, campanário,
verde-malva em volta, pinheiros
o lago, a moça (trigo, centeio)
ainda sorri: é esmeralda, mas
logo garrafadas, tumulto
de pontes que desabam.

VI

Aqui é a estação do olhar: toda
/história é impureza.
Alvura, escarlate, azul-piscina,
o abismo é sem cor,
íblis que te abisma, espelho
(desluzido) âmbar. O tempo é ruína;
onde cessa, é o canto.
"Navegar é preciso viver não é preciso"?
Fernando Pessoa desejou escrever os Lusíadas da Hora Morta, o épico da twilight zone. O resultado é esse belo e estranho livro, Mensagem. Aqui, o poeta adotou o lema dos antigos navegantes portugueses: "Navegar é preciso, viver não é preciso". Essa legenda é a exaltação do herói trágico, que renuncia ao gozo da vida "fútil, cotidiana, tributável" para mergulhar na eternidade. O poeta fez a denúncia do homo faber, do homem oco e empalhado, manequim ambulante de shopping centers, ao qual contrapõe a figura de Dom Sebastião, o arquétipo do santo guerreiro. Esse poemário alegórico, em sua riqueza de símbolos, permite muitas e diferentes leituras.

Para mim, é uma metáfora de gritante atualidade. Nós perdemos a dimensão do sagrado, as mitologias, e trocamos os valores morais pela tabela de preços. Nos afastamos do Mistério, e sem ele não é possível a unidade com o Todo. Em outras palavras, não existe ética sem metafísica, e nós ficamos órfãos da Divindade. Hoje, só se discute economia de mercado, tecnologia, dicas de saúde e beleza: como Fausto, seduzido por Mefisto, trocamos toda a cultura humana por uma pobre visão de mundo que nos reduz a robôs. Nesse sentido, a voz de Pessoa é quase profética, oracular: precisamos repensar nossos valores e modo de vida. Será que não fizemos o pacto com o Cujo, o Tinhoso, o Não-sei-que-diga? Sem a busca do sentido mais profundo, a comunhão com o sagrado, o homem é apenas "uma besta sadia, / cadáver adiado que procria". Fernando Pessoa foi um poeta-vidente, dos poucos que fazem sentido hoje, na Era da Banalidade.
Quem existe, como poeta, em seu interior? Que vozes poéticas escuta?
A poesia vem da poesia, disse Jorge Luis Borges. Vem dos livros e autores que lemos. É a leitura e a nossa vivência no mundo que definem a nossa relação com o idioma e a linguagem. Hoje, ouço o eco de muitas vozes, um imenso coral; e essa multidão de timbres, sem dúvida, vem inseminando a minha criação poética. Ouço em mim um anacoreta japonês, que viajou com Bashô nas sendas de Oku; um trovador provençal, comparsa de Arnaut, amante de belas damas, da lírica imprevista e dos duelos; um poeta barroco, vizinho de Don Luis de Góngora, para quem as boas metáforas não são menos complexas do que as catedrais; um romântico, por certo, amigo de Keats, Hoelderlin, Sousândrade; um simbolista francês, que fumou ópio com Rimbaud num café imundo de Paris; um modernista avesso ao moderno, como Eliot e Pound, para quem a invenção verbal é um modo de zombar da idéia de progresso; e um cultor de enigmas e labirintos, como Borges. Por certo, há muitas outras vozes - sou uma espécie de médium dos autores que li. Sei que devo muito a Cruz e Souza, Ernâni Rosas, Augusto dos Anjos; a Oswald de Andrade, Murilo Mendes e João Cabral; a Augusto e Haroldo de Campos e Paulo Leminski. Por certo, estou sendo injusto; mas não seria possível citar todos os poetas a quem amei aqui. Devo acrescentar, fora das referências literárias, a música de Richard Wagner, em especial suas últimas obras, Tristão e Isolda, O Anel dos Niebelungos, Parsifal, que despertam em mim um júbilo selvagem, quase sexual. É a música do paraíso, ou pelo menos do "meu" paraíso, nesse inferno de gralhas desafinadas que nos atormentam, dia e noite, nos meios de comunicação.
Como está a poesia brasileira? Concorda com a matéria publicada na revista Veja?
A nova poesia brasileira, produzida nos anos 90, possui autores de primeira qualidade, como Carlito Azevedo, Claudia Roquette-Pinto, Ademir Assunção, Angela de Campos, Ronald Polito e Jussara Salazar. Poucas vezes, em nossa literatura, tivemos um conjunto tão expressivo de poetas. Infelizmente, essa riqueza é ignorada pelos cadernos culturais da imprensa diária, que preferem noticiar amenidades sobre o show business americano, novelas de televisão ou grupos musicais de valor duvidoso. Vivemos sob o império da mediocridade, que só lê obras de auto-ajuda, romances sentimentais ou manuais de direito e economia. A matéria publicada em Veja apenas ilustra a miséria de nosso jornalismo "cultural". A melhor poesia brasileira tem sido publicada em revistas de pequena circulação, mas de alta qualidade, como Dimensão, Medusa, Inimigo Rumor, Monturo e no Suplemento Literário de Minas Gerais. É nessas publicações, e não na imprensa "oficial", que vamos encontrar a corrente sangüínea que alimenta nossa literatura.

Por outro lado, as grandes editoras não se arriscam a publicar os novos poetas, que são obrigados a pagar do próprio bolso a impressão de seus livros, cuja distribuição em livrarias deixa um pouco a desejar. Como diria aquele sósia russo e mal-humorado de Verlaine, o que fazer? Em minha opinião, cabe aos próprios poetas a tarefa de divulgar sua produção. Um caminho lógico para isso seria a criação de uma revista especializada em poesia, periódica e de circulação nacional, distribuída em livrarias e bancas de jornal, que espelhasse o que se faz hoje de melhor em nossas letras. Uma revista aberta à invenção, à pesquisa de linguagem, que fosse a caixa de ressonância do novo. A crítica séria e qualificada é exercida hoje por quem faz poesia, por quem que está atento aos processos de criação, e não por jornalistas que vêem o poeta como uma espécie de planta exótica africana ou libélula rara de Madagascar.
Qual a utilidade da Internet? Quais sites lhe interessam?
Se a poesia do século XX teve influência do jazz, das artes plásticas e do cinema, a do novo milênio, com certeza, será marcada pelo computador, que permite integrar som, imagem e movimento. O espaço cibernético, além disso, possibilita a edição de "livros" eletrônicos interativos, realizando a profecia de Mallarmé. O que não representa a morte do livro impresso, a meu ver, mas amplia as possibilidades de veiculação da poesia. A Internet significa a superação das fronteiras nacionais. Hoje, é possível a troca de informações entre diferentes pontos do planeta numa velocidade nunca vista. Isto fortalece as chances de um universalismo, a afirmação de uma cultura humana pluralista, rica e diversificada, o que é diferente da globalização, que significa apenas a dominação econômica dos grandes monopólios. Creio que o caminho para evitarmos o desastre é o da integração: somos da mesma raça, habitamos o mesmo planeta, temos os mesmos direitos e responsabilidades. A Internet não tem apenas importância para a informação estética, mas para a transformação política: agora, não podemos mais ficar indiferentes à fome na África, ao genocídio em Timor Leste ou à ocupação do Tibete pela ditadura chinesa. Podemos nos manifestar, boicotar, pressionar governos, exercer a nossa cidadania planetária, indo além dos limites de fronteira. Eu e minha mulher, Regina, somos adeptos dessa guerrilha tecnológica. Dos sites que visito, indicaria três: Popbox, editada pelo excelente poeta Elson Fróes, com páginas de tradução, poesia visual e sonora; Caqui, especializado em haicais; e o Jornal de Poesia, editado a duras penas pelo Soares Feitosa, que é uma verdadeira biblioteca virtual.
O espelho e as coisas

OLHO-de-virgo, barriga-de-peixe, dentes-de- leão: palavras são reflexos. Habitei no espelho e comi serragem, vidro moído, trapos de jornal; e copulei com os relógios de pulso, com as navalhas, com fechaduras. Sobre a mesa da sala, entre as vogais dispersas do alfabeto, estilhaços de ampolas para abolir a idéia do tempo. Os vermes saem pelo buraco da agulha, a palavra jade é pus, a palavra jalde é cuspe. A palavra janga está nua, vestida de alarme. As maçãs enlouquecem. O verde enfurece as conchas e a lesma pensa na árvore da palavra despida que sonha. Tudo são nomes e formas. Lâminas cortam os fios desatados de água estagnada. Há uma praça onde comprei pêras ou figos, não sei. Onde ouvi a menina dizer eibishuá. A lua pisca um olho para a jovem parca, ela é cega e surda, e come entulho no banco da praça. Sua voz arisca, bruta, tantaliza: fio de arame tenso, buraco de agulha, cano de pistola. Tudo são palavras, e palavras são coisas. Que não permanecem. Tudo queima, e o sol vegetal é a urina de um cão que arde em vermelho. A poesia pode dizer o tempo que escorrega de seus dedos? A poesia diz tudo e não quer dizer nada e seu nome se escreve no vazio da página, sítio de possíveis reflexos. Tudo são simulacros, pegadas no limo do nada. Todavia, o velho coxo sangrado disputa comida com o cão. A poesia pode andar de bicicleta, deslancha no mar azul, onda em castelhano se diz ola, nuvem em francês se diz nuage. Ela pode ser escrita em pele viva, em algodão, no suor do Marrocos, no violoncelo de São Petersburgo, numa bodega de La Habana. Porém, a tesoura corta tudo em pedaços. Permanece uma sombra, um eco de ruidoso silêncio. Que o espelho captura e multiplica em um número incalculável de reflexos.

(2002)

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