A Garganta da Serpente
Entrevista com Cobra entrevista com nossos autores
Entrevista com:

Caio Meira

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- Caio Meira -

Entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão nosso habitante para o Balacobaco


Pequena nota biográfica: Nascido em Goiânia, 1966, Caio Meira veio para o Rio de Janeiro em 1984. Formou-se e fez mestrado em psicologia na UFRJ. Atualmente, faz o curso de doutorado em poética na Faculdade de Letras da UFRJ. Traduziu o "Livro Negro do Comunismo", (Courtois, S. e outros, Bertrand do Brasil, 1999, 917 pp.). Publicou dois livros: "No oco da mão" (UERJ, 1993), e "Corpo solo", (Sette Letras, 1998).

"O poema está à vista / ao alcance da mão". Aonde mora a poesia? É possível existir poema sem poesia?
Curioso você ter perguntado "aonde" mora a poesia e não "onde" mora a poesia, como seria de hábito. Penso que essa pequena licença gramatical é oportuna por indicar muito do que pode significar um lugar próprio para a poesia. "Aonde" aponta para um deslocamento, no sentido de "aonde se vai", para que lugar se direciona o movimento que visa alcançar algo, no caso da sua pergunta, uma morada. Normalmente, "aonde mora" seria a união de duas noções em aparência antagônicas, a da busca e do repouso. Mas na poesia há sobretudo engajar-se por regiões paradoxais, fronteiriças: a eloqüência do silêncio, vôo e pouso conciliados num mesmo movimento, nascimento imbricado na morte, ou seja, através dessa fissura da linguagem, apresentar o que já está escapando. Um bom poema está sempre "à vista", diante dos olhos, ao alcance da mão. A simplicidade que os grandes poetas conseguem dar a seus poemas faz com que a poesia surja como o objeto que salta diante dos sentidos como se viesse do nada, como se nascesse ali, naquele instante que teima em perdurar. Mas quem conhece os avessos da poesia sabe que se trata principalmente de um investimento total, da vida inteira, com seus desejos e instantes, felicidades e tristezas, destinos e acasos. Fazer o simples gesto da mão para alcançar o objeto-poema que "está à vista" implica, na maioria das vezes, todos os outros movimentos e sentidos da vida do poeta. Há no poema, antes de mais nada, uma concentração dos motivos da vida que o criou (vida que passa a ser criada por ele). Por isso o poema é esse ser complexo, ao mesmo tempo visível e invisível, próximo e distante, que está dito mas é indizível, que tem sua face clara, mas há sempre nele algo que escapa (o poema existe para ser relido, previne Bachelard), algo obscuro. Retomando a questão inicial, a casa da poesia situa-se na instabilidade de morar no próprio movimento de partir, nesse estar/não-estando que encontra "abrigo na hora instável da madrugada", isto é, morando "aonde" prevalece o movediço e o mutável. O lugar de repouso do poeta se dá justamente na instabilidade que ele consegue gerar em seus poemas, uma vez que viver a intensidade da poesia é deparar-se com a sentença rimbaudiana: "trata-se de chegar ao desconhecido através do desregramento de todos os sentidos". O que seria esse desconhecido senão o lugar próprio da poesia? Morar no desconhecido, estar continuamente avançando na direção do desconhecido, é "aonde" mora a poesia.

Quanto à relação entre poema e poesia, é fácil verificar num "sebo" do centro da cidade quantos poemas sem poesia, quanta palavra impressa em forma de verso e rima que não significa nem significará nada para ninguém. Para ir mais além, devemos abandonar a questão de haver ou não poesia num determinado poema - posto que não há juízos nem juízes para respondê-lo -, perguntando-nos se há uma poética intrínseca ao que está sendo feito ou lido. A força poética não está em um ou dois poemas bem feitos, ela depende muito mais da devoção à invenção, não de versos, nem mesmo de imagens, mas invenção de mundos, de todo um mundo ao qual só se tem acesso através de uma poética, de um pensamento que se dê na forma de um poema. O bom poema oferece uma passagem a um mundo poético; quando lemos um poema de um Ferreira Gullar, por exemplo, temos a nítida a impressão de que entramos em seu mundo, onde o que vale é o que foi inventado por ele e por nenhum outro.
No poema "Pegador" (No oco da mão, UERJ, 1993), o sol está dentro da gaveta. Um sol enclausurado pode iluminar a palavra ou o tempo é quem mostra o poder e a qualidade de um texto?
Relendo o poema, não tive a sensação de que o sol estaria enclausurado dentro da gaveta; não acho que em "Pegador" trate-se de um sol claustrofóbico, aprisionado. Penso antes que "sob o sol / dentro da gaveta" aponta para o que está intrínseco a esse poema, a meu ver, o corpo-a-corpo. Aliás, acho que a questão de todo o livro "No oco da mão" é essa, a dos poemas obtidos no corpo-a-corpo com a cidade, com o mar, "com os punhos cerrados / na arena", onde "cada braçada vence uma tempestade". Estar "sob o sol / dentro da gaveta" não é em absoluto esconder-se desse sol, nem escondê-lo ali dentro; ao contrário, indica que nem mesmo dentro da gaveta, junto aos papéis e poemas que esperam para ser escritos, deixa-se de estar sob um sol cerrado, no corpo-a-corpo acalorado com as matérias da vida que se tornarão ou não poemas. É nesse sentido que o poema se torna um pegador, na acepção própria do boxe: na arena, vale o confronto de punhos erguidos, vale a esquiva para evitar o golpe, vale a dança em torno do adversário para conhecê-lo melhor, vale agarrá-lo para recuperar o fôlego e o equilíbrio, vale ir à lona e ter de lutar de novo, em outra oportunidade, vale até jogar a toalha quando se sabe que um adversário vai demoli-lo inexoravelmente, só não vale passar todos os "rounds" fugindo dele. Como diz a sua pergunta, o sol, mesmo dentro da gaveta, ilumina a palavra poética, mas também a aquece, a desidrata, a queima.

Quanto ao tempo, o sol é o tempo, em todos os seus sentidos, o meteorológico, o do transcorrer da vida, o do amadurecimento dos filhos e frutos. Graças ao sol, o tempo não se reduz a uma entidade totalmente abstrata. Todos os poemas transcorrem sob o sol, mesmo estando dentro de gavetas, de estantes ou de livros, ou ainda nascente na cabeça ou na ponta da língua. Poder lidar com esse sol inelutável e perseverar na existência dá qualidade e valor a um texto e a uma vida também.
A rua é uma constante na sua poesia e tudo que ela representa em oposição ao claustro. Como é falar da rua e de Emily Dickinson? O ser humano é um paradoxo ambulante?
A rua só se opõe ao claustro em aparência! Um sujeito pode ser prisioneiro de uma rua ou de uma cidade. Outro pode passar seus dias numa cela de prisão sem ser claustrofóbico. A claustrofobia, e creio que os psiquiatras corroborarão essa afirmação, está na cabeça e na alma de quem se sente aprisionado. A rua, em minha poética, não se opõe à casa, ao quarto. Ao andar pela cidade, ao buscar nas ruas os poemas e a vida, não estou fugindo de uma prisão qualquer, estou apenas dirigindo-me ao lugar em que a vida pulula em todas as suas formas e velocidades, na diversidade plena de movimentos sem antagonismos. Depois, ao voltar para casa, ao entrar em meu quarto, em meu escritório de 8m2, não me sinto apartado das ruas, que continuam a agir em mim, em minha fala e em minha escrita.

Veja o caso extremo da Emily Dickinson. Ela, que passou boa parte de sua vida "enclausurada", isto é, vivendo praticamente em seu quarto e só saindo para cuidar de seu jardim, escreveu cerca de 1770 poemas, entre os quais não se respira nenhum tipo de claustrofobia. Pelo contrário, a intensidade alcançada por sua escrita - em 1862, ela escreveu 366 poemas; em média, mais de um poema por dia! - a leva a regiões que poucos alcançaram. E mesmo assim não creio que sua existência tenha sido paradoxal, pelo menos, mais paradoxal do que a de qualquer outro. No caso do poeta, não há uma fórmula, um caminho demarcado para atingir o sublime. Seja no rebelde viajante Rimbaud, seja na aparente calma vida monástica de E. Dickinson, nos dois casos, alcançou-se um extremo, chegou-se a essa região fronteiriça com o desconhecido - lugar próprio da poesia. Dentro do quarto de uma cidadezinha da Nova Inglaterra ou perambulando pelas ruas sórdidas de Londres ou Paris, quem pode dizer quando vai se dar o encontro com o poema?
CORPO SOLO (Sette Letras, 1998) é uma radicalização de NO OCO DA MÃO? é possível entender CORPO SOLO sem antes ler NO OCO DA MÃO?
Em todos os sentidos, "Corpo solo" é uma radicalização de "No oco da mão". Em primeiro lugar, porque no livro de 1993 há uma reunião do que de melhor eu havia feito até então. Ainda que se possa discernir suas linhas poéticas principais, trata-se ali de uma coletânea de poemas. Já os poemas presentes em meu "Corpo solo" foram pensados em função do livro. Ao contrário de "No oco da mão", no qual os poemas antecederam o livro, em "Corpo solo" foi a presença do livro que antecedeu a existência dos poemas, ou pelo menos interferiu em sua criação. Pode-se dizer que os poemas de "Corpo solo" pertencem a um projeto poético que é de fato a própria existência do livro. Esse é um aspecto. Além disso, se em "No oco da mão" está em jogo a descoberta do corpo-a-corpo da palavra com a cidade e com a vida como principal veículo para a minha escrita, em "Corpo solo" esse corpo-a-corpo não é mais um ponto de partida, mas a sua realização, a sua efetivação. Os poemas do "Corpo solo" são frutos da experiência de um "solo de corpo", seja na rua, seja em casa, seja na praia, seja apenas na imaginação. Respondendo mais diretamente a sua pergunta, o que está em germe em "No oco da mão" realiza-se em "Corpo solo". Nesse sentido, ler o livro de 1993 antes do livro de 1998 ajuda a mostrar que caminho foi percorrido para se chegar ao que há de maduro em "Corpo solo", ao solo de corpo da minha escrita.
No poema VELOCIDADES PARA PASSEIO PÚBLICO, do livro CORPO SOLO, quando o não dito é mais importante que o discurso aparente?
Não só para esse poema, mas para todo o livro, trata-se da experiência do corpo enquanto matéria e superfície em contato com outras matérias e superfícies, explorando as misturas decorrentes, os avizinhamentos, o embaralhamento de limites e fronteiras. Há sobretudo uma tentativa de equivocar o limite que separa o corpo da cidade, ampliar esse limite, recuá-lo, e principalmente estar em contato com essa região. Em vez de conhecer os meus limites, quero, ao contrário, desconhecê-los, provocá-los, instigá-los, fazer com que eles não se tornem uma casca ou caparaça entre mim e o mundo, mas ao contrário, que essa fronteira, que é um pórtico, permaneça permeável e móvel. Talvez "velocidades para o passeio público" seja um de meus poemas em que isso aparece mais radicalmente, pois não há ali nenhum discurso sobre esse limite, isto é, o poema não fala sobre isso, ele apenas se torna a mobilidade dessa fronteira sendo experimentada. Trata-se de um poema superficial, no sentido de haver ali mais do que a experiência da superfície, do atrito entre as várias camadas de superfícies materiais - mas também imateriais -, umas em contato com as outras: "passo espremido entre paisagens, fibras de aço, dobra de carne, embalagens de plástico"; ou então: "um pico de morosidade assalta-me o torso, desoculta intervalos, espaço de praça e beco". Não há nesse poema nenhuma pretensão de ser mais do que uma experiência dos limites entre o corpo e a cidade, entre o homem e o mundo; de fato, o não-dito ali presente, o seu indizível, não é um discurso sobre o limite, mas o próprio limite em movimento.
"arrepios reverberam (...) / barulhos (...) atravessam o asfalto // transeuntes engolem breu na areia da praia, / um silêncio corta (...) / (...) súbitos ruminam (...)". A sua poesia é uma poesia móvel. O seu poema é uma avalanche? Como diria o Titãs, tudo acontece ao mesmo tempo agora?
Mas toda poesia é móvel! Faz-se poesia levando algo a seu extremo, ao ponto máximo do seu ser, mas também à região desconhecida, fronteiriça, onde se dá a separação com outros corpos, outra matéria, outro espírito. "Extremo", nesse caso, significa ao mesmo tempo o auge e o fim. O poeta se esforça, levando alguma coisa ao seu extremo. Nesse sentido, a poesia não pode deixar de ser móvel, pois na imobilidade não há surpresa, não há espanto, não há susto. Todo bom poema é imprevisível, pois não há como anteceder seus movimentos, prever o seu destino. Ao ler um bom poema, somos movidos por ele, somos arrastados para uma outra região, para um outro mundo. E é por essa via que o poema pode tornar-se uma avalanche, quando significar um movimento violento que arrasta consigo tudo o que encontra pela frente. Muitos poemas e poetas que li tiveram sobre mim esse efeito de avalanche: Ferreira Gullar, Emily Dickinson, Arthur Rimbaud, Edmond Jabès, Alberto Pucheu, Manoel de Barros e tantos outros. Com eles fui e permaneço sendo arrastado para o meu desconhecido, para o lugar em que me desconheço, para o portal do meu crescimento poético.

Seguindo a indicação bachelardiana, sabemos que o instante do poema está em descontinuidade permanente tanto com o instante precedente quanto em relação ao instante que se segue. Tudo o que acontece na poesia cria seu próprio tempo, e acontece de forma diversa da cotidiana, quando as coisas se ligam umas às outras previsivelmente, quando se pode antecipar os acontecimentos. Em poesia não há antecipação. Esse agora a que se refere a letra da música dos Titãs, é justamente o tempo que se diferencia, que se distingue e perdura imprevistamente em nosso espanto.
"e nunca mais houve o sétimo dia" está escrito num verso do livro CORPO SOLO. O que seria o sétimo dia? O tempo nasceu no sétimo dia?
O sétimo dia bíblico foi o dia do descanso, do repouso depois da criação. Mas creio tratar-se de um equívoco. Quem pode criar verdadeiramente alguma coisa e depois sossegar, isto é, sair do âmbito e das conseqüências do que foi criado, estar, mesmo que por um breve período, livre do açodamento próprio à criação? Contos e histórias fantásticas estão repletos de exemplos de quando a criatura se volta contra o seu criador, que pensava poder descansar depois de criar, estar impune ao ato de criar. Quem cria abole no mesmo ato o seu sétimo dia. É possível a um pai deixar de ser pai, mesmo que por um instante, mesmo que sua criatura pereça? Paternidade significa esse engajamento perene, eterno, que não se desfaz com o tempo. Como dizem, amor de mãe (e de pai) não tem limites, não se esgota. Para o poeta, não há sétimo dia. O poeta não tira férias, não se isenta. Alguns poetas acordam sobressaltados à noite com frases ou palavras marcando sua presença. Outros andam quilômetros em busca de soluções, ou mesmo sob a égide de um nascimento repentino. Mesmo Rilke, ao ficar mais de uma década sem escrever poesia, não repousava: algo de maior estava sendo produzido nele, sendo gestado silenciosamente sob a aparência de um descanso. As "Elegias duinenses", dez anos depois de iniciadas e logo interrompidas, foram concluídas em poucos dias. E em seguida vieram os "Sonetos a Orfeu". Durante todo esse período de aparente inatividade, não havia qualquer repouso. Dez anos foi o tempo necessário para gerá-los. Do ponto de vista poético, não há sétimo dia, não há como não ser instigado, aguilhoado, pelas tentações da criação e da criatura. Nesse sentido, o tempo não nasce do sétimo dia, mas do próprio ato criador, já que não há tempo possível antes da criação.
No poema GARE DU NORD estar sempre chutando o pau da barraca é uma forma de viver intensamente? As dificuldades forjam bons poemas?
Dois escritores inspiraram fundamentalmente esse poema: Arthur Rimbaud e Henry Miller. São dois exemplos supremos de levar uma existência poética a seu extremo máximo. Quem passou por suas obras não permaneceu ileso, foi arrastado por essa "avalanche", utilizando-me da imagem de sua pergunta anterior, que é por exemplo o "Trópico de Câncer" ou "Uma estação no inferno". Os dois estavam continuamente "chutando o pau da barraca", termo que no poema quer dizer bem mais do que a provocação ou a rebeldia juvenis, já que está ligado a um destino de "aridez, deserção e desperdício". "Estar sempre chutando o pau da barraca" aponta para o contínuo ultrapassar de suas próprias conquistas, o que só se pode conseguir não estando fixado em fórmulas ou estilos. Trata-se de uma convocação inapelável pelo desconhecido, pela experiência do desconhecido e sua transformação em escrita. Para os dois, ser escritor não era uma profissão, mas uma modalidade de ser, uma vibração que impele ao "ócio, à fuga, à fome", a uma forma de vida que tem de ser "marginal", no sentido de que está sempre à margem de si própria, vizinha dos seus limites. Importa frisar que em ambos os casos não se tratava de uma ligação imaginária ou imaginada com essa existência à margem, era algo vivido, experimentado. Para mim, na condição de escritor e de poeta, cabe-me também não estar apenas imaginariamente identificado com essa revolução, no sentido que não basta e nem mesmo tem valor repetir as experiências rimbaudiana e milleriana, mas sim procurar na vida e na escrita a minha própria margem, o meu próprio desconhecido, e transformá-los em poesia.
Em GARE DE L'EST, mesmo afirmando que não volta atrás, não é o passado um material nobre para a construção de uma poética própria?
Do mesmo modo que não se está ileso à ausência do "sétimo dia", não se pode "voltar atrás nas cicatrizes, nas tatuagens e nos dentes que já se foram". Criar tem esse imperativo que obriga a caminhar para a frente, a chutar continuamente "o pau da barraca", a não se amarrar e nem se fixar em suas próprias conquistas. Criar implica transformar, deformar, alterar o real e a realidade. Nesse sentido, o passado, como qualquer outra coisa que se submeta à experiência poética, pode constituir-se, como você disse, num material para a construção de uma escrita própria, desde que surja como deformação ou transformação. Mas nunca como um material "nobre". A poesia - pelo menos a poesia que me interessa - por ter esse apelo pagão, essa convocação profana, lida com a nobreza apenas para mundanizá-la, dessacralizá-la.

Mas há, no que tange a memória, um outro aspecto ainda mais importante. Para quem percorre o caminho da poesia, existem inúmeras armadilhas a serem ultrapassadas. A primeira delas é o uso de trocadilhos e jogos de palavras. Muitos são os poetas e as poéticas que permanecem nesse que me parece ser um nível muito primário da escrita. A segunda armadilha é o apelo à memória, à infância, ao passado, como imagens que bastariam ser mencionadas para trazer à tona uma "aura" poética. Ora, a poesia, por ter uma ligação radical com o presente, não pode ser mais do que a exposição crua desse presente e de suas entranhas. O tempo da poesia não pode ser outro que o instante presente, esse instante que não passa, que desafia a continuidade e teima em permanecer. Referir-se ao passado por si só não leva à poesia, não traz poesia, apenas copia - e cópia não é poesia - ou evoca imagens e sensações que outrora tiveram valor pessoal mas que não apresentam nenhum relevância poética propriamente dita.
Escrever na busca de uma linguagem, criar uma linguagem à medida em que o poema está sendo escrito é um paradigma da poesia pós-moderna?
Obviamente, sua pergunta se refere ao fato de atualmente não haver modelos poéticos preestabelecidos, isto é, para a poesia contemporânea não prevalece um cânone poético a ser seguido. Cada poeta inventa suas próprias soluções para questões que não podem nem mesmo ser postas lado a lado.

Mas, para ir além, há algumas considerações de extrema importância a esse respeito. Não creio que se possa falar em paradigma poético. O primeiro sentido de paradigma é "modelo padrão". Em nenhuma medida pode-se assimilar a escrita a um modelo ou a um padrão, já que se trata antes de mais nada de criar, isto é, fazer surgir o novo, o que não está previamente estabelecido. Mesmo quando paradigma quer dizer algo que se repete, modelos que permanecem orientando durante certo tempo a busca de uma geração, e isso efetivamente acontece quando se examina uma "geração poética" como a de 22 ou a de 45, importa muito mais considerar as soluções particulares de cada poética do que as que foram comum a todos os membros do grupo. Pode-se, por exemplo, assimilar a poética de Drummond ao paradigma de 22 ou João Cabral ao de 45 sem empobrecer suas obras?

Quanto à busca particular de uma linguagem enquanto se escreve o poema, trata-se do imperativo poético propriamente dito, mas pelas razões opostas àquelas apontadas por sua pergunta. Pois se há de fato a criação de uma linguagem, ou melhor, se simplesmente há criação, não pode haver nenhum paradigma envolvido, já que criar é justamente afastar-se de modelos e padrões, e isso não somente no que diz respeito à poesia contemporânea, mas toda boa poesia de qualquer tempo.
O que faz alguém ser poeta?
Ao contrário do que possa parecer, não se trata de algo que o poeta tenha a mais. O poeta não é nem mais culto, nem mais inteligente, nem mais sábio do que os demais homens. Para mim, ao contrário, a poesia vem de uma fissura, uma rachadura, de algo que não ele não tem e que não terá jamais. Como epígrafe aos nove poemas de "prosa do chão", utilizo uma frase do conto-depoimento "The Crack-up" de F.S Fitzgerald: "há várias maneiras de um homem rachar". O poeta é um homem rachado, fissurado, e a poesia vaza por essa rachadura. Escolher a poesia, ou ser escolhido por ela, implica abraçar um funcionamento distinto, poder-se-ia dizer anormal, no sentido daquilo que foge à norma. O poeta é aquele que busca não funcionar de acordo com modelos preestabelecidos. Ele inventa um funcionamento próprio, que invariavelmente parece aos demais como bizarro, heterodoxo. Quem convive com a poesia, quem existe em função da poesia, percebe e cultiva essa rachadura, tirando dela as experiências que estão na base de sua escrita. Veja-se Artaud, por exemplo, que soube vasculhar como poucos essa fissura, tateando os limites entre sanidade e insanidade; ou o próprio Fitzgerald, que coloca a descoberta de sua condição de rachado, "prematuramente rachado", como o ponto nevrálgico de toda a sua vida. Depois de rachado, não só o homem não é mais o mesmo, mas todo o mundo e a própria vida não são mais os mesmos. Todas as coisas do mundo passam a ter funções e valores diferentes e se mostram de maneira distinta para quem rachou e conseguiu manter-se suficientemente inteiro para não soçobrar na loucura. Por isso, há várias maneiras de um homem rachar. A convivência com a própria fissura dá a medida e o valor de uma poética.
Qual uso faz da internet?
Relativamente à poesia, penso que a internet pode funcionar como uma ampliação dos campos de descoberta, de investigação, de rastreamento de diversas e diferentes abordagens da poesia. Mas, a meu ver, isso deve ocorrer de uma maneira quase que subversiva ao uso comum da rede. Normalmente, o ciberespaço é a forma mais radical da descartabilidade que assola a cultura de uma forma geral. Para ir de uma página a outra, basta um clique, e isso sem que haja qualquer tipo de comprometimento, de repercussão interna, íntima. Ora, a poesia não pode funcionar dessa maneira, pois a imagem poética é muito mais uma interrupção da continuidade do que um deslizamento tranqüilo entre campos diversos. A poesia não faz "rede", não faz "teia", ela irrompe quebrando a previsibilidade dos encadeamentos contemporâneos. A "pedra" cabralina não pode ser um hiperlink ou hipertexto para a "pedra" drummondiana. Há um abismo, um universo entre essas duas pedras.

Tenho uma página na internet visitar link onde se pode ter acesso ao conteúdo dos meus dois livros. Meu objetivo é abrir e ampliar a possibilidade de uma descoberta, de que alguém que esteja navegando, deslizando, pela rede, interrompa ali o seu caminho, isto é, que possa acontecer uma interrupção - ou uma irrupção - nesse deslizar e que desta maneira a poesia cumpra com o seu destino de ruptura.
Tem alguma epígraf e que o acompanha?
Várias são as palavras e frases que nos acompanham e que nos guiam, de modo muitas vezes obsidiante. De fato, somos verdadeiramente assombrados por essas frases. A já citada "há várias maneiras de um homem rachar" esteve presente durante boa parte do processo de elaboração de "corpo solo". Para o meu próximo livro, há em especial uma frase que me persegue, e que eu persigo, encontrada numa introdução à obra de Emily Dickinson. Robert N. Linscott comenta que ela escreveu como Thoreau quis viver: "close to the bone". Essa expressão, de difícil tradução, concentra minha principal preocupação atual: a de alcançar uma escrita que se faça não somente a partir do corpo, mas a partir do osso, do nervo, do tutano. O corpo, fendido, como na fratura exposta, expõe o nervo que sobe à flor da pele. Atingir essa escrita do nervo, escrever não mais com a ponta dos dedos ou com a mão, mas com o tutano dos meus ossos, viver e escrever "close to the bone", é sob a égide dessa epígrafe que me movimento agora.
Qual o papel do escritor na sociedade?
Nenhum. Por tudo o que disse nas respostas anteriores, depreende-se que não há papel possível para o escritor. Primeiro porque em todos os sentidos do verbo criar não cabe o de cumprir um papel, isto é, ter uma função preestabelecida (se não for preestabelecido não é função). Por exemplo, o ator representa um papel no teatro ou no cinema. Ele estuda suas falas e as repete. Se há criação no trabalho do ator, esta se dá justamente quando ele consegue escapar ao papel, dizendo o que não está dito através do que já foi dito, dando filigranas ao que está sendo repetido. Para o escritor, repetir, cumprir um papel, é ir na direção oposta a da criação, pois não há a presença da transformação, da deformação, da invenção. Dizendo de outra maneira, se o escritor cumprir um papel na sociedade ele imediatamente deixa de fazer o que há de mais primordial ao seu ofício, ou seja, dar vazão à invenção, deixando sempre a porta aberta para a entrada do desconhecido, Ora, se houvesse um papel para a poesia, seria o da convivência com o desconhecido, com aquele de quem não se pode dizer quem é nem o que é. O desconhecido, sabe-se da sua presença, ou melhor, pressentiu-se que ele esteve presente, mas ninguém pode dar-lhe um nome certo, dizer qual o seu endereço fixo ("aonde mora"), identificar sua profissão verdadeira. Aliás, assimilar a escrita ao contato com o desconhecido (com o estranho, na acepção que a palavra tem em francês - "étranger", aquilo que é ao mesmo tempo estranho e estrangeiro) indica o quão pouco ajuizado é trilhar esse caminho, no sentido apontado pela sabedoria popular: "é sempre perigoso convidar um completo desconhecido a entrar em sua casa".

(2002)

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