A Garganta da Serpente
Cobra Cordel literatura de cordel
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Os mistérios do amor narrados em prosa e verso por ilustre cantador
Romance de cordel

(Eduardo Borsato)

Praça da igreja de uma cidadezinha do interior. O Cortejo, levando a imagem do Padroeiro, entra na praça. Cantam:

CORTEJO

No céu é padroeiro,
na terra é protetor.
Pros pobres dá alento,
pros ricos dá amor.
Na fome alimento,
no frio cobertor.
Da cidade a maior glória
reside neste evento.
Tê-lo sempre em nossa história,
faça frio ou sopre vento.
Nesta praça, nesta hora,
rogamos proteção
contra praga,
mau olhado,
contra dor no coração.
Por isso a sua imagem
trazemos neste andor.
Ela já nos dá coragem
contra a morte ou qualquer dor.
Sua festa é uma folia,
enche a todos de encanto.
Ao povo dá alegria,
ouça bem o nosso canto.
Lembre bem a nossa gente
aí no céu, junto ao Senhor.
É povo humilde mas é crente,
sempre reza com ardor.
Finda aqui a louvação,
bem amado padroeiro.
Tudo foi de coração,
peito aberto, verdadeiro.
Queira bem a todos nós
e ao povo brasileiro.

Colocam a imagem dentro de um pequeno nicho, ao lado da entrada da igreja.

HOMEM

A festa assim termina,
em grande contentamento.
Só no ano que vem nós vamos
bisar o acontecimento.
Agora é ir andando
pra cama que é lugar quente.
O dia já vem raiando,
logo mais temos batente.

MULHER

Ouça aqui, meu bom amigo.
Tanta pressa é um pecado.
Na certa o nosso Santo
vai ficar muito zangado.

HOMEM

Cruz credo! Não diga isso.
É blasfêmia, imprudência.
Mas que falta de consciência.
Que mulher mais linguaruda.
Acusar assim o Santo
de ser qual um pintacuda.

MULHER

O que disse é um fato,
qualquer um pode atestar.
Nunca a festa se encerrou,
sem uma história se contar.
É costume bem antigo.
Se agora não for seguido,
quem poderá duvidar,
vai trazer grande castigo.

HOMEM

É verdade o que ela diz?
Se for, fico caladinho.
Não meto mais o nariz.
Não quero me arriscar
ao santinho desgostar.

POVO

É verdade, sim senhor.
Faz parte da tradição
contar-se sempre um relato
que encerre uma lição.

HOMEM

Então me dou por vencido.
Que comece logo a história.
Tenho bem limpo o ouvido.

MULHER

Pra isso só precisamos
de ter um bom narrador.
Mas esse não é o problema:
fale você, cantador.

CANTADOR

Agradeço o elogio.
Só que hoje vai ser espeto.
Amanheci meio frio.
Não sei se vou ser capaz
de um enredo arquitetar.

MULHER

O que é isso, rapaz?
Vai nos decepcionar?

HOMEM

Fazer doce a essa altura
é coisa bem temerária.
O santinho te prepara
a câmara mortuária.

CANTADOR

Não é doce, eu garanto.
É falta de inspiração,
motivada, podem crer,
por forte indisposição.

POVO

Canta, canta, cantador
uma história bem sentida.
Que contenha muito amor
e a lição prometida.

CANTADOR

Meus amigos, não insistam.
Eu me sinto muito mal.
Assim vou comprometer
minha honra profissional.

POVO

Canta, canta, cantador
uma história bem sentida.
Que contenha muito amor
e a lição prometida.

CANTADOR

Não podíamos deixar
pra uma outra ocasião?
No ano que vem eu conto,
em vez de uma, uma porção.

POVO

Canta, canta, cantador
uma história bem sentida.
Que contenha muito amor
e a lição prometida.

CANTADOR

Mas que sarna vocês são,
tão difícil de aturar.
Que outro remédio eu tenho,
senão os pontos entregar?

POVO

Silêncio então se faça,
silêncio, por favor.
Enfim vai se desatar
aqui este cantador.
Que se ouça sua história
com amor e atenção.
Fique sempre na memória
sua ilustrada lição.

CANTADOR

O caso que vou narrar
é coisa do dia a dia.
Por ele vai-se mostrar
que a mentira é porcaria.
Personagens são o povo
e o nosso Padroeiro.
Ou, mais particularmente,
o Santo e um boiadeiro.

POVO (canta)

Quem quiser saber meu nome
que pergunte ao Senhor.
Boiadeiro, boiadeiro,
boiadeiro andador.

Foi de um passo que eu saí
lá de casa no Encantado.
Minha mãe falou assim:
"vai, meu filho, abençoado."

A guiada lá na curva
viu uma sombra, se assustou.
Corre, corre, corre boi.
Mar no campo se tornou.

Na guiada me falta um boi,
ô-ô-ô, me falta um,
ô-ô-ô me falta dois.
Na guiada falta uma rês,
ô-ô-ô me falta duas,
ô-ô-ô me falta três.
Cadê, cadê minha corda,
a corda de laçar boi?
Por aqui meu boi fugiu,
não sei pra onde ele foi.

Quando vim de minha terra,
eu vim foi de pé no chão.
Sapato de couro cru,
no peito um coração.
Agora eu vou-me embora,
ê-ê,
num lindo balão de vento,
ê-ê,
e deixo o mundo cá fora
ê-ê
em grande contentamento.

CANTADOR

Ele se chamava Bento,
Maria era o seu amor.

BENTO

Há vinte anos nos queremos,
sempre com grande calor.

MARIA

No dia em que nos casamos,
o mundo era uma só flor.

CANTADOR

A festa de casamento
passou para a nossa história.

MARIA

Que cara fez meu marido.
Não me sai mais da memória.

BENTO

Tive cagaço um momento.
Depois me estufei de glória.

MARIA

A cauda de meu vestido
era um colosso, um portento.
De seda pura e organdi,
importado cem por cento.

BENTO

Quase matou o seu pai.
Como chorou o avarento.

CANTADOR

A igreja ficou lotada,
nem mosca podia entrar.

MARIA

Meu pai é que fez questão
de a todos convidar.

CANTADOR

Veio gente importante:
o prefeito, vereador,
seu cabo, o coronel.

BENTO

Também tinha impostor:
o Viriato, seu Manoel,
dizendo que era doutor.

MARIA

De todas minhas amigas
nenhuma estava ausente.

CANTADOR

No céu também o convite
a dente foi disputado.
Pros santos a maior glória
era a de ser convidado.

BENTO

Na igreja o melhor lugar
ficou para o Padroeiro.
Juntinho do altar mor,
na fila era o primeiro.

MARIA

Depois vinham deus menino,
a Virgem e São José,
este último muito sério,
reclamando dor no pé.

CANTADOR

Mais atrás vinha São Jorge,
é claro, com o dragão.
Santo Onofre, Santa Bárbara
e lá no fim São João.

MARIA

Por último os anjinhos,
formados numa só ala.
De branco, tão bonitinhos,
faziam de mestre sala.

BENTO

Isso tudo sem falar
no povaréu impaciente,
que na igreja se empurrava
pra não ficar do ato ausente.

MARIA

Enfim, da terra e do céu,
sem nenhuma exceção,
veio gente aos magotes,
lotavam mais de um vagão.

CAPETA

Vejam só que mulher falsa.
A quem pensa iludir?
Que enorme cara de pau,
para que assim mentir?

MARIA

De onde saiu esse tipo,
macambúzio, esquisito?
Me explique, meu marido,
quem o teria parido?

CAPETA

Quem me pariu foi o mal,
num dia de bebedeira.
Vim ao mundo de manhã,
em forma de caganeira.
De minha mãe nunca soube,
o que não é coisa estranha,
nem notícia momentânea.
Por isso é que se diz
que sou legítimo fruto
de geração espontânea.
Tenho imagem inusitada,
sem igual em todo mundo
e por ninguém igualada.
Na cabeça um par de chifres,
igualzinho a um corno manso;
na cara a barba em ponta
me faz parecer em ganso;
meus pés não são pés de gente,
vejam só como é que pode,
eu os tenho semelhantes
aos cascos de um velho bode.
É na bunda, no entanto,
que está meu maior problema.
Não é normal como a de todos,
para mim é um dilema.
Termina num grande rabo,
com chumacinho na ponta.
É ou não é uma chatice
portar essa macaquice?

MARIA

Meu marido, que horror!
É o Capeta este senhor?

BENTO

Claro. Sem tirar nem pôr.

CAPETA

Não se pense, no entanto,
que eu esteja descontente.
Isso tudo até que é bom,
pois me torna diferente,
me coloca em grande voga.
Se existe alguma coisa
que a fama nos garante
é ser sempre extravagante.
Aliás, não é por me gabar,
mas desde que o mundo é mundo
no coração de todo homem
eu habito lá no fundo.
Sendo assim, fico à vontade
pra mentira desvendar.
Para mim é uma sopa
qualquer fato aclarar.
Um exemplo lhes esfrego
agora bem no nariz,
no que disse essa mulher,
linguaruda infeliz.

BENTO

Já é a segunda vez
que a ela você acusa.
De uma coisa lhe previno:
cuidado, você abusa.

CAPETA

Bento, deixe de ser besta.
Fique aí bem caladinho.
Não me encha muito o saco,
que eu te fodo direitinho.

POVO

Ouça o que ele diz, Bento,
com jeito e muito tento.
O diabo é perigoso.
Te vira em enorme sapo,
nojento e asqueroso.
O motivo desta zanga
no entanto é um mistério.
Não poderia o senhor
aclarar o vitupério?

CAPETA

É fácil de entender,
não há nada a explicar.
Estes dois se recusaram
pro enlace me convidar.

POVO

A afronta de fato é grande,
não é custoso compreender.
Mas depois de tanto tempo
não há mais nada a fazer.

CAPETA

Ao contrário, ao contrário.
A vingança já está pronta.
Trago a coisa ainda entalada
bem no meio da garganta.
Para usar mais precisão,
há vinte anos que me vingo
destes dois sem coração.

POVO

Que vingança será essa
de tão longa duração?
Será praga, mau olhado,
ou coisa sem expressão?

CAPETA

É uma grande maldição.
Mede tanto quanto a raiva
que guardo no coração.

POVO

Então fale de uma vez.
Morro de curiosidade.
Quero logo conhecer
do Capeta esta maldade.

CAPETA

Falo, sim, nesse instante.
E o momento aproveito
pra maldição renovar:
jamais possa este casal
descendência gerar.
Que vivam sempre sozinhos,
sem que nunca uma criança
lhes venha a vida alegrar.

POVO

Que vingança mais cruel
essa que acabo de ouvir:
impedir uma mulher
do próprio filho parir.
Só podia mesmo ser
uma arte do diabo.
Não pertence à humanidade
uma tão grande maldade.
Que deste fato se possa
uma lição retirar:
nunca se deve ao Capeta,
sem razão desafiar.

CANTADOR

Do exposto também se tire
outra clara conclusão:
constitui da minha história
apenas a introdução.
Na verdade ela começa
numa tarde de verão,
com o casal a conversar,
sentados os dois num banco
da pracinha do lugar.
Foi quando se achegou
a Ritinha Parideira,
que prosa logo puxou.

RITA

Boa tarde, minha vizinha.

MARIA

Como está, dona Ritinha?

RITA

Estou um pouco cansada.
Queria era me sentar.
Me arranja uma beiradinha?

MARIA

Claro, claro. Com prazer
lhe damos uma vaguinha.

RITA

No estado em que estou,
não guento ficar em casa.
Me sinto feito galinha,
quero sair, bater asa.
Mas se ando logo me canso.
Veja só que amolação.
Se não procuro descanso,
me dispara o coração.

MARIA

Não me diga que você
de novo está de barriga.
Desculpe se mostro espanto.
Esta freqüência me intriga.
Se não me engano, este ano
já é a terceira vez.
Assim você corre o risco
de ter um filho por mês.

RITA

Não queria em meu peito
a esta idéia dar guarida.
É coisa que me incomoda,
machuca feito ferida.
Mas tenho que concordar.
A notícia é verdadeira.
Não sou mais uma mulher.
Me sinto uma chocadeira.
Aliás, há muito se afirma,
e isso só me causa horror,
na ciência sou caso único,
engasgo qualquer doutor.

MARIA

Esta vida é bem gozada.
Uns têm tanto e outros nada.
Você não acha que o fato
devia ter encher de glória?
É ter lugar garantido
no Brasil, na nossa história.

RITA

Ai, vizinha, por favor,
de mim tenha um pouco de pena,
te peço pelo Senhor.
Sou vítima é de castigo,
castigo do salvador.
Toda coisa começou
Porque eu, quando mocinha,
tinha um rosto encantador.
Todo homem que me via
caía duro de amor.
Destrocei mais coração
do que pedra um britador.
Por mim se desesperavam,
muitos até se matavam.
Como era comovedor.
Mas um dia tive um sonho,
um sonho aterrador.
Nele surgiu um grande anjo,
de aspecto ameaçador.
Nas mãos trazia o retrato
de meu último admirador.
"Rita, Ritinha", ele disse.
"Cuidado com a faceirice.
Não seja assim tão gabola.
Não trate o amor dos outros
como se fosse uma esmola.
Um dia Deus te castiga,
faz tua vida virar
uma constante fadiga."
Por dez vezes sem parar
o sonho se repetiu.
Mas eu era moça tonta,
meu orgulho se feriu.
Respondi assim pro anjo:
"Vá pra puta que o pariu!
Sou dona do meu nariz.
Amor não dou a ninguém.
Qualquer um faço infeliz."

POVO (canta)

Oh, Ritinha, que pecado.
Que pueril imprudência.
Por ela ainda está pagando
uma dura penitência.

Quem vela por nós é o Senhor,
me diga meu pai quem é.
Quem vela por nós é o Senhor,
o homem é bichinho é,
menor que bicho do pé.
Quem vela por nós é o Senhor
e Nossa Senhora da Guia.
Quem vela por nós é o senhor,
toda noite, todo dia.
Quem vela por nós é o Senhor,
me diga meu pai quem é.
Quem vela por nós é o Senhor,
salvando os filhos da fé.

Quem está de ronda hoje?
É Deus mais a Virgem Maria.
Quem está de ronda hoje?
É o batalhão da porfia.
Quem está de ronda hoje?
Padroeiro é que vem rondar.
Uma bênção derradeira
à Ritinha veio dar.
Quem está de ronda hoje?
Padroeiro é que vem rondar.
Abre o peito, Parideira.
Deixa o Padroeiro entrar.

RITA

Depois disso minha vida
desandou, virou vertigem.
O meu rosto envelheceu,
enfeiou, hoje é fuligem.
Desde então nenhum homem
sequer olhou mais pra mim.
Foi então que me amiguei
com o sapateiro Crispim.
Pensei que esse era o fim
da minha sorte perdida.
Ai, como estava iludida!
Era apenas o começo
da enfiada de tropeço
que ainda estava por vir.
Para sempre pago o preço
do conselho não ouvir.
Como pesa a minha cruz!
Basta ter um pensamento
para um filho eu dar à luz.
Conheço agora o tormento,
a ira lá do Senhor,
reservada para aqueles
que ele julga pecador.

MARIA

O ocorrido com você
é uma tristeza, faz pena.
É coisa até pra virar
um bom ponto de novena.
No entanto vou pedir
que você me dê licença
de uma coisa discordar,
sem provocar desavença.
Só um ponto quero frisar:
o que é mal pra nós, às vezes
pros outros é um manjar.

RITA

Me dê logo um bom exemplo
pra essa história aclarar,
senão eu não me convenço,
é melhor você parar.

MARIA

Melhor exemplo não há,
flagrante como um clarão,
quem poderá duvidar,
é a nossa situação.
Uma frase é o bastante
pra demonstrar claramente
esta verdade cortante:
para você parir filho
é pior do que a morte;
para mim parir unzinho
é o melhor que pode a sorte.

RITA

Se é só essa a questão
eu lhe dou uma receita
que em matéria de prenhez
é de longe a mais perfeita.
Num dia de ventania,
de vento bom lá do norte,
na ceroula de seu Bento
dê um nó cego bem forte.
Ponto importante, contudo,
assim reza o bom costume,
é que a ceroula esteja
tão suja quanto o negrume.
Depois se besunta tudo
com canela e baunilha
e pendura-se o embrulho
três dias numa forquilha.
Feito isso à meia noite
de um dia de verão,
o embrulho será lacrado
bem no meio do colchão.
Eu garanto que seguida
à risca essa prescrição
você vai fazer mais filho
do que pobre no sertão.

BENTO

Nem que o mundo venha abaixo,
ouça bem, dona Ritinha,
pra isso eu vou ceder
minha rica ceroulinha.

POVO

Como a Rita é burrinha.
Ainda não percebeu
que o problema não é esse.
Ai, que tola, coitadinha!

RITA

Então que problema é?

MARIA

O jeito é acabar,
com inteira segurança,
do bom Deus e do Diabo,
com essa cruel vingança.

CANTADOR

Por todo aquele dia,
a Ritinha com a Maria
até tarde conversou.
Mas a coisa não andou.
É bem fácil compreender.
Não é sopa dois destinos
de repente se torcer.
Não que elas divergissem
no teor da discussão.
O problema era encontrar
um bom plano de ação.

RITA

Há um tempão discutimos
e até agora nada.
Eu já estou começando
a ficar desanimada.

MARIA

Ritinha, para que ser
desse jeito derrotista?
Nada, nada neste mundo
sem trabalho se conquista.

RITA

Como dói meu coração.
Tudo era bom demais
para não ser ilusão.

MARIA

Depois de muito pesar
tudo o que aqui foi dito,
divisei uma saída
para esse caso bendito.
Tendo em vista, no entanto,
o alto interesse em jogo,
procurarei evitar,
é claro, cair num logro.
Por isso vou submeter
a vocês meu pensamento.
Peço a todos para ver
se ele tem cabimento.
O que eu acho pode ser
facilmente compreendido,
mas ninguém é obrigado
a seguir o meu partido.
Penso que aqui na terra
nenhum de nós é capaz
do problema resolver.
É somente lá no céu
que a coisa um fim vai ter.
Para isso, no entanto,
é preciso lá do alto
alguém vir nos socorrer.
Toda a coisa se resume
nesse ponto capital
que agora vou formular:
quem iremos invocar?

POVO

Isto é sopa, já se vê.
O santinho Padroeiro.
Para que noutro pensar?

MARIA

Então se é assim,
se todos me dão razão,
só falta agora o Santo
atender à invocação.
POVO (canta)
Sopra o vento toda noite,
sopra o vento todo dia.
Amor é coisa de louco,
o bom mesmo é ventania.
Ê-ê-á-á

Marinheiro, marinheiro,
marujo que vem do mar,
o que faz com esta sereia?
Vou com ela me casar
Ê-ê-á-á

Na rua onde ele mora
tem loura e tem morena.
Da janela onde ela chora,
vem lamento que faz pena.
Ê-ê-á-á

Assim que a lua sair,
com ela eu vou girar.
Assim que a lua sair,
todo mal vai-se acabar.
Ê-ê-á-á

Gira, gira, gira lua.
Gira, gira sem parar.
Onde tem donzela nua
venha logo me mostrar.
Ê-ê-á-á

Quando o rei foi para a guerra,
levou faca e artilharia.
Lá no campo de batalha,
se acabou a valentia.
Ê-ê-á-á

Eu já vi parar o dia,
eu já vi o sol raiar.
Só não vi uma rainha
seu amor me declarar.
Ê-ê-á-á

Oh, meu Deus, quem é aquele
que vem vindo acolá?
É o santo Padroeiro,
veio pra nos ajudar.
Ê-ê-á-á

Oh, meu Deus, que santo é aquele,
que vem do lado de lá?
É o santo Padroeiro,
veio aqui pra trabalhar.

Viva, viva o Padroeiro,
tão forte, tão bonitão.
É um grande companheiro,
não deixa ninguém na mão.

PADROEIRO

Minha gente, não entendo
a razão desta zoada.
Toda a turma lá no céu
já está muito zangada.
Garanto que vim aqui
por simples dever de ofício.
Percam esse entusiasmo.
Deixem de fazer comício.

POVO

Desculpe se exageramos
o ardor da invocação.
Tudo isso é apenas fruto
de nossa satisfação.
Tê-lo agora em nosso meio
é glória imerecida.
Tal data jamais será
por qualquer um esquecida.

PADROEIRO

Não reparem a franqueza,
mas pra mim isso é chatice.
Essa história me parece
não passar de uma tolice.

MARIA

Oh, Santinho! Não apague
tão depressa o nosso fogo.
É justo que assim renegue
o ponto que está em jogo?

PADROEIRO

Talvez tenha exagerado,
mas é norma que eu gosto
sempre à risca de seguir:
nunca uma vã esperança
nos outros fazer surgir.
Dentro desse raciocínio,
tomem nota de um recado:
este caso é difícil,
está muito mal parado.
Se na terra houve impasse,
no céu foi do mesmo jeito.
Até agora não se achou
um resultado perfeito.
Trocando a coisa em miúdos
e sem muita discussão,
nós lá em cima nos vimos
diante desta opção:
se por vocês me deixar
logo, logo convencer,
corre-se o risco de haver
este sério precedente:
daqui para o futuro,
não se ter mais penitente.
Mas se a coisa continua,
se o tal castigo mantemos,
ainda outro sério risco
sem dúvida correremos:
o povo nos confundir,
em plena era dos jatos,
com todos aqueles chatos
do tempo da Inquisição.

RITA

Por melindre lá do céu,
em resumo, Padroeiro,
dou à luz a mais um filho.
É o vigésimo terceiro.
Já estou até pensando
que em vez de Padroeiro
melhor seria invocar
para mim um bom parteiro.

MARIA

Essa é a parte do problema
que toca aqui à Ritinha.
Mas como é que o senhor encara
a parte que é só minha?

PADROEIRO

Nessa parte eu não posso
nem de leve me meter.

MARIA

Se explique, Padroeiro.
É difícil compreender.

PADROEIRO

O seu problema, Maria,
foge da minha alçada.
É coisa lá do Capeta.
Só ele pode resolver.
Ele e sua cambada.

CAPETA

Falaram de mim aí?

POVO

Padroeiro, Padroeiro,
que faz o Capeta aqui?

CAPETA

Ora essa, então não é justo
que no assunto intervenha?
Pensam que isso é piada?
Quem disse que eu não sou
também parte interessada?
Só que comigo a coisa
será mil vezes mais simples.
Eu não tenho essa frescura
de dúvida, de opção.
Sou Capeta linha dura,
dou logo a solução:
mantenho a maldição.

RITA

Conversar com esses dois
só a faca, a pistola.
Se um diz assim: eu mato,
o outro responde: esfola.

CAPETA

Desta forma o meu lado
já está bem explicado.
Até logo, minha gente.
Até logo e obrigado.

RITA

Seu Capeta, por favor,
não se vá sem me ouvir.
Só queria perguntar,
depois de ver o seu porte:
o senhor não acha mesmo
que mereço melhor sorte?
O que custa me livrar
de um desespero de morte?

CAPETA

O que me pede é besteira.
Parece que pra você
Satanás é brincadeira.
Não volto atrás nem a pau.
A maldição continua.
Vou lhe mostrar que sou mau.

RITA

Vizinha, quem mais se pode
chamar em nosso socorro?
Com estes dois nós estamos
é no mato sem cachorro.

PADROEIRO

Por favor, não façam esse
juízo tão apressado.
Afinal, ainda não disse
se cheguei a um resultado.
Ante a resposta do Diabo
e a minha indecisão,
algo se pode afirmar,
sem nenhum medo de errar:
acabamos de cair,
vai ser duro decidir,
num novo e angustiante impasse.
Se duvidam, não vacilem,
os pontos logo repassem.

MARIA

Não é preciso, não é preciso.
Seria trabalho inútil.
E pra que se perder tempo
com uma tarefa tão fútil?
Aliás, eu já estou
ficando até conformada.
É tão fácil de se ver
que vou perder a parada.

BENTO

Seu Capeta, seu Santinho,
se a coisa deu outro nó,
me permitam que lhes diga
uma verdade sem dó.
De fato, há muito tempo,
bem depois do casamento,
fazia questão cerrada
de pôr no mundo um rebento.
Não abria mão por nada.
Pra mim a coisa virou
crudelíssima parada.
Tentei tanto toda noite,
tentei tanto todo dia
que por fim me esgotei,
se acabou minha energia.
Hoje eu já estou velho,
não acalento ilusão.
Muito mais depois de ouvir
a história da maldição.
Mas ainda assim entendo
o desejo de Maria.
Em vista disso pretendo
fazer uma sugestão.
Talvez possa ela servir
para algo se concluir.
Como na bíblia afirmou
o bacana Salomão,
a virtude está no meio.
Então por que fazer feio,
se agora também há jeito
de acabar a confusão?
Reflitam aqui comigo,
vejam se não há verdade
no que agora lhes digo.
O que se pode fazer,
com respeito à penitência,
é trocar uma por outra,
com toda conveniência.
Nem o Santo nem o Diabo
vão ter choque de consciência.
Barganhando a maldição,
o caso enfim se resolve,
de uma maneira normal,
com ciência imparcial.

MARIA

Meu marido, não supus,
vejam só que inocência,
que você pudesse ter
toda essa clarividência.

PADROEIRO

A proposta é marota,
mas não se pode negar
que seja interessante.
Pelo menos, é flagrante,
toda e qualquer aparência
na certa irá salvar.
Em vista disso, eu creio,
algo posso confessar:
tinha o forte receio
de me deixar dominar
por qualquer uma besteira,
quando na terra chegasse,
para o caso deslindar.
Mas, não havendo transigência,
lá no céu ninguém comigo
perderá a paciência.

RITA

Não brinque assim, Santinho!
Ai, nem posso acreditar.
Então a idéia do Bento
o senhor vai acatar?

PADROEIRO

Não há como recusar.

RITA

Vizinha, que maravilha!
Sinto o efeito no momento.
A barriga desinchou,
acabou-se o meu tormento.

CAPETA

Este Santo não queria
ver a sério a questão.
Calou por isso a cabeça,
fez falar o coração.
Em todo caso, num ponto
até que foi coerente.
É o santo padroeiro,
tem que ser benevolente.
Eu é que com essa história
fiquei no meio da estrada.
Se não concordo também,
faço figura execrada.

BENTO

Seu Capeta, Capetinha,
como é que fica o caso
aí da minha mulherzinha?
É claro, o senhor compreende,
só pode haver solução
se o senhor concordar
em trocar de maldição.

CAPETA

O pior defeito do diabo
não é a falta de consciência.
Muito mais grave que isso
é a sua incoerência.
Concordo sob protesto,
senão poderão julgar
que como diabo não presto.

CANTADOR

Que disse que o Capeta
era mau, um cabotino

POVO

Torcia o destino,
torcia o destino.

CANTADOR

Isso foi em outro tempo
pra iludir a multidão.

POVO

Era desculpa dos pobres,
dos pobres de coração.

CANTADOR

Hoje em dia o Capeta
não comete desatino.

POVO

Na verdade é um bom menino,
na verdade é um bom menino.

CANTADOR

É claro, ele já foi mau,
mas isso faz um tempão.

POVO

Tempo em que filha de rei
propunha adivinhação.
Aquele que decifrasse
ganhava a sua mão.

CANTADOR

Essa história já provou
o quanto ele está mudado.
É capaz de perdoar,
mesmo quando afrontado.

POVO

Receba, pois, senhor Diabo,
o nosso muito obrigado.

CAPETA

Esperem aí um bocado.
Eu dei o braço a torcer,
mas a coisa não é tão simples
como pode parecer.
Existe uma exigência
que vou agora fazer.
Se ela não for cumprida,
tudo eu vou esquecer.
Volta a coisa à estaca zero,
todos vocês vão sofrer.

RITA

Capetinha, não se exalte.
Esqueça a violência.
Diga pra nós duma vez
qual é a sua exigência.

CAPETA

Maria deverá ter
um só filho, outros não.
E assim mesmo esse unzinho
tem que ser filho varão.
Caso contrário, comigo
vocês fogo comerão.

CANTADOR

Foi assim que no outro dia
se iniciou sem tardança
a gestação de Maria.
Na cidade e vizinhança,
tararam pela criança.
Veio até peregrino.
Era como se outra vez
nascesse um deus menino.

PEREGRINO

Me informem, por favor,
onde é a casa de Maria.
Trago pra ela oferendas,
em sinal de alegria.

POVO

Mora no fim desta rua,
ao pé do monte Socorro.
Mas cuidado, bata palma,
porque lá tem um cachorro.

PEREGRINO

No mundo hoje não se fala
em outra coisa, podem crer,
a não ser na grande luta
que o Capeta com razão
acabou de aqui perder.
Em pleno século vinte e um,
se passar um tal evento
enche a terra de emoção,
é milagre santo e bento.
Essa estrada está lotada
de gente que como eu
aqui veio para ver
aquele que vai nascer.
Acham que cheguei a tempo?
Quem é fruto de milagre
milagroso deve ser.
Vou ver se alguma graça
com ele posso obter.
Uma coisa que pra mim
um bem enorme faria
seria ele dar um jeito
de eu ganhar na loteria.
Se isso não for possível,
acham vocês que é crível
fazer ele num momento
que eu receba um bom aumento?
Não? Não me respondem nada?
Talvez fosse então mais fácil
me dar ele uma boiada.
É uma graça tão pequena.
Poderá ser alcançada.
Mas se nem disso, entretanto,
julgar-me merecedor,
que me dê de uma morena
o eterno e perene amor.
Ou, em derradeiro caso,
uma herança inesperada
me resolveria a vida
numa única penada.
De qualquer forma, vou indo.
O que me custa tentar?
Nesta vida só não mama
quem não aprendeu a chorar.

MARIA

Bento, agora que a coisa
toda ela já passou
sem rodeio lhe confesso:
um medão me dominou.
Acho que já estou velha
para um filho esperar.
Às vezes fico pensando
não é melhor renunciar?
Bento, que dúvida atroz.
Me enrola feito um retroz.

BENTO

Era atitude esperada.
As mulheres sempre fazem
cedo ou tarde uma cagada.

MARIA

Bento, Bentinho, me ajude.
Preciso me definir.
Será que ainda há tempo
disso tudo eu desistir?
Leite, é claro, não terei.
Mas então como é que a fome
de meu filho matarei?

BENTO

Isso não será problema.
Você é uma boiadeira.
Sabe bem que ali no pasto
tem muita vaca leiteira.
Se isso não resolver,
ainda tem leite de cabra,
melhor não pode haver.

MARIA

De cabra, não, meu marido.
Faz a criança sofrer
de forte dor de ouvido.
Como está sossegadinho
aqui dentro o meu filhinho.
E se ele nascer morto?
Para que terá valido
todo esse sacrifício?

BENTO

Terá sido um benefício.
Te ensinou da mulher
um duro dever de ofício.

MARIA

Qual poderá ser-lhe o sexo?
A exigência do Diabo
me pareceu não ter nexo.
Acho que aquele Capeta
nos prepara uma mancada.
Se em vez de homem for mulher,
penso que ele nos arranja
uma vilania qualquer.
Mas o que poderá ser?
Ai, que horrível padecer.
Viver assim, que tortura.
Minha cabeça dá voltas,
me domina uma tontura.
Meu marido, me segura.
Acho que vou cair dura.
Sinto também de repente
uma dor no baixo ventre.
E se tiver chegado a hora?
Estou tão desesperada.
Tenho ou não tenho razão?
Disso não entendo nada.

BENTO

Calma, calma, criatura.
Já te levo lá pra dentro.
Não é bom que a criança
nasça aqui ao relento.

PEREGRINO

A criança já nasceu.
É grande de fazer dó.
A mãe sofreu como Jó.

POVO

Queremos ver a criança,
pois temos o coração
transbordante de esperança.

FILHO

Me chamara para quê?
Me sinto muito avexado.
Nasci ainda agorinha,
mas já sou encabulado.

POVO(canta)

Caminho que vai,
caminho que vem.
Por aqui passou uma moça,
de sombrinha e de chapéu.
Vinha sorrindo e me disse:
esse é o caminho do céu.

Caminho que vai,
caminho que vem.
Esta vida tem mistério
mais profundo que o mar.
Esta vida tem mistério
que só Deus pode aclarar.

Caminho que vai,
caminho que vem.

Me ilumina essa trilha,
é o caminho do bem.

Caminho que vai,
caminho que vem.
Ai, que trilha tão escura,
é o caminho do trem.

Caminho que vai,
caminho que vem.
Neste mundo quem tem crença
não teme a escuridão.
Leva Deus agasalhado
no fundo do coração.

Caminho que vai,
caminho que vem.
Roncou trovoada na serra,
roncou lá longe o trovão.
O Capeta vem buscar
os pobres de coração.

Pisa devagar, pisa devagar.
Na terra não há rio
que não corra para o mar.

Pisa devagar, pisa devagar.
É hora de Deus dormir,
do mundo se acalmar.

Pisa devagar, pisa devagar.
O escuro deste mundo
quem poderá aclarar?

MARIA

Gostaram do meu menino?

POVO

É uma bela criança.
Até que valeu a pena
ter crescido a sua pança.

MARIA

Acho que puxou ao pai.
Tem olhinhos apertados.
No rosto, quando sorri,
faz covinha dos dois lados.
De gênio é muito dócil,
facílimo de lidar.
Educação esmerada
por isso lhe pude dar.
Das dores aqui do mundo
procurei-o afastar.
Sempre pura inocência
ele haverá de guardar.
Deverá ser grande homem,
isso não é sonho ou rompante.
Ontem mesmo consultei
importante cartomante.
Lá nas cartas ela viu
para ele este porvir:
catador de diamante,
assistente de faquir,
da marinha intendente,
ou quem sabe do Brasil
um futuro presidente.

POVO

Como se chama esta jóia,
à qual o Brasil se agarra
como o afogado à bóia?

MARIA

Lá na pia batismal
chamei-o de João Magrelo.

POVO

Isso é nome de animal,
dos que gostam de farelo.
E como anda na vida pessoa
tão bem amada?
Será que é igual aos outros
ou é uma alma penada?

FILHO

Minha vida até que é boa,
muito calma e ordenada.
Posso afirmar sem mentir
que nunca me faltou nada.
Trabalho aqui na fazenda,
não faço coisa pesada.
Todo dia me levanto
às quatro da madrugada.
Tiro leite de cem vacas,
que ordenho bem ordenhadas.
De todas elas prefiro
aquelas que são malhadas.
Depois preparo o almoço
para cinqüenta empregados.
Mas disso não gosto muito,
estão sempre esfomeados.
Não há comida que chegue
para a fome dos coitados.
Num segundo eles devoram
vinte bois esquartejados.
É a falta de poupança
de que falam os deputados.
Depois do almoço eu varro
o pasto e o terreiro.
Deixo tudo bem limpinho,
não gosto de ver chiqueiro.
À tarde ajudo a mãe
nos trabalhos lá de casa.
Passo a ferro toda a roupa,
que, por sinal, é bem pouca:
as fardas lá do quartel,
em número de quinhentas,
sem contar o coronal,
que sozinho tem duzentas.
De noitinha é que eu gozo
um pouco mais de sossego.
Vou tirar do nosso forro
todo ninho de morcego.
Mamãe diz que ainda assim
esse trabalho é pouco,
de medíocre qualidade,
parece coisa de louco.
Diz que quando eu crescer mais
é que pego no pesado,
vou dar duro feito gente,
igualzinho a um soldado.
Eu concordo e digo a ela
que espero esse dia chegar.
O que almejo mais na vida
é de rijo trabalhar.
Só uma coisa nisso tudo
é que às vezes me constrange.
Meu ordenado abrange,
parte fixa e comissões,
trezentos e dez reais.
É ou não é uma amolação?
Pra que esse dinheirão?

POVO

Vejam só quanta candura.
É um amor de criatura.

FILHO

Ainda num outro ponto
gostaria de falar.
Mas é coisa muito séria,
na certa vou-me avexar.
É caso particular.
Não sei se assim em público
fica bem eu mencionar.

POVO

Fale, fale sem ter medo.
Todos nós te ouviremos
e guardaremos segredo.

FILHO

É que os mistérios do amor
eu queria desvendar.
Mamãe diz que isso é bobagem,
que não é coisa de homem.
Tenho muque, tenho nome,
mas às vezes, sem razão,
me sinto desmoronar.
Me vem uma dor cá no peito,
é como se, de repente,
o mundo fosse desfeito.
Eu bem sei que não é certo
da mãezinha duvidar.
Esse é um ponto pelo qual
não me deixo dominar.
Mas onde estará o mal
de eu querer o problema
duma vez esclarecer?
Mas assim eu não consigo,
não consigo mais viver.
Estou tão desesperado,
sozinho, angustiado.
Então é bom perceber
o quanto se é tapado?
Haverá alguém aí
disposto a me ajudar?
Será que peço demais?
Não estarei a abusar?

POVO

Maria, tanta inocência
não lhe pesa na consciência?

FILHO

Se não respondem é porque
eu devo estar errado.
Com certeza ao meu problema
dei valor exagerado.
Que fazer? Isso é comum.
Acontece a qualquer um.
É um mal na humanidade
bastante enraizado,
cada um puxar a brasa
para o seu próprio lado.
Para o futuro vou ver
se posso me conformar.
É difícil, podem crer,
mas com força vou tentar.
Como disse logo após
ocorrer meu nascimento,
eu sou muito retraído.
Se agora falei tanto
é porque eu fui traído
por meu grande sofrimento.
Desculpem o meu lamento,
prometo que não repito
o teor da ladainha.
Nem de perto nem de longe
ouvirão uma palavrinha.
Agora eu vou andando,
já estou atrasadinho.
Vou matar cinqüenta porcos,
hoje é dia de toicinho.

POVO

Como é duro ver alguém
viver na escuridão.
Oh, meu Deus, do que valeu
para o mundo o seu clarão?
Maria, o que você fez
é uma enorme judiação.
Não lhe pesa na cabeça,
não lhe parte o coração?
Sufocar uma criança
em nome da educação!

MARIA

Não cometam a vilania
de uma pedra atirar.
Ninguém no mundo é perfeito
para os outros acusar.
Ainda assim eu confesso:
por vezes a consciência
me exige penitência.
Rezo então um padre-nosso,
dou uma surra no cachorro,
até a capela eu corro.
Lá, em frente às janelas,
faço queimar trinta velas.
Desta forma a paz retorna,
como o fogo à bigorna.

POVO

Passar de vítima a algoz
é assunto muito ingrato.
É o mesmo que comer
e depois cagar no prato.

MARIA

Por que de mim não têm pena?
Só fiz isso por amor.
É pecado se evitar
para os filhos qualquer dor?

POVO

Por amor então se mata,
se aleija e se esfola?
Me explique que amor é esse,
que machuca mais que esmola.
Se a história fosse nossa,
Maria padeceria
mil horrores, mil torturas,
até aprender de fato
a amar as criaturas.
Entendemos, Cantador,
que a ela você respeite.
Maria é fruto seu,
por ela sente deleite.
Contudo, ainda assim,
com direito a criticamos,
pois de maneira alguma
o seu gesto apoiamos.

CANTADOR

Nada existe de tão falso
em todo esse meu conto.
Não me conhecem por isso
merecem um bom desconto.
Mas lhes digo: minha fama
tem um ponto principal:
de qualquer um cantador,
sou o mais imparcial.
Mas o reparo foi bom,
pois agora a minha história
chega ao ponto crucial.
Daqui a pouco vai se ver
que o cuidado de Maria
era grossa ilusão,
não passava de utopia.
Ou, se outra forma preferem,
daqui a pouco vai se ver
como foi que João Magrelo
perdeu um dia a cabeça,
como um cabo sem martelo
e resolveu ir-se embora,
procurar o seu caminho
por esse mundo a fora.

FILHO

Puxa, que mala pesada.
Já estou tão cansadinho.
E o pior é que esse ainda
é o início do caminho.

POVO

Onde vai, João Magrelo,
com essa bruta malona?
Vai passear a essa hora?
Está esperando carona?

FILHO

Nem uma coisa nem outra.
Descanso um bocadinho.
Depois disso, vou-me embora,
vou saindo de mansinho.

POVO

Vai pra onde, João Magrelo?
Visitar a avozinha?
Ela mora muito longe.
Por que não vai outro dia,
bem cedo, de manhãzinha?

FILHO

Não é pra lá que estou indo.
Vou pra lugar bem diverso.
Seguindo pela porteira,
pego o caminho inverso.

POVO

Por que não disse há mais tempo?
Vai à casa de seu primo,
o Juquinha Remelento.
Não se esqueça do agasalho.
Vai sentir frio ao relento.

FILHO

Não é pra lá que estou indo.

POVO

Bom, então só pode ir
passear no ribeirão.
Vá e volte bem depressa,
por causa da escuridão.

FILHO

Também não é pra lá que eu vou.

POVO

Não? Então é bom confessar:
você nos encalacrou.

FILHO

Na verdade lhes afirmo
que até o momento não sei
o rumo que tomarei.

POVO

João Magrelo, João Magrelo,
não me diga que é verdade
o que acabo de imaginar.

FILHO

Eu não posso adivinhar,
mas o fato é que agora
esta vida vou deixar.

POVO

Este gesto é gesto extremo,
que só se deve tomar
depois de muito pensar.

FILHO

Pois foi isso que eu fiz.
Pensei tanto que até
nem dormir tenho podido.
Hoje, estou resolvido.

POVO

E existe sério motivo?
Quem sabe tudo não passe
de fugaz leviandade
própria para a sua idade.

FILHO

Não, não. De jeito nenhum.
Eu posso ter pouca idade,
mas tenho maturidade.

POVO

Acredito, acredito.
Não fique assim tão aflito.
Só responda prontamente:
o tal motivo qual é?

FILHO

É uma questão de fé.
Não acho que esta cidade
me dê oportunidade
para bem desenvolver
minha personalidade.
Por isso vou à procura
de maior experiência.
Necessito de vivência
para entender por inteiro
o teor da existência.

POVO

É justa a pretensão.
Apenas não concordamos
com essa precipitação.

FILHO

O mais grave, no entanto,
é que aqui até o momento
não pude ainda encontrar
quem pudesse para mim
os mistérios do amor
com ciência desvendar.
Esse é um problema que nunca
deixou de me atormentar.

MANOEL

Qual nada, João Magrelo!
Por que não falou comigo?
Teria ajudado o amigo.

FILHO

Obrigado, seu Manoel.
Mas o problema é complexo,
deixa qualquer um perplexo.

MANOEL

Qual nada, João Magrelo.
Não seja tão pessimista.
Em matéria de amor,
sou um verdadeiro artista.
Minha prática é bem longa.
Poderá ser igualada,
jamais, porém, superada.
Disso tenho justo orgulho.
De um milhar de mulheres
eu já enchi o pandulho.

FILHO

Pois no assunto sou tapado
como um dente obturado.

MANOEL

Pergunte o que quiser.
Não se sinta constrangido.
Saber não é proibido.

FILHO

Desculpe, seu Manoel,
mas é preciso frisar:
não sei como começar.

MANOEL

Ora vejam que pecado,
manter em tal ignorância
aqui esse pobre coitado.
Para evitar qualquer dúvida,
começo pelo princípio,
do surgimento da terra,
da criação o início.
Depois de fazer o mundo,
Deus se pôs a matutar.
Achou que na sua obra
algo estava a faltar.
Tudo era muito bacana,
o céu, a lua, o mar.
Porém, não havia dúvida,
era triste o lugar.
Teria que achar um jeito
da sua obra alegrar.
Pensou, pensou, pensou muito,
um dia e uma noite inteira.
E de repente sentiu
o estalo de Vieira.
Tomando como modelo
sua imagem e semelhança,
resolveu o mundo criar.
Então um pouco de barro
começou a modelar.
Fez os pés, fez a cabeça
e depois levou ao forno,
botou tudo a cozinhar.
Por um mês e quinze dias,
aguardou o resultado.
Abriu a porta do forno
e ficou entusiasmado.
Sem usar falsa modéstia,
de pronto reconheceu
que o homem era obra-prima
de altíssima estima.
Deu-lhe então um bom sopro
e logo o homem viveu
e pelo mundo correu.
Deus voltou para o céu,
satisfeito pra chuchu.
Naquele dia comeu
inteirinho um boi zebu.
E assim o tempo passou,
sem haver lugar pra dor,
todo mundo bem contente,
criatura e criador.
Até que um belo dia
o homem foi lá em cima
e a Deus assim falou:
"Para alegrar sua obra,
certa vez eu fui criado.
E dei conta do recado.
Mereço bem um favor."
"Poderá ser concedido,
se eu o julgar merecido",
respondeu-lhe o Senhor.
"É que tenho observado:
tudo aqui na criação
vive aos pares, como irmão.
O que anda sobre a terra,
o que vive sob o mar,
o que voa lá no ar.
Eu sou o único sozinho.
Nem sequer tenho um vizinho
com quem possa conversar.
Não é de desesperar?
Vejo que a solidão
começa a me dominar.
De jovial que eu era,
agora me sinto triste.
Posso, é fácil compreender,
minha missão de repente,
sem querer, comprometer.
Assim sendo, eu lhe peço:
me arranje um companheiro.
É o meu primeiro pedido
e também o derradeiro".
Deus pensou por algum tempo.
Depois o homem olhou,
bem no fundo o encarou
e então assim falou:
"Faço o que você quer.
Eu lhe dou um companheiro.
Seu nome será mulher".
Pegou outra vez o barro,
amassou bem amassado,
levou tudo para o forno,
cozinhou bem cozinhado.
Deu o sopro benfazejo.
"Aí está seu companheiro",
disse afinal para o homem
e foi-se embora faceiro.
Contudo, algo aconteceu,
algo assaz inesperado
e que deixou todo mundo
bastante embaraçado.
O barro para a mulher
foi muito mal escolhido,
fez com que todo o trabalho
ficasse comprometido.
Foi isso o que se passou:
o barro era tão vagabundo
que em certo lugar rachou.
Vendo aquilo a mulher
enorme berreiro armou.
O homem ficou chocado.
De todo jeito tentou,
sem conseguir, consolá-la.
Foi aí que reparou
para um fato que a sua
atenção muito chamou:
se nela um pedacinho,
é inegável, faltava,
nele igual pedacinho,
em compensação, sobrava.
Então, em medida extrema,
para acabar com o queixume,
lançou mão de um recurso
que pra toda a humanidade
iria indicar o curso:
com o pouco que lhe sobrava,
tapou em sua companheira
o pouquinho que faltava.
Foi assim que de uma dor
o homem ficou conhecendo
os mistérios do amor.
Satisfeito, João Magrelo?

FILHO

Que triste revelação!
O senhor, seu Manoel,
me lançou na escuridão!

MANOEL

Por que o choro, João Magrelo?
Não foi clara a exposição?

FILHO

Não é isso, seu Manoel.
É que por ela eu tiro
uma amarga conclusão:
meu barro também não presta,
rachou na elaboração.

MANOEL

João Magrelo, não me diga!
Não me cause esta surpresa!
Me faz subir cá por dentro
uma bruta aspereza.
Na verdade é coisa dura,
bem dura de se engolir.
Mas por que no desespero
deixar-se assim consumir?

FILHO

É o jeito que encontrei
desta mágoa traduzir.

MANOEL

No entanto há um remédio
pra sua dor acalmar.

FILHO

Não brinque, seu Manoel.
Não queira me judiar.

MANOEL

Se lembra do que falei,
do que na história contei?
Que jeito o homem encontrou
para a mulher consolar?

FILHO

Deu a ela o pouquinho
que nele estava a sobrar.

MANOEL

Do mesmo modo agora
lhe cedo meu pedacinho.
Não quer experimentar?
O que é que custa tentar?
Garanto que vai gostar.
Não poderemos então
a criação imitar?

FILHO

Não sei, não sei, seu Manoel.
Algo me faz vacilar.
Deve ser esse luar.

MANOEL

A gente vai pro escurinho.
É fácil achar um cantinho.

FILHO

Um tremor me invade o peito.
Me dá até tremedeira.

MANOEL

É porque é a vez primeira.
Vamos ali para trás
da sombra da bananeira

POVO

João Magrelo, João Magrelo!
Volte aqui um instantinho!

FILHO

João Magrelo não está.
Saiu ainda há pouquinho.
Acho que vai demorar.
É melhor não esperar.

POVO (canta)

Ai, ai, meu Deus do céu.
Ai, ai, meu Deus do mar.
Quem pode nesse transe
vir aqui nos ajudar?

Ai, ai, meu Deus do céu.
Ai, ai, meu Deus do mar.
Quem pode nessa terra
descansado sossegar?

Ai, ai meu Deus do céu.
Ai, ai, meu Deus do mar.
Essa vida é tão salgada,
mande alguém para adoçar.

Ai, ai, meu Deus do céu.
Ai, ai, meu Deus do mar.
Como tem encruzilhada
o diabo desse lugar.

Ai, ai, meu Deus do céu.
Ai, ai, meu Deus do mar.
Quando é que as minhas penas
vão por fim se acabar?

FILHO

A experiência foi boa.
Não mentirei se disser
foi mesmo muito gostosa,
apesar de haver sido
por instantes dolorosa.
Mas como seu Manoel
muito bem já explicou,
o caminho do amor
passa sempre pela dor.
Agora peço desculpas,
não posso aqui ficar.
Me deu uma dor de barriga,
tenho que me aliviar.
Mas acho que não vai dar
para em casa em chegar.
Ai, que bruta caganeira!
Volto correndo pra trás
lá daquela bananeira.

POVO

João Magrelo, não demore.
Temos muito o que falar.
Há uma porção de coisas
que você tem que explicar.

FILHO

Vejam só o que aconteceu.
No meio da caganeira,
esta criança nasceu.

POVO (canta)

Ô, ô, cavalinho baio,
minha rica montaria.
Corra, corra bem depressa,
me livre dessa agonia.

Imaginem o que ocorreu
aqui por este sertão.
Um homem teve um filho.
Cruz credo, que perdição.

Ô, ô, cavalinho baio,
minha rica montaria.
Corra, corra bem depressa,
me livre dessa agonia.

Há muito tempo eu ando
por este mundo pagão,
mas nunca tive notícia
duma tal situação.

Ô, ô, cavalinho baio,
minha rica montaria.
Corra, corra bem depressa,
me livre dessa agonia.

Passou-se aqui na cidade
este fato sem igual.
João Magrelo é que foi
personagem principal.

Posso vier por cem anos,
chegar até um milhão.
Mas uma coisa garanto:
disso não me esqueço não.

Ô, ô cavalinho baio,
minha rica montaria.
Corra, corra bem depressa,
me livre dessa agonia

HOMEM

Já pensaram o que vai ser
do que acaba de nascer?
Ter um homem como pai,
ter um homem como mãe
é fato estranho, incomum,
embasbaca qualquer um.
Mas afinal me parece
urgente esclarecer
que sexo o João Magrelo
na realidade vai ter.

DOUTOR

Essa é uma questão
que eu posso resolver.
Bastará o João Magrelo
a exame ginecológico
sem tardança submeter.
Aliás, como doutor,
lhes afirmo que o caso
me causou grande estupor.
Tenho mesmo a ousadia
de adiantar que o fenômeno
transcende a anatomia.
Pelo exame confirmado,
será como descobrir
que o planeta foi redondo,
mas é hoje bem quadrado.

POLÍTICO

É claro que o senhor
fala como cientista.
Mas por que não ver a coisa
sob outro ponto de vista?
Como político tenho
um olhar mais realista.
É coisa de homem prático,
dinâmico e calculista.
Para que se perder tempo
com exame ginecológico,
se ele pode ser do fato
o final, o necrológio?
O que se deve fazer
agora é tirar partido,
explorar o resultado,
transformar nossa cidade
num grande centro turístico
por todo o mundo invejado.
João Magrelo será
um herói nacional
ou, se quiserem, um fenômeno
da espécie animal.
De qualquer forma, é certo,
em pouco tempo seremos
o assunto predileto
da imprensa mundial.
Lógico que para isso
deve-se estar preparado.
Para tanto um bom plano
por mim foi elaborado.
Para o próprio presidente
mandei um comunicado.
Além do mais, amanhã,
virá aqui um deputado.
Esse é o primeiro passo
do que por mim foi bolado.
Se ele sair da cidade
muito bem impressionado,
a coisa toda estará
por meio caminho andado.
Depois então é bem fácil
o futuro imaginar:
de fama imorredoura
será alvo este lugar.

MARIA

E a vida retraída
que um dia pro meu filho
eu tencionei reservar?

POLÍTICO

Passa pra segundo plano.
Servir à pátria não é
interesse mais humano?

POVO

Ai, Brasil, oh, meu Brasil.
Se alguém te perguntar
o que é ser patriota,
não perca tempo, não vacile,
como qualquer idiota.
É só dizer com honradez:
patriota por aqui é o homem
que dá à luz uma vez.
Ai, Brasil, oh, meu Brasil.
Em seu amado pavilhão
brilhará uma nova estrela.
Não é bem igual às outras,
não é de ouro, é de latão.
Mas fará o mesmo efeito.
Sempre haverá um sabido
pra explorar a confusão.

POLÍTICO

Se a senhora ainda vacila,
dou-lhe agora um argumento
que será, tenho certeza,
de palpável cabimento.
Como mãe de nosso herói,
sofrerá enorme impulso
seu atual orçamento.
De uma maneira ou de outra,
este é o meu pensamento.
Se bem explorada a fama,
sempre dará rendimento.

BENTO

Talvez pudesse comprar
uma enorme fazenda.
Botava dinheiro a juro,
ia viver só de renda.
Ter garantida a velhice
é coisa à qual me agarro,
com enorme sovinice.

POLÍTICO

E não é preciso frisar
que depois dessas manobras
todos aqui da cidade
recolheremos as sobras.
Como é, dona Maria?
Teima ainda em vacilar,
mesmo depois das vantagens
que acabo de enumerar?

RITA

Vizinha, não diga nada.
Primeiro é preciso saber
que a minha barriguinha
voltou de novo a crescer.

POVO

Parideira, quer dizer
que a maldição retornou,
que aquele atrás infortúnio
agora se renovou?
Quando é que recomeçou?

RITA

Assim que o João Magrelo
no mundo o filho botou.
Não acham que é sintomático?
Quem tiraria vantagem
de gesto tão antipático?
Será obra de um lunático?

MARIA

Lá-ra-lá, eu já vou indo.
Não posso mais discutir.
Tenho a cabeça tinindo,
de enxaqueca a zunir.

POLÍTICO

Daqui ninguém vai sair,
antes de se resolver
o que se há de fazer.
Não admito corpo mole.
Meu prestígio está em jogo.
Em vão não me comprometo.
Nesse ponto não transijo.
Sou exigente, sou fogo.

DOUTOR

Continuo ainda a dizer
que é coisa muito fácil
toda a história esclarecer.
Sei, talvez seja tolice
nesse ponto insistir.
O homem prefere sempre
a razão deixar de ouvir.
Por isso a mais dura trilha
teima ele em seguir.
Mas não é grossa besteira
no mesmo erro insistir?

CAPETA

Tal coisa nem se discute.
Aliás, tudo isso me cheira
particularmente mal.
Pressinto aqui uma sujeira.
O meu faro é batatal.
Esse é o motivo porque,
bastante contrariado,
sou forçado a abandonar
o que foi pelo Político
tão bem há pouco aventado.
Hoje em dia o Capeta
tem que fingir ser honrado.
Em nome então da verdade,
coisa sempre desprezível,
só vejo uma solução
para este caso possível:
aceitar a orientação
proposta pelo Doutor,
cause ela alegria
ou provoque muita dor.
Que tragam o João Magrelo
para cá neste momento.
Vamos ver se o exame
terá mesmo cabimento.

FILHO

Com prazer eu me submeto
ao que vocês têm em mira.
Fico é muito chateado
que a minha existência
com a de todos interfira.
Depois que nasceu meu filho,
me sinto recompensado.
Não mentirei se disser,
sou um homem realizado.
Por isso no meu cantinho
quero ficar sossegado.
Mas se é para o bem de todos
não medirei sacrifício.
Que tenha logo o exame
agora o seu início.

CAPETA

Doutor, meta mãos à obra.
Chegou a vez de provar
que é certa a sua manobra.

MARIA

Pare, pare, seu doutor.
Pare, pare, por favor.
O meu peito arrebenta
com a visão de tal horror.
Não compreende que esse exame
não passa de um vexame?
É inútil e revoltante
submeter uma criança
a algo tão humilhante.
Se o que querem é a resposta,
a chave para o mistério,
eu lhes faço uma proposta,
algo respeitável e sério.
Desistam de seu intento
que eu lhes digo a verdade,
agora, neste momento,
diante de toda a cidade.

CAPETA

Espero que isto não seja
só uma leviandade,
desejo de proteger,
próprio da maternidade.
Em todo caso o risco
estou disposto a correr.
Qual é, enfim, a verdade?
Não cale, pode dizer.

MARIA

João nunca foi João.
Joana é que deve ser.
Eu é que troquei-lhe o sexo,
logo depois de nascer.

POVO (canta)

Agora este segredo
pelo mundo irá correr.
Ninguém mais aqui na terra
deixará de conhecer
que de um homem uma criança
jamais poderá nascer.
Tanto tempo João Magrelo
na agonia a padecer.
Tanto tempo a Maria
a verdade a esconder.
Seu Capeta então um dia
veio aqui esclarecer
se era tudo fantasia
ou milagre para crer.

Ai, ai, ai, bela Maria,
ai que dor, que desencanto.
Acabou-se a alegria
de todo esse meu canto.

Ai, ai, ai, bela Maria,
ai que dor, que desencanto.
Foi assim que um belo dia
ofendeu-se o que era santo.

CAPETA

Se lembram do que lhes disse?
Tinha ou não tinha razão?
Aí está a vigarice.
Enerva qualquer cristão.

MARIA

Cometi vulgar tolice.
Impunemente pensei
inverter a criação.
Não contava com o acaso,
Manoel, a perdição.
Só aproveito o ensejo
para uma coisa dizer.
Não quero me desculpar,
mas é bom esclarecer
que a mentir fui compelida.
Logo após o nascimento,
fiquei num beco sem saída.
A exigência do Capeta
não deixava alternativa.

CAPETA

Uma vez eu fui ingênuo
e me deixei convencer.
O resultado aí está,
todos vocês podem ver.
Fui passado para trás,
enganaram o Satanás.
Mas isso não fica assim,
logo irão aprender
que não se zomba de mim.
Vou arrasar a cidade.
Servirá de bom exemplo
para toda a humanidade.

POLÍTICO

O senhor tem toda razão.
Mas, que diabo, não podemos
achar outra solução?
Faz-se uma composição.
Ofensor e ofendido
poderão tirar partido.

CAPETA

Deixe de conversa mole.
Eu já estou resolvido.
Daqui a pouco esta cidade
será no mapa um ponto
por todo o mundo esquecido.
Tido será destruído.
Quanto às pessoas,
eu levo embora comigo.
O inferno irão lotar,
sofrer pra sempre um castigo.

MANOEL

E aqueles que como eu
aqui estão de passagem,
aguardando só o momento
de prosseguir a viagem?

CAPETA

Não vai haver exceção.
Não se assanhe, não senhor.
O justo entra pelo cano,
igualzinho ao pecador.

RITA

Aí está no que deu
brincar-se tanto com a sorte.
Agora nós somos todos
manada de boi de corte.
Aguardamos com paciência
cada um a sua morte.

FILHO

Seu Capeta, eu não quero
nem de longe protestar.
Mas veja o meu azar.
Foi só me sentir feliz
pra tudo ter que acabar.

CAPETA

Que se dane, João Magrelo.
O que é que eu tenho com isso?
Culpada é a sua mãe.
Foi ela que arranjou
todo esse reboliço.
Agora não quero mais
ficar ouvindo lamúria.
Lá no inferno é que irão ver
o que é real penúria.
Organizem-se em fila.
Vamos, vamos, todos, pira!
Sigam em frente até a porteira.
Soou a hora derradeira.

PADROEIRO

Um momento, Satanás.
Deixe esse povo em paz.
Você não tem o direito
de a todos castigar.
É excesso de autoridade
lá pros quintos do inferno
tencioná-los levar.
Por causa disso, Jesus,
bastante penalizado,
mandou que eu aqui viesse
alterar o resultado.
Não há dúvida, Maria
foi bastante castigada.
Ela já viu que a mentira
é coisa sempre execrada.
Daqui para o futuro
seguirá uma outra estrada.
Deste modo, sua vingança
perde a razão de ser.
Por aqui já aprenderam
o que tinham que aprender.
Quanto ao João Magrelo,
de todos o mais coitado,
será assim justiçado:
pelo compadre Manoel
vai ser logo desposado.
Será um belo matrimônio,
desde já abençoado.
Dona Ritinha está livre
do castigo do Senhor.
Obtive ainda agorinha
para ela este favor.
Enfim, como já se vê,
tudo voltou ao normal.
Só resta você, Capeta,
se mancar e dar o fora.
Não adianta careta.
Te esconjuro, vá-se embora.

CAPETA

Cantador, você é um ingrato.
No raio dessa história,
eu é que servi de pato.

PADROEIRO

Com a saída do Capeta
e levando-se em conta
que todos já estão em paz,
aqui também sou demais.
Por isso vou dando o fora.
Faço igual a Satanás.

CANTADOR

E assim termina o meu canto,
todinho de uma vez.
Se ele não teve encanto,
não me culpem, é pecado,
foi pedido de vocês.

POVO (canta)

Santo-ô-ô-á-á
No céu é padroeiro,
na terra é protetor.
Pros pobres dá alento,
pros ricos dá amor.
Na fome alimento,
no frio cobertor.

Santo-ô-ô-á-á
Da cidade a maior glória
reside nesse evento,
tê-lo sempre em nossa história,
faça frio ou faça vento.

Santo-ô-ô-á-á
Nesta praça nesta hora,
rogamos proteção
contra praga, mau olhado,
contra dor no coração.
Por isso a sua imagem
trazemos nesse andor.
Ela já nos dá coragem
contra a morte ou qualquer dor.

Santo-ô-ô-á-á
Sua festa é uma folia,
enche a todos de encanto.
Ao povo dá alegria,
ouça bem o nosso canto.

Santo-ô-ô á-á
Lembre hoje a nossa gente
aí no céu junto ao Senhor.
É povo humilde mas é crente,
sempre reza com ardor.

Santo-ô-ô á-á
Finda aqui a louvação,
bem amado padroeiro.
Tudo foi de coração,
peito aberto, verdadeiro.
Queira bem a todos nós
e ao povo brasileiro.

FIM

Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br