Em um dia triste, marcado por uma fina chuva, Borges Amadeus Nicolaescus parte para uma nova vida, em uma outra esfera, em uma outra frequência.
Exímio sedutor e eficaz amante, Borges construíra riqueza no ramo da siderurgia, abastecendo além de todo mercado interno, todo mercado comum europeu e 90% das montadoras de automóveis da Ásia. Aos 63 anos, deixa uma fortuna estimada em oito bilhões de dólares e seis filhos de três casamentos .
Naquele dia triste, a beleza e a juventude de suas duas últimas mulheres, confundia-se com a beleza e juventude de suas duas filhas gêmeas do segundo casamento, todas com o rosto envolto em véu e atrás de óculos escuros. A primeira mulher de Borges falecera misteriosamente em uma viagem pela Liguria. Dizem que enquanto o marido dormia, ela saíra para comprar Gin e nunca mais aparecera. Segundo a polícia italiana, um corpo encontrado depois de dois meses entre as pedras na base de um precipício, com estilhaços de garrafa ao lado, era o da mulher. Mas o assunto também morrera ali. Foi com esta mulher, neste primeiro casamento, que nasceu na região de Bordeaux, o agora herdeiro de toda uma fortuna e uma vida, Amadeus Nicolaescus Filho, 42 anos e recém casado com sua prima Viridiana, 20 anos mais jovem que ele. Formam um casal com muitos caprichos, entre eles, colecionar óculos escuros, pequenas estatuetas em cristal de Murano e pequenos delitos de infidelidade testemunhada.
Podia-se observar que em meio a luxúria espalhada por aquele campo santo, o número de seguranças era bem maior que o número de parentes, amigos, imprensa e curiosos. Todos os seguranças usavam ternos pretos e óculos escuros, entre eles um que chegava atrasado, em uma poderosa Mercedes E-Class 430 cinza escuro, graças a mais uma rápida e pecadora parada, dessa vez durante o trajeto do cortejo. Não era à toa que a segunda mulher de Borges, Nice, uma linda ruiva de 33 anos, e com quem o empresário tinha dois filhos e deliciosos encontros sadomasoquistas aos finais de tardes, escalava sempre o mesmo segurança. Ao descer do carro imediatamente atrai o olhar de duas amigas de Viridiana que estão postadas ao lado caixão e que através das lentes escuras do ocre de seus óculos, olham para ele lentamente de cima em baixo. Ele abre suavemente a porta do carro para a mulher, e depois, segurando em uma das mãos um guarda-chuva da cor da Mercedes, oferece a outra elegantemente para ela, que amparada por aquelas falanges tão conhecidas, salta do carro ajeitando os óculos e simulando um pequeno choro.
Anna, a última mulher de Borges e atual viúva, vira-se também em direção à aquela cena e revela no vidro do carro o reflexo de seus lábios carmim a tremerem sutilmente, denunciando que ela tinha consciência de todos aqueles vespertinos encontros, e também que agora estes mesmos encontros haviam chegado definitivamente ao fim.
Enquanto a leve chuva continua caindo, Anna ajeita os óculos em sua face e ordena com um leve gesto de cabeça a descida do caixão.
E finalmente, naquela tarde, Borges pode descansar em paz.