Em 1960 morávamos em uma ruazinha do subúrbio de Água-Fria,
em Recife, que era conhecida por dos dois meigos nomes: Vila Beija-Flor ou Reinado
Encantado. Não sei qual o mais doce. Particularmente, prefiro Reinado
Encantado. Dá uma ideia de mágico, de mistério,
de encantamento. Pois é, morávamos no Reinado Encantado.
Naquela época, a Vila Beija-flor ou como queiram, o Reinado Encantado,
não era servido por rede elétrica. Quer dizer, nem a rua e nem
as casas. Vivíamos, portanto, à luz de candeeiros. Não
tínhamos rádio muito menos televisão. Era um apagão
permanente. Eu, com meus dez anos, adorava dar pernadas pela rua, jogar pião,
bola-de-gude, empinar papagaio, subir em árvores, enfim... Quer dizer,
apesar da vida quase miserável em que vivia, gozava de uma liberdade
que permitia me sentir bem naquele ambiente. Hoje, certamente seria dito, para
usar os termos do momento, que eu estava perfeitamente integrado ao ecossistema
do Reinado Encantado. Que coisa!
Mas, o que eu gostava mesmo era quando chegava a noite ir ouvir as histórias
de Seu Osvaldo. Seu Osvaldo era um senhor de aproximadamente 45 anos, estatura
média, forte, avermelhado, olhos azuis, cabelos grisalhos por sinal muito
bem penteados. Ele destacava-se dos demais mortais daquela ruazinha suburbana
pelo seu modo de andar, de vestir, de falar, pela sua elegância e simpatia.
Dizia-se filho de nobres e de fato sua residência, a maior e mais bonita
da rua, se é que cabem esses adjetivos para uma casa de taipa com sala,
dois pequenos quartos e uma cozinha, era cheia de móveis antigos, carrilhões,
tapetes, cristais, estatuetas, etc, a ponto de tornar-se difícil à
locomoção em seu interior. Ele possuía também inúmeros
álbuns de fotografias com homens e mulheres vestidos a caráter,
os quais fazia-nos crer serem seus parentes. Em suma, a casa era um verdadeiro
museu.
Pois bem, Seu Osvaldo era um grande contador de histórias. Lembro-me
que elas eram repetidas inúmeras vezes, mas pouco importava. O seu jeito
de contar, seu entusiasmo nos dominava, nos envolvia de tal modo que viajávamos,
sonhávamos, flutuávamos e íamos dormir leves e felizes,
embora não soubéssemos disso.
Talvez a falta de opções justifique, para alguns, a magia da "calçada
de Seu Osvaldo". Quero deixar claro que não compartilho integralmente
desta hipótese, embora respeite quem assim pense.
Justificativas à parte, o fato é que no Reinado Encantado, em
noite de lua cheia, lá pelas sete, sete e meia, era obrigatório
nos reunirmos na calçada de Seu Osvaldo. As pessoas iam chegando, iam
sentando, dando boa noite, contando algum acontecido do dia, falando, digamos
não muito bem, para dizer o mínimo, de algum desafeto e por aí.
Desses papos, Seu Osvaldo não participava, não demonstrava o menor
interesse, seu negócio era outro. Ele como ator principal, ficava meio
calado, só ouvindo os coadjuvantes. Na realidade, esse comportamento
fazia parte de sua estratégia, de sua técnica, pois ia criando
em nós uma certa expectativa, uma ansiedade, que ia crescendo, se avolumando.
Afinal estávamos ali para ouvi-lo. Ele ficava meio ausente, de propósito,
é claro. Por volta de umas nove e meia, quando alguém ameaçava
ausentar-se, era infalível, um breve pigarro e... Como um lampejo, um
toque mágico, tinha-se um silêncio letárgico, éramos
só ouvidos, não podíamos perder o mínimo detalhe.
Dentre as inúmeras histórias que tive a feliz oportunidade de
ouvi-lo contar, sua aventura como combatente em Monte Castelo, na segunda guerra
mundial, é fantástica. Contava ele que em uma batalha sangrenta,
com inúmeras baixas de lado a lado, quando a sua munição
já se esgotara, viu-se diante de um imenso alemão que lhe apontou
uma brilhante pistola. Ele deu-se por morto, afinal que poderia fazer? Apenas
fechou os olhos, entregou a alma a Nossa Senhora, da qual era devoto fervoroso,
e paralisado, aguardou o estampido.
Suspense! Seu Osvaldo calava-se, aguardando a pergunta, que viria certamente.
Ele era paciente, nós não. Brevíssimo selênico e
alguém, não suportando aquela tortura calculada, soltava: "Seu
Osvaldo, pela hóstia consagrada, como o Senhor escapou dessa homem de
Deus?"
Aqui cabem parênteses. É bom que se diga, e isso poucos sabiam,
ele tinha o corpo fechado, sabe? Na sua adolescência morou por um ano
na Bahia e passou por todas as provas e cumpriu todas as obrigações
que seus guias lhe tenham imposto. Era, portanto, filho de todos os Santos,
sô. Saravá!
Aí sim, para que não restasse a menor dúvida, vinha à
explicação, clara, límpida, cristalina. Ele então,
voltando a narrativa, detalhava que ao invés do esperado estampido, ouviu
gritos de pavor, em alemão, emitidos por seu oponente. Abrindo imediatamente
os olhos viu sair da terra a sua frente um enorme e ofuscante diamante, que
emitia uma luz mais forte que o sol. A essas alturas Seu Osvaldo, já
de pé, excitadíssimo, fala alto, berra, gesticula, pula, não
se contém em si e enfim atinge o nirvana! Continua, ofegante sua inigualável
narrativa, diz que o tal diamante foi erguendo-se lentamente entre ele e o alemão
que gritava cada vez mais alto, sem que nada entendesse, afinal ele não
sabia uma única palavra em alemão. Nisso ele teve a brilhante
ideia de olhar para os pés daquele desgraçado, que saia
em desembalada carreira, e ainda conseguiu ler, como se em um cinema estivesse,
a legenda que se apagou rapidamente, "Meu Deus! Meu Deus! Estou cego...
Estou cego..."
Ele nos disse que Chegou a dar entrevista sobre esse extraordinário acontecimento
e que qualquer dia nos mostraria o jornal.
Infalivelmente sua mulher, Dona Nicinha, uma pacata e adorável dona de
casa, perguntava na mais pura ingenuidade: "Osvaldo, e você o que
fez com o diamante? Vendeu?" E ele sem perder a pose respondia, "Cala
boca mulher, tu já gostas de atrapalhar minha conversa, ora...".
E dava um muxoxo final.
Seu Osvaldo nunca nos mostrou o tal jornal da entrevista, segundo ele por ser
escrito em língua estrangeira e... Bem, mas isso não tem importância
alguma. Afinal, importância tem é que existam tão poucos
Seu Osvaldo. Atualmente não conheço nenhum.
Bons tempos. A televisão ainda não tinha nos bestificado.