Quando vós me escutardes através destas letras; já eu,
aquele que escrevo, terei há muito partido para o mundo das trevas.
É com a alma conspurcada que partilho convosco a mais pérfida
história de horror e assombração da minha existência.
Chamo-Me José Torcato e sou proprietário de uma casa funerária
numa pequena povoação no Norte do nosso país. Sempre me
dei bem com este meu ofício, que muitos consideram assombrado - lidar
com mortos. Mas eu sempre costumo dizer, que "tenho mais medo dos vivos,
do que dos mortos!".
A verdade é que o meu "negócio" estava à beira
do malogro. Sim, já há dois anos que não falecia ninguém
na aldeia, nem nas povoações limítrofes, e eu já
tinha vários credores em demanda de mim. Um certo dia, o meu espírito
foi assombrado pela ideia macabra de matar alguém! Oh, sim. Alguém
teria de morrer. E logo, me detive a cuidar sobre quem havia de ser a
vítima, que ia resolver o meu problema. Teria de ser alguém inofensivo,
que habitasse sozinho e, claro, que fosse remediado.
Coro ao escrever este meu abominável propósito. Lembrei-me então
da Senhora Jacinta. Pobre senhora...Pobre, mas é de mim! - E foi com
este demónio de perversidade grudado na minha alma, que numa certa noite
assaltei, com relativa facilidade, a casa da Senhora Jacinta. Logo me precipitei
para a sala onde ela se mantinha, balouçando na sua cadeirinha, de croché
ao colo. Oh, vós pensais que eu sou louco, mas como poderia um louco
executar um crime com tanta eloquência, como eu o fizera? Puxei uma corda
de aço que roubei do meu contrabaixo e num gesto brutal, envolvi a dita
corda em redor do pescoço da velha, até que ela tiritou com os
pezinhos descalços...até à morte!
Seguidamente, revolvi a casa toda, roubando tudo o que havia de valor. Por fim,
dirigi-me ao seu telefone, e liguei para a esquadra mais próxima, que
ficava a uns vinte e dois quilómetros.
- Estou sim?.. estou a ligar para dar parte de uma suspeita de assalto...Sim,
vi um grupo de indivíduos a penetrarem na casa da senhora Jacinta, e
depois ouvi uns barulhos estranhos, seguidamente eles fugiram de num carro preto...
Do outro lado, o polícia que me atendeu, demonstrou grande preocupação,
garantindo-me que enviaria um carro patrulha ao local, o que demoraria, pelo
menos, uns vinte e cinco minutos. Todavia, eu não tinha a mínima
intenção de esperar por eles, e logo me apressei a sair pelas
traseiras da casa, mas ao precipitar-me para o exterior, o meu sangue gelou
ao ver que alguém me observava. Era o coveiro do cemitério, e
vira-me a sair da casa da defunta!
Fingi que não o vi, e segui o meu caminho na direcção contrária
à de onde ele se quedava. "Que Diabo!", logo tinha de ser visto
por aquele miserável, e assim que a policia chegasse, concerteza ele
lhes iria contar logo, que me vira a sair da casa da velha, e não demoraria
muito até que a autoridade estivesse a bater à minha porta. Tinha
de agir rápido. E foi com imensa destreza que voltei para trás
em demanda do coveiro. Tinha de enfrentá-lo e tentar saber o que ele
tinha visto. Além disso, concerteza, se eu estivesse presente na altura
em que a policia chegasse, a minha presença inibi-lo-ia a declarar sobre
a minha retirada da habitação da senhora Jacinta. Oh, sim. Sentia
o meu espírito a derramar lucidez, e a minha argúcia dizia-me
que agora começara a agir prudentemente.
Quando dobrei a esquina, os meus olhos encetaram uma busca desenfreada à
procura do coveiro, que já não se conservava naquele sítio.
Todavia, a policia ainda não tinha chegado ao local, e ao contrário
do que anteriormente planeara, decidi não esperar por eles. Em vez disso
procurei o coveiro. Sim, percorri todas as tabernas, botequins, tudo...mas não
tive sucesso.
Quando regressava para casa, em pleno estado de exaustão psíquica,
enxerguei o coveiro a dirigir-se pela rua adiante, transportando uma mala de
viagem. Oh, ia escapar-se, o estafermo. Provavelmente, já teria instruído
a policia de tudo o que sabia acerca do crime por mim cometido, e estava a fugir
com receio de represálias minhas. Não levei muito tempo até
o alcançar, e num breve compasso de tempo, empurrei-o para uma estreita
viela, onde o esfaqueei sem clemência, até à morte. "Mais
um cliente", pensei eu com nojo de mim mesmo. Mas era ele ou eu!
Ainda nessa madrugada fui para a oficina e apressei-me a trabalhar. Não
tardaria que a família de ambos os defuntos viesse requerer o funeral
para os seus entes falecidos.
Pus mãos à obra e comecei logo a tirar medidas para o esquife
do coveiro, pois não contava com dois "clientes" numa noite,
mas apenas um: a dona Jacinta, que Deus a tenha. Seguidamente, modelei as inscrições
nas lápides, para que tudo estivesse prontinho para o dia do funeral.
Dois dias depois, os funerais consumaram-se: O da dona Jacinta, de manhã;
e o do coveiro, à tarde. Por motivos do falecido funcionário do
cemitério ser uma pessoa muito prezada aqui na aldeia, a população
acorreu em peso ao seu funeral.
As cores do crepúsculo desmaiavam lentamente no horizonte, quando eu
arriei o caixão do coveiro a três metros de profundidade do solo.
O pranto das pessoas contrastava com a quietude do recinto das sepulturas...e
foi no meio deste sossego fúnebre, que o vento trouxe até aos
meus ouvidos uma voz familiar, que praguejou contra mim:
- Este homem é um assassino e um farsante!
Ao voltar-me, apoderou-se de mim um terror que me devastou a alma. O coveiro
estava no meio da multidão, e era ele quem me injuriava furiosamente.
Como era possível?...
- Quem eu?...Mas como... - O meu desassossego era tal, que nem conseguira completar
a frase.
- Você é um homem perigoso e macabro. Mas a verdade está
prestes a surgir, e tal como o azeite, vem sempre ao cimo! - Pressagiou ele
com uma entoação ameaçadora, sob o olhar da multidão.
- Demonstre o que está a afirmar, Sr. Coveiro! - Aduziu um respeitável
aldeão em minha defesa.
- Sim. Não pode acusar uma pessoa respeitável, assim como o Sr.
Torcato - Insistiu outro aldeão, referindo-se à minha pessoa.
- Sim. Eu provo, e demonstro que o Sr. Torcato é um assassino e um burlão!
- Afirmou o coveiro com grande ênfase.
- Ah... - Sussurrou a multidão em uníssono.
- È simples. Aqui na minha mão está um documento que comprova
a morte da pessoa que foi acabada de enterrar. Leiam com os vossos olhos. -
Afiançou ele, exibindo um documento na sua mão.
- Este documento - Prosseguiu ele - É uma certidão de óbito
passada pelo médico legista, cuja morte do defunto foi registada, exactamente
às quinze horas do dia 2/5/1956!...Assim sendo, expliquem-me como é
que o Sr. Torcato, inscreve na placa fúnebre, a seguinte mentira: "
aqui jaz José Joaquim Filipe, nascido a 12/07/1901 e falecido a 30/4/56...!?
E foi com pavor que me apercebi que gravara a data da sua morte, desconhecendo
se ele tinha ou não falecido naquele mesmo dia...Mas afinal, quem era
ele?
- Quem és tu, espectro das trevas? - Indaguei eu com desespero na voz.
- Eu sou o coveiro. A pessoa que tu despachaste à facada, é o meu
irmão gémeo, que voltara de França para me visitar, na
noite em que assassinaste a dona Jacinta, cuja fuga da sua casa, eu assisti
involuntariamente.
Inesperadamente fui assaltado pela multidão em fúria que me espancou
e apedrejou, quase até à morte, deixando-me em plena agonia esparramado
no chão, ao lado da sepultura maldita.
Agora restam-me algumas horas de vida, pois o estado em que fui deixado, não
me permite sobreviver a tanta dor e vergonha.
Que Deus tenha piedade da minha alma desgraçada!...