A transparência, sim a transparência dizia aquele passageiro do
metro londrino naquela manhã de nevoeiro, que todavia não se fazia
sentir no famoso underground, a verdade é que para que tudo seja
matematicamente transparente tem que haver uma razão que nos leve a pensar
que as realidades sejam tão evidentes quanto as suposições
matemáticas o são.
Eu explico-me, dizia aquele londrino branco e meio aloirado, careca e com o
resto da cabeleira loira, que se dirigia ao seu colega cheio de sardas e com
uns óculos com umas dioptrias extremamente fortes, que faziam aumentar
as suas pupilas.
- Tu tens a certeza Trevis que a transparência não é mais
do que aquilo que nós pensamos e que na realidade não passa de
uma suposição metafóricamente irreal?
- Não John a transparência não passa de uma conjugação
puramente matemática que não tem a sua verdadeira realidade profunda
e exacta quanto a matemática a tem.
Se não vê!...
Ontem passei no Hyde Park no corner speaker, vi dois indivíduos que me
pareciam ser hindus e que falavam da existência após a morte.
É verdade que para nós Ingleses com a transparência que
temos dentro dos nossos valores morais, essa sensação, essa verdade
é tão imaginária quanto as sensações que
temos quando olhamos para o Buckingham e nos rendemos à evidência
de todo um passado místico e glorioso quanto aquilo que encontramos perdido
em símbolos e matemáticamente nos alimenta de sensações
gloriosas, que vivemos dentro do passado ido.
Não tenho a certeza John de que todos os homens de negócios que
deambulam em Regent Street tenham essa mesma sensação, não,
não posso acreditar que até os turistas que deixam os seus dinheiros
em Piccadilly Circus possam pensar que matemáticamente as nossas suposições
estão e são desprovidas de um certo sentido.
- Trevis quando tu ouvistes o discurso dos hindus que falavam da vida após
a morte, não tiveste o cuidado de analisar profundamente o conteúdo
desse mesmo discurso?
- É verdade John que muito superficialmente eu captei parte do conteúdo
desse discurso, que no fundo não passaria, segundo tu de uma conclusão
mística e religiosa dentro dos valores dos próprios hindus, é
verdade que tens razão, sobre esse ponto de vista, mas é verdade
também que por razões de valores culturais nós nunca nos
levamos a pensar em outros valores que se possam ou podiam sobrepor aos nossos.
Em uma determinada posição do seu discurso o homem que proferia
o mesmo dizia: não, o corpo não é mais que um segmento
de uma necessidade para justificar uma vida puramente corporal, que nos leva
segundo esse comportamento, a uma vida mais ou menos realizada.
Portanto, segundo o comportamento do corpo a que vós tendes o dever de
dirigir condignamente no sistema social em que viveis, assim será a forma
como a vossa espiritualidade será analisada do outro lado, à qual
pertenceis místicamente.
Quero dizer, se o vosso egoísmo for crescente e destruidor se ele for
realmente dentro de um comportamento egoísta exagerado e mau, fazendo
apenas e praticando o mal em relação à vossa existência
e à dos vossos semelhantes, a vossa vida espiritual do outro lado estará
condenada à miséria, ao sofrimento, à isolação
e distante do paraíso que vos é prometido.
- É verdade John, é verdade que para nós Ingleses acreditar
num discurso desses é quase como acreditar que o mundo existe para além
de nós, para além das ilhas Britânicas.
- Mas Trevis tu tens imensa razão, quando é que nós deixamos
de ser aquilo que somos, para estarmos abertos a algo que nos venha trazer algo,
não quero dizer que a filosofia dos hindus seja a perfeita filosofia
que irá salvar o mundo, não, mas posso acreditar como diria o
meu avô que passou dez anos na Índia, que os indianos tinham algo
de místico, algo que profundamente os tornava místicos e misteriosos,
quantos vezes o meu avô dizia ao comandante do pelotão - capitão
estes hindus tem um lado místico que nós estamos incompreensivelmente
a não reconhecer.
Devíamos, dizia o meu avô - dar um pouco mais de atenção
aquilo que os próprios indígenas dizem, ou que querem dizer!.
No dia seguinte o meu avô era chamado à secção de
investigação do exercito Inglês.
- Então o coronel pensa que se deve ter uma aproximação
às realidades espirituais e culturais dos hindus?
- Sim meu General, eu penso que para conseguirmos apercebermo-nos das realidades
políticas deste povo devemos concretamente entrar dentro das realidades
espirituais e culturais dos mesmos, tenho medo que seja tarde, tenho também
medo que segundo os nossos valores nós não consigamos penetrar
dentro da essência dessa mesma religião.
Tenho medo até que isso seja a causa na nossa derrota.
- Pode retirar-se coronel, vamos analisar a situação e logo que
tenhamos uma resposta o senhor será posto ao corrente.
Era evidente que a resposta não seria verdadeiramente conforme à
desejada pelo coronel. Contudo as realidades nunca poderiam passar de místicas,
era como se tudo fosse utópico, era como se tudo fosse verdadeiramente
mentira era como se tudo fosse verdadeiramente sem transparência.
- É verdade John, ontem místicamente eu olhava junto do Tamisa
a nossa lua, e pensava quem poderia para além de nós mesmos chegar
a impôr-se ao nosso reino, aos nossos valores à nossa moral, ao
nosso império, quem?
Sim quem?
Como se nós o grande e temível império Britânico
nos deixássemos subjugar por valores espirituais, e mesmo por filosofias
sem grande valor moral ou económico!
Mas a verdade é que sim, dominamos as Índias, mas nunca penetramos
dentro delas, verdadeiramente dentro dos seus valores.
Caçamos tigres, tivemos escravos, jogamos mesmo o cricket, fomos além
dos valores conjugados, fomos mesmo além de tudo, acreditamos que sim,
que o nosso império era o império que poderia subjugar sem levar
à revolta os subjugados, mas algo nos enganou, ou algo nos escapou: o
querer saber, o querer saber compreender, o esquecer que para além da
ordem, a desordem é fomentada, não pode haver ordem sem respeito
e quando o conquistador não desce ao ponto do respeito, cria a revolta,
mas não a reconhece.
- É verdade Trevis , hoje vamos aqui dentro deste ascenssor que nos leva
ao metro londrino, deparamos com gentes de todos os pontos do globo e sentimos
que não há razão para isso.
Não há razão para que nos possamos enganar quando não
nos enganamos com uma realidade perfeitamente real, a realidade do cruzar a
cada esquina aquilo que não somos aquilo que temos que aceitar, aquilo
que nos é completamente estrangeiro. Sentimos que estamos a ser penetrados
por algo estranho, - é verdade John e que terão sentido ou que
terá sentido aquele hindu que no corner speaker no Hyde Park tentava
fazer ver aos londrinos que existe uma vida para além da morte, quem
é finalmente o culpado?
Quem é que tem que acreditar?
Onde está a transparência de uma coisa que morfológicamente
e concretamente não existe, quem tem que vender, quem tem que comprar?
As realidades são assim, e...existem e existe aquilo que é supostamente
verdadeiro mas que não sabemos que existem. Existe aquilo que não
é verdadeiro mas que se aproxima da verdade que não queremos aceitar.
A transparência é como um rio que corre e não tem sentido,
é como um rio no qual pescamos e nos enganamos quando a água passa
e a transparência muda, a transparência se torna ilusória.
De que vale a pena pensar na transparência, de que vale a pena pensar
naquilo que nós pensamos que vale a pena?De que vale a pena?
Que importância tem que eu seja Trevis ou John?
Que valores posso eu exigir dentro de um inferno que não arde?
Apenas a ilusão do existir?
Ou o existir dentro da ilusão?
Bom John desço na próxima paragem, dá saudades minhas à
tua mulher, e não te esqueças de comprar as salsichas de porco
para o churrasco no próximo sábado.
- Ok Trevis logo te envio um e-mail, by the way, gostei imenso daquele
em que aquela puta gorda americana comia dois hot-dogs ao mesmo tempo.
Ah!
Very funny.
Bye.
- É como te digo John estas salsichas são extremamente saborosas.
Não há como o sabor do porco inglês, é um sabor que
como te digo fica dentro, é um sabor que se confunde com o extremo do
prazer, é um sabor que vai além do tudo, como te poderei explicar
John?
Pegas num pouco de porco inglês assado metê-lo na boca e começas
a mastigar lentamente, dás-lhe a volta com a língua e deixas que
o sabor penetre e invada completamente a boca, é de facto um prazer sublime.
Depois pegas numa caneca de cerveja (Deep shaft stout) e deixas que lentamente
os gostos se conjuguem, é simplesmente divino, é simplesmente
inglês.
Ai John, John esta juventude não sabe o que tem, não sabe o que
perde.
Onde compraste tu estas deliciosas salsichas?
- Não sei se conheces Trevis, uma pequena rua que se encontra à
esquerda de Oxford St, Baker St.!..
- Sim, sim conheço! Tinha até uma tia avó que vivia em
Marylebone Rd. e isso até me leva a pensar quando ia passar uma temporada
com ela e lhe fugia para brincar com as outras crianças no Regent's park.
- Pois foi aí exactamente que encontrei uma pequena mercearia de um turco.
Por curiosidade entrei e fiquei estático frente à vitrina do talho
onde estavam expostas estas salsichas. O que mais me chamou a atenção
foi a forma como eram feitas, saíam da forma comum, como estamos habituados
a vê-las. Eram menos esguias e muito mais corpolentas que as tradicionais,
depois o preço era relativamente inferior ao comum, "meio envergonhado",
isto é um à parte Trevis, pois como sabes nós fazemos as
compras nos grandes supermercados, tanto eu como a Doris raramente compramos
seja o que for em pequenas mercearias, à excepção do leite.
Então como te dizia fui-me chegando até ao balcão como
que puxado pela imagem que aquelas salsichas tinham causado em mim, era como
se um grande imã carnal me puxasse em direção das mesmas,
vai daí, senti um impulso e perdendo a vergonha pedi dois kilos de salsichas.
- Tou a ver John!...
Por um acaso as salsichas tinham a marca que normalmente trazem para certificarem
a autenticidade do producto?
- Não me lembro Trevis, não me lembro!...
- E era Turco o dono da mercearia?
- Era sim Trevis.
Agora esqueço-me do nome, mas era turco, era turco porque o homem falava
para a mulher, e a mulher falava para a filha em turco, não que eu conheça
completamente a língua turca, mas ainda me lembro quando fui à
Turquia passar quatro semanas naquela fábrica onde fomos instalar o sistema
de computadores, então aprendi algumas palavras e fiquei com uma ideia
daquilo que é o idioma turco.
- Desculpa John, tenho que ir à casa de banho, e pousando a prato com
a salsicha meia comida na mesa Trevis foi directo à casa de banho onde
meteu os dedos na boca para assim acelerar a vontade de vomitar.
De regresso ao jardim Trevis sentou-se na mesma cadeira e chamou a mulher e
o filho.
- Não quero que vocês comam estas salsichas.
John que estava de pé junto do assador ficou paralisado.
- E porque é que eles não podem comer as salsichas? Perguntou.
- É que... sabes John tenho e sou bastante céptico em relação
aos métodos utilizados pelos estrangeiros na confecção
desse tipo de comida, por isso prefiro guardar as minhas distâncias e
agir com cuidado.
Perguntei-te se as mesmas tinham a marca de autenticidade, disseste que não
sabias. Agora, estás a ver, eu não sei se isso é um producto
caseiro e que formas de higiene foram aplicadas na confecção das
mesmas.
- Mas tu tinhas dito que eram saborosas, inclusive sublimes, de um gosto que
transcendia o próprio prazer!
- É verdade, mas talvez até tenha sido uma reacção
puramente psicológica, digo até pelo condicionada, facto de ver
a forma das salsichas e o prazer que psicológicamente me causou essa
imagem. Olha bem para mim John, foi com certeza uma reação puramente
maquinal.
Olhando para o amigo e vendo através das lentes dos óculos o azul
pálido dos seus olhos, John perdeu-se em conjunturas mentais, o seu subconsciente
dava-lhe razão assim como lha tirava.
Este sacana, pensava ele do amigo talvez até tenha razão, talvez
mesmo não a tenha, mas aquelas malditas salsichas que tinham actuado
nele como uma atração, eram agora a razão da discórdia,
não da discórdia em si, entre o fazer e desfazer, mas a discórdia
subtil de saber até que ponto as malditas salsichas eram aprovadas para
serem comidas.
Deviam ser efectivamente salsichas confeccionadas em casa, talvez mesmo dentro
das regras da higiéne, mas talvez até o não fossem e aí
estava exactamente a irrealidade das transparências. A realidade da conjugação
matemática, a realidade pura e simples dos lados opostos do triângulo,
a interferência dos pontos que se cruzam, as razões da procura,
as razões de uma realidade sem importância mas importante, até
ao ponto de ter que se meter os dedos na boca para vomitar essas mesmas realidades
ingeridas.
Porque será que ele tinha sido atraído pela pequena mercearia
de Baker St?
Porque será que tinham escolhido salsichas para o churrasco?
Podiam muito bem ter escolhido galinha, porco, etc. Mas não, foram logo
escolher salsichas, o ponto mágico da conjugação. O ponto
real das coisas que se não explicam, mas que se conjugam na aparência
das suposições matemáticas, que no fundo nada têm
de matemático, mas que têm, o facto de serem o que tinham que ser.
A realidade dos caminhos que se pisam sem que a certeza os pudesse evitar, como
tudo se confundia com as coisas que a vida simplesmente fabrica.
Ao longe sentados na borda da piscina e agitando as águas com os pés
estavam as crianças que não escondiam a sua indiferença
entre o saber se as salsichas eram verdadeiras ou falsas. A tarde de sábado
parecia mais calma!...
De repente Trevis pegou na chave do carro e disse para o amigo.
- John vou ao talho da cidade e vou tentar encontrar as salsichas verdadeiras,
digo verdadeiras no sentido de que devem trazer o selo de autenticidade. Senão
John vamos andar à volta do pote e não aceitamos as realidades
nuas e cruéis.
Sabes, já agora devo dizer-te, que inclusivamente para aceitar os propósitos
do discurso do hindu devemos aceitar primeiramente as nossas realidades, é
simples mas é real, o facto de ter que se fazer escolhas, esta não
é uma escolha importante no entanto não deixa de ser uma escolha,
supõe tu John que uma das crianças morria depois de ter ingerido
estas malditas salsichas, supõe tu!
E depois até que ponto seriamos nós culpados pelo facto de não
termos tido a coragem de nos impormos à escolha. Sim até que ponto
iríamos chorar sem culpabilidade?
Ou seja a razão da facilidade, os hindus têm essa escolha, talvez
não a chorem, porque nunca o sabemos, mas talvez a sintam e digam para
eles mesmos, amanhã faço essa escolha e o amanhã passa.
A realidade da escolha acumula-se, quero dizer aquilo que devia ter sido uma
escolha não o foi, mas continua sendo-o.
O hindu não morre por isso, mas fica a um metro mais de distância
do paraíso, e assim se passa a vida. As distâncias acomulam-se,
as dúvidas da escolha roem a própria vontade de escolher.
Mas isso para eles não deixa de ser uma certeza quase matemática!
Tal não lhes provoca algum mal físico, provoca sim um mal espiritual.
Enquanto que o comer as salsichas que compraste na pequena mercearia do turco
possa ter repercussões físicas graves ao aceitar as mesmas como
alimento. Espiritualmente em nada afecta comer ou não comer salsichas!...
Compraste-as pela forma diferente e pelo volume diferente que tinham.
Uma outra irrealidade!
A forma o conteúdo pragmáticamente uniforme dá-nos um prazer
de confiança, é como sabermos que o vizinho e o vizinho do nosso
vizinho aceitam o acto de comer salsichas uniformes sem se porem a questão
de irregularidade. Assim como os hindus e como os católicos, os protestantes,
sentimo-nos bem porque os outros se sentem bem quando nos identificamos a eles
dentro dos mesmos valores. Tás a ver o caso do hindu no corner speaker?
Pois para mim o seu discurso era um discurso cheio de dúvidas, fossem
elas filosóficas, morais ou culturais.
Para mim era um motivo como o foi o de discutir contigo. No entanto para dois
hindus poderia também ser um motivo de discussão, mas com outra
dimensão que não fosse a cultural, a moral e possivelmente a filosófica,
mas talvez a espiritual.
Os valores são relativos como a relatividade é matemática,
para eles a soma dos factores estava feita. Apenas a forma como cada um age
é que pode variar, mas para nós não, nada varia!...
O conteúdo do discurso era desfeito em suposições que não
se enquadravam nos nossos valores por isso mesmo teriam que ser postos em causa,
teriam que ser dissecados e analizados com o máximo de objectividade.
John olhava para o amigo como se este se tivesse confundido com as raras nuvens
que circulavam no céu. Parecia até que se suspendia no ar pela
leveza do pensamento. Mas era verdade, era verdade que sim, admitindo que houvesse
uma criança que morresse pelo facto de ter comido aquelas salsichas quem
seria o culpado?
O turco ou ele? Ele que não soube definir as realidades da escolha?
Era verdade, Trevis parecia perdido metido dentro daqueles calções
com o desenho da bandeira do Reino Unido e profundamente recuado, escondendo
o olhar por detrás daqueles óculos imensamente graduados. A careca
meia vermelha com o resto dos cabelos loiros, parecia um herói do século
vinte e um. Parecia um Don Quixote nu montado em barcodes que afirmam
o progresso da nossa sociedade.
Parecia um cristo simplesmente estático, sorrindo para aquelas malditas
salsichas que tinham sido a razão do elogio que ele mesmo tinha feito
ao porco Inglês e que eram agora a negação de todos os valores,
eram agora a razão das pseudorrealidades.
Victorioso olhava para as mesmas estendidas e abandonadas no caixote do lixo.
Com um ligeiro sorriso deu uma mordidela nas salsichas autênticas e certificadas
pelo departamento de saúde britânico, o prazer saía-lhe
pelos olhos.
Quem me dera poder estar sentado longe, dentro do vazio de tudo, dentro do vazio
do próprio vazio e não ter que escolher entre salsichas certificadas
e salsichas verdadeiras, entre salsichas caseiras e salsichas de aviário.
O preço, o preço das realidades é o preço do falso
que não é falso mas que é falso porque tem que ser falso,
para que o verdadeiro tenha que ser verdadeiro!...
Já me enganei outra vez!
Repito: o falso, para que o falso tenha que ser aceite como verdadeiro, merda
para a matemática merda para as equações, entre salsichas
inglesas e salsichas alemãs prefiro o cheiro do presunto português.