Foi na aula de filosofia do professor Ambrosio quando o mesmo dizia: a verdade
é que se nos debruçamos sobre o conceito da evolução
do homem quer no aspecto histórico quer no aspecto espirítual,
ou mesmo, no aspecto social só temos dois pontos que se confrontam entre
eles.
Um, o de exactamente saber qual é esse mesmo conceito que nos leva a
perpetuar essa evolução e se cientificamente o outro levará
o homem à sua descoberta e à sua verdadeira evolução.
Com isto pretendo dizer que a evolução do homem é marcada
por dois pontos. O primeiro, a saber se o homem é naturalmente um produto
da própria natureza, com todos os acontecimentos com que a própria
evolução da natureza o foi atingindo. O segundo, a saber se a
criação divina do homem é a razão da sua própria
evolução dependente de uma força espiritual à qual
chamamos deus e pela qual vemos o homem como razão de existir.
Não podemos todavia deixar de pôr em causa o aspecto dramatológico
da questão como não podemos também deixar de pensar no
aspecto evolucionista de Darwin, que como sabemos na sua obra "A origem
das espécies" explica o aparecimento do homem por uma evolução
através da natureza.
- Sim Anastasio que dizias?
- Eu dizia apenas que no aspecto figurativo espiritual e místico, eu
não posso deixar de acreditar que na dimensão quase eclesiástica
da formação do mundo partindo de um conceito puramente religioso
e de uma dimensão divina, o homem tenha evoluído dentro desses
valores!
- Não compreendo Anastasio como podes tu basear-te em dados puramente
místicos e supostamente anticientíficos para justificar a evolução
do homem quando existem formas e conceitos contraditórios nessa mesma
descrição?
Esqueci-me porém de mencionar que segundo a biblia, a criação
do homem obedece segundo a mesma linha da criação do mundo, a
uma realização puramente espiritual onde uma força divina
à qual chamamos deus está na base da criação do
homem!
- Eu sei Amaro, eu sei o que queres dizer, eu sei também que através
de todos estes séculos foi difícil para o homem acreditar no conceito
divino da formação e da evolução do mundo.
- Não Anastasio, não é que seja dificil, é
que simplesmente, hoje o homem utiliza novos instrumentos de análise
e tem uma capacidade de pensamento muito mais elevada que o leva a pôr
em causa exactamente esse aspecto retrogrado da evolução divina
do homem.
É como para mim os escravos que conseguiram rebentar as correntes e atingir
uma liberdade, embora aparente, mas uma liberdade de comportamento e acção.
- Eu sei professor Ambrosio, eu sei, mas não nos podemos deixar encaminhar
numa direcção puramente demagoga!!!
- Errado, Anastasio, muito errado, o homem hoje começou a pôr em
causa exactamente esses princípios bíblicos, esses valores espirituais
e sinto, que o homem se virou mais para o lado histórico-científico
da sua evolução como a querer saber para além da falsa
espiritualidade, o que exactamente a ciência lhe poderia dar e onde a
ciência o poderia levar na descoberta da sua formação, digo
das suas origens, dos seus princípios, das suas identificações
e também como se encontrou o homem através deste evoluir!
Saber que num mundo repleto de dúvidas o consolo espiritual da sua evolução
e do seu começo não lhe eram completamente satisfatórios.
O pôr em causa exactamente esse aparecimento e criação divina
levou o homem a interrogar-se, a pôr mais em causa exactamente essa formação,
a duvidar dos ensinos, a duvidar das crenças, a duvidar de um misticismo
que não o completava, que não o preenchia na sua procura. O homem
sentia-se vazio, só, sentia-se angustiado em relação à
teoria da sua criação, em relação aos deuses ou
ao deus que supostamente o criou, porque se sentia atraiçoado na protecção
que o criador não lhe mostrava. Sentia-se só e abandonado, sentia
o deus distante dele mesmo, sentia o egoísmo da falsa verdade, e voltava
a sentir a falta da protecção desse mesmo criador, sentia que
existia um vazio que não conseguia compreender, sentia uma solidão
que não tinha razão de existir. Se um deus o tivesse criado e
o tivesse dirigido no caminho da evolução, não o teria
abandonado, por isso toda a evolução que sentia era a evolução
da sua própria natureza, da sua própria luta. O homem sentia-se
mais ligado à natureza, aproximou-se dela e começou a sentir a
razão dela mesma, a razão de se identificar com essa natureza
que o rodeava, com a natureza que lhe mostrava exactamente a sua formação,
a sua origem e a sua evolução dentro do tudo, do qual ele sentia
que era parte. A espiritualidade apareceu-lhe apenas na sequência do seu
pensamento, na sequência da sua solidão, no egoísmo da sua
própria existência. O querer ir além da própria natureza,
o querer ultrapassar os conceitos naturais em que estava inserido, os momentos
fracos do seu existir, os momentos em que o homem se contempla e se consegue
ver superior e diferente da natureza, os momentos onde a dúvida subsiste,
onde o homem quando se compara à natureza se sente superior a ela mesma,
o engano, o engano e a razão de se sentir diferente e superior à
natureza. Mas o homem chegou simplesmente à conclusão de que as
suas origens eram e serão simplesmente naturais, de que deve a sua evolução
à natureza, porque a natureza ele sente-a e consegue vê-la, consegue
ter com ela uma união, consegue com ela comungar. Enquanto que, com o
conceito da criação divina o homem pôe as suas dúvidas,
não vê, não se liga, não se identifica, mas a dúvida,
está puramente entre o acreditar e o sentir. Como se para além
de tudo, a verdade fosse divina, como se efectivamente o homem fosse uma criação
do divino, e como se esse divino nos reservasse uma vida espiritual para além
da física, que se mistura e se funde com a natureza!
Essa é a dúvida do homem, e há alguns que dentro de um
cepticismo adormecem a pedir ao deus que lhes reserve um lugar no imaginário
paraíso.
Como há alguns que sabem que na natureza o fruto do azar criou o homem,
através das suas próprias mutações e o levaram a
ser aquilo que é e aquilo que ele não sabe o que será,
mas a verdade é a verdade.
Há homens que dormem em relação à natureza e aconteça
o que acontecer tudo é natural tudo é o que tem que ser. Mas existem
também homens que têm medo de se fundir de novo com a natureza
e então acreditam que a divindade está pronta a salvar-lhes a
alma e quem sabe o físico e levá-los para o paraíso que
perderam quando pecaram. Ora, o homem não pecou, o homem aceitou-se naquilo
em que a natureza o traduziu e o levou a ser aquilo que é e aquilo que
a cada passo passa a ser, o que será.
Mas vejamos o confronto que actualmente se verifica entre a sociedade científica
e a sociedade bíblico-espiritual. Uma esgotou completamente os seus valores,
ou os valores em que se assentava para levar o homem a acreditar que deus tinha
sido o responsável da formação do homem, por um prazer
puramente antagónico à existência do mesmo. Um prezar, posso
mesmo dizer egoísta, de construir alguém para o injectar num núcleo
de uma existência dolorosa e sem grandes valores existênciais, mas
com grandes valores espirituais. Uma existência, em que, a existência
nada tinha de grande importância, trocando-a por uma futura existência
num paraíso puramente alegórico e mesmo fantasmagórico.
Um paraíso sem raízes, um paraíso sem caminho, um paraíso
sem objectividade, um paraíso incógnito, uma promessa sem razão.
A isso o homem começou a reagir lentamente e começou à
procura daquilo que poderia ser verdadeiramente um ser completamente saído
da natureza, que se devia realizar dentro dela e aceitar mais concretamente
a sua evolução. Aceitar pertencer-lhe mais do que pentencer à
espiritualidade incógnita, comungar com ela e entregar-se-lhe para se
poder realizar mais objectivamente.
Darwin teria efectivamente através destes tempos ter sido um deus sem
aclamação, um deus puramente saído da natureza e levando
o homem ao local exactamente de onde ele evoluiu. Um deus que não se
preocupou em encontrar um paraíso místico para o homem, mas mostrando-lhe
o paraíso donde ele tinha evoluído e onde ele iria ainda evoluír.
- Compreendes Anastasio? Só nós podemos atribuír importância
à importância que as coisas têm, a exemplo de Galileu.
Eu Anastasio elevei este ponto, mas a verdade é que cada um tem e pode
ter dentro de si a certeza de que é aquilo que quer ser, ou aquilo que
erradamente pensa que pode ser.
E foi assim que na aula de filosofia do professor Ambrosio comecei a pensar
na minha própria evolução, no caminho que tinha percorrido,
no que efectivamente temos que passar para nos sentirmos evoluir, não
no sentido comparativo que o professor procurava, mas na minha própria
afirmação.
Eu sabia, que através dos anos tinha visto, senão imaginado toda
e sequência da formação do pensamento que o homem pode ter
sobre a sua própria formação sobre a sua própria
evolução e sobre a sua própria revolta.
Naquele dia frio de Inverno do ano de 1960, eu senti que nada era! Eu senti
que para ser alguém, eu tinha que ter a força do meu lado, mas
não! Não tinha força porque era uma criança acometida
de uma visão que me marcou para a vida.
Encostado à parede daquele quarto com uma pintura gasta pelo tempo e
humidade, agarrado a um pequeno cão, só tive o conforto de encostar
a minha cara ao pelo do mesmo e chorar a dor horrivel que a força dos
outros me fazia sentir.
Morri, morri ali estático com lágrimas nos olhos sem saber exactamente
porque é que se chora quando se acabou de nascer. Por isso, hoje mesmo
eu sinto que trago a morte dentro de mim, sinto quanto os outros me foram infiéis
e me mataram, quando acabava de nascer.
A minha espiritualidade nunca existiu!
O meu paraíso foi reduzido à dor que poderia suportar o meu irmão!
O meu paraíso levou-me a ter a certeza que nunca eu poderia descobrir
um paraíso, um paraíso terrível cheio de dor e de angústia,
cheio do medo da força dos outros. O meu paraíso ficou ali preso
entre mim e a relação que senti com o pequeno cachorro que apertava
contra mim. A cumplicidade de um paraíso angustiante sem mascara sem
dimensão.
O tempo passou por mim, senti naquele momento que me encontrava junto do que
me devia encontrar, junto da minha natureza, junto do que eu pensei que era,
mas que faltava ser.
Quando ouvi o professor Ambrosio tive vergonha de mim, tive medo de me confessar
a mim mesmo, tive ansias de correr e abraçar a árvore mais próxima
e dizer-lhe baixinho: acredito em ti!
Por isso, saí do curso discretamente e caminhei como um vagabundo que
nada tem a perder, que nada tem a acreditar, e em que nada já acredita.
Como um vagabundo que pensa simplesmente que tem que correr para apanhar o próximo
comboio de mercadorias que o levara quem sabe através do sonho e da realidade
do barulho que as rodas do mesmo produzem nos trilhos em que desliza.
Morri jovem quando tudo me era fantástico, quando tudo me era inocente,
quando tudo me era indiferente, sobretudo quando sabia sorrir!
Morri com a imagem da vida!
Morri com a imagem da vida que nunca devia ter sentido que nunca devia ter visto,
que nunca me devia ter ferido a pele e o sentir.
Morri ali agarrado a um cão encostado às paredes caiadas sem fundo
sem beleza e sem profundidade.
Morri ao sentir a dor que a força pode causar, a dor da força
que nunca tive e que através da minha existência vim a odiar.
Desculpe professor, o senhor tem razão, eu pensava e estava abstracto,
longe, estava comigo, sim estava comigo quando morri, quando me perdi de mim
mesmo agarrado a um cão olhando as paredes amarelas de um quarto cuja
saída nunca encontrei, cujas saídas me foram fechadas. Ainda me
lembro dos buracos que o soalho continha, ainda me lembro de ter pensado que
poderia saír através deles e poder glorificar-me e estender a
minha mão ao meu irmão dorido e incorformado.
Mas não!
Os buracos eram demasiado pequenos e a minha morte foi consumada .
Não professor, já que me pergunta, não sei o que senti
depois.
Para ser honesto, não sei se houve depois, sei que me senti diferente
e aquela igreja ao fundo da nossa rua passou a ser para mim como um poço
em que eu tinha medo de cair. Fugia cada vez que tentavam levar-me até
junto dela, era um choro interior que eu sentia para não magoar os outros
mas eu sentia esse choro, as minhas pernas ficavam ríspidas e quase não
podia andar, era como uma força que me impedia de avançar.
Á noite deitado naquele quarto escuro de paredes amarelas e ouvindo o
respirar dos meus irmãos eu pensava em mim, pensava que a loucura me
tinha cercado que a loucura se tinha apoderado de mim. Queria voar para ter
a certeza que a loucura não era a razão da minha angústia,
do meu sofrimento, mas sim a força contra a qual eu nada podia fazer
senão voar e fechando os meus olhos mortos eu deixava-me voar até
aos confins de mim mesmo. Deixava-me arrastar pelo nada, deixava que o sentir
se apoderasse de mim e assim acordava pela manhã com um sorriso que escondia
debaixo dos lençóis manchados pelo suor do meu voar.
Por isso professor sinto em mim uma morte que me confunde, uma morte de algo
que não vivi, e se vivi não me lembro de ter vivido. Sinto em
mim a dor do meu irmão, sinto a sua morte como se fora a minha, sinto
a minha vida como se fora a dele, por isso acredito que sim, acredito que tenha
acordado naquela manha e não me tenha sentido. Acredito que tenha olhado
para o espelho e não me tenha visto, mas acredito que tenha sentido,
não sei porquê, a dor que aquele objecto causou em mim quando o
apertei contra o meu peito, senti gotas de sangue descendo através do
mesmo e
senti-as quando com os meus dedos as agarrei e as levei à minha boca.
Senti em mim o prazer de ser o prazer da minha dor, o prazer da minha imaginação,
o prazer oculto da dor que sentiu o meu irmão.
Naquela manhã o sol entrava pela minha janela sem que eu o sentisse,
Batia nas paredes amarelas do meu quarto e dava-me a sensação
de que eu me seguia a mim mesmo em direcção ao longínquo
espaço que me tinha fugido na noite anterior, ao longínquo grito
da dor que eu tive que recalcar com medo que a força se tornasse mais
forte e acabasse por me obrigar a morrer mais repentinamente do que a morte.
Eu sei professor, eu sei que através de mim vi a minha definição.
Vivi, fui vivendo através das chuvas que iam caindo na minha existência,
fui ouvindo sermões através de reuniões que me levaram
a estar presente quando já nem existia, fui ouvindo discursos em praças
públicas só porque o sol me batia no corpo e isso me confortava,
me dava prazer. Mas sentia em mim a indiferença das palavras, nem as
compreendia, tentava, mas o esforço era enorme, então eu preferia
sentar-me nos bancos públicos e fingir, fingir que existia, fingir que
estava ali.
Cresci e tornei-me egoísta, egoísta de mim mesmo, refugiei-me
dentro de mim, comecei a pensar, a pensar se tudo quanto pensava valeria a pena
ser pensado?
Comecei a pensar se efectivamente o paraíso era feito para mim, era destinado
a pessoas como eu, angustiantes e revoltadas, revoltadas porque traziam a morte
dentro delas, porque tinham morrido antes de ter vivido e nunca tinham sentido
o paraíso, senão que fosse o simples esgaziar dos olhos no campo
da feira perante a mulher barbuda?
Comecei a sentir em mim a força animal, comecei a sentir quando olhava
para os céus uma distancia enorme entre mim e as nuvens, comecei a sentir
uma atracção pelos seres vivos e isso fazia sentir-me e ter a
sensação que tive quando morri agarrado ao pequeno cão
que sentiu o meu choro e a minha morte.
Fui arrastado sem querer até ao cheiro das velas que me marcaram através
dos anos em que senti a dor do meu existir.
Sim professor nunca quiz ou nunca tive o prazer de sentir em mim as palavras
dos outros, recebi-as sim mas sempre com cuidado de análise.
E assim apareci no mundo daqueles que vivem e têm uma razão para
viver, no mundo dos valores, no mundo da força, seja ela qual for.
Um dia, feliz caminhava a pensar que talvez quem sabe, eu pudesse através
de mim mesmo chegar à conclusão de que teria que ser aquilo que
os outros foram, esquecer que podia estar escondido a olhar a janela que se
encontrava do outro lado da rua e me pudesse ver sentado naquela secretária,
escrevendo quem sabe a razão da minha existência, escrever o sonho
que esqueci.
Ia gritando por vezes para as crianças que indiferentes corriam à
volta da mesa redonda que se encontrava no centro daquele quarto pintado de
verde, onde o retrato do meu avô altivo e indiferente nos dava a razão
do existir. Para que teria eu que gritar para aquelas crianças que felizes
corriam à volta da mesma? O meu pensamento era meu, unicamente meu! De
que serveria eu tentar gritar e parar o movimento circulatório daquelas
crianças que imagináriamente circulavam e corriam à volta
do mundo que lhes pertencia? Que iria eu aumentar naquele prazer ao fazer-lhes
parte do meu pensamento, ou tentar dizer-lhes que o homem era um descendente
da natureza, e que fugissem dos falsos espíritos?
Era como estar debruçado naquela janela da minha infância, veme
passar tranquilamente na rua, ohar-me com prazer e tentar dizer-me que a liberdade
é estar libre, a liberdade é saber caminhar quando queremos caminhar
sem que alguém nos impeça de o fazer. Como a liberdade é
tambem estar debruçado na janela da nossa infância, ver quem caminha
do outro lado e tentar ver na outra janela o nosso rosto feliz ou infeliz nas
manhãs em que nos proibem de caminhar.
Um dia encontrei-me perdido naquela rua que tanto me conhecia. O tédio,
a angústia acercaram-se de mim, tive medo de me dirigir ao passante que
do outro lado e com a sua capa preta me fazia sinal para me aproximar.
Sim estou perdido, mas não sei a razão exacta pela qual me perdi,
conheço esta rua como conheço a palma das minhas mãos,
mas sinto em mim a sensação de que estou perdido, os meus passos
são incertos, o sul e o norte nada me dizem, sinto-me perdido, sinto
em mim um calafrio horrível que me leva a duvidar de mim mesmo. A minha
testa está encharcada de suor, provocado pelo medo que sinto ao sentir-me
perdido, no entanto passo nesta rua pelo menos três a quatro vezes ao
dia. Vê aquele lampião naquela esquina? Eu nunca o vi, mas sei
que ele sempre esteve ali, sei que a luz que reflecte até já me
foi útil para identificar a chave da minha porta. Mas hoje sinto-me perdido
e iria jurar que aquele lampião nunca existiu, que aquele lampião
nunca pertenceu ao local onde está e que nunca me servi dele para identificar
a chave que abriria a minha porta. Aquele lampião é o medo que
tenho dentro de mim! Eu sei porque passo nesta rua três a quatro vezes
ao dia e nunca vi este lampião, não, nunca o vi e seguindo os
meus passos encontrei-me dianta da janela onde eu sempre me debruçava
para ver as gentes a desaparecer na esquina. Era para mim como uma réstia
ver as gentes desaparecer quando dobravam a esquina. Que prazer tinha eu! Era
como ter a sensação de que era eu a controlar as gentes que passavam
debaixo da minha janela. Eu sabia exatamente o momento em que as gentes desapareciam.
A última coisa que eu via era o calcalhar dos sapatos, uns eram pretos,
outros já gastos pelo uso pareciam fundir-se com o calcalhar dos pés.
Era de facto um prazer, a minha força, o meu poder sentir que depois
de trinta passos as pessoas desapareciam na esquina, que prazer, que angústia,
que desejo eu sentia em mim. Os dias eram passados assim...e um dia tentei imaginar-me
a mim mesmo a desaparecer naquela esquina.
Saí cedo de casa contei os passos e eram exatamente trinta, aos trinta
o meu calcalhar estava no ar e desaparecia quando o poisava no chão,
corri para a minha janela e tentei ver-me com as minhas calças azuis
e os meus sapatos pretos a pisar aquele passeio que me levava até à
esquina onde tudo desaparacia. Então punha-me a contar vinte e sete,
vinte e oito, vinte e nove, trinta e aos trinta, eu imaginava o meu calcalhar
no ar e a desaparecer na esquina. Era o meu segredo, eu sabia quando a gente
desapareceia, era o meu controlo, aos trinta passos o calcalhar erguia-se e
desaparecia no ar.
Uma manhã em que o sol me batia directamente nos olhos vi uma espécie
de gigante, que nunca tinha visto antes, a caminhar em direção
à esquina, comecei a contar, já ia nos vinte e cinco quando a
minha avó me chamou, só tive tempo de me virar e continuar a contar,
vinte e sete.
Virei a cara em direção à janela e já não
vi ninguém.
Que aconteceu?
Que se passou? Como pode a pessoa ter virado a esquina aos vinte e sete passos?
Nao conseguia compreender, se toda a gente que passava virava a esquina aos
trinta passos!
Teria ele os pés maiores do que o resto da gente que passava?
Não, não podia ser! Foi para mim o grande mistério.
No dia seguinte saí muito cedo de casa com a intenção de
procurar o gigante que tinha virado a esquina aos vinte e sete passos.
Passei o dia a procurar o mesmo pela cidade, e nada, voltei para casa mais angustiado
que nunca. Durante dois dias mal pude comer e não tinha vontade alguma
de voltar à janela para ver a gente a dobrar a esquina.
Ao fundo da rua via a Igreja onde tinha sido baptizado e comecei a detestar
quando os sinos tocavam para a novena.
Um dia porém ganhei coragem e dirigi-me à igreja com a firme intenção
de perguntar ao padre se conhecia algum gigante que conseguia dobrar a esquina
desde o ponto da minha janela até à mesma em vinte e sete passos.
É claro que o padre pensou que eu estava doente ou que tinha tido alguma
alucinação. - Mas que me contas? Eu não conheço
nenhum gigante e tão pouco conto os passos de quem dobra a esquina. Fiquei
revoltado e prometi a mim mesmo nunca mais acreditar em padres. Assim nasceu
em mim a dúvida da minha existência, não da minha existência
em si, mas a dúvida de que os padres não nos sabem resolver os
inigmas da infância, da vida.
Mais tarde mudamos de casa e nunca mais fui para a janela, pois a casa para
onde fomos morar era uma quinta. As janelas davam para as traseiras onde eu
podia ver as vinhas que se estendiam pelos postes e em ramadas. Comecei a contar
os pássaros que ali se pousavam. Por vezes eram trinta, outras vezes
eram só cinco. Acabei por desistir e pedi à minha avó que
plantasse uma pereira no quintal.
Passei a medir a mesma todos os dias para ver quanto crescia. Abandonei a ideia,
não porque eu a quizesse abandonar, não, simplesmente porque tive
que viajar para África e nunca soube se a pereira chegou a dar peras,
ou até se chegou a crescer.