A Garganta da Serpente
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A caixa

(Zé Luis)

A aldeia era relativamente pequena e não contava com mais de vinte kubatas e um grande largo onde a população se reunia para fazer as trocas e o pouco comércio a que se davam as gentes. Era também o local onde as crianças brincavam debaixo do controlo de um adulto, assim como onde se assistiam às reuniões propostas pelo chefe Opáoká, o "Soba", que assim ia mantendo a população ao corrente das novidades, ouvindo as suas proposições e leis, as quais discutiam e modificavam. Este largo era onde todos ficavam ao corrente do bom funcionamento da aldeia.

O fundo africano que se estendia por quilómetros e quilómetros, tornava-se não só grandioso como explêndido, fundindo-se com o azul dos céus no longínquo horizonte.

Os imbondeiros montruosos com os seus largos ramos davam a sensação de serem guarda-sóis enormes plantados aqui e além, para que se pudesse aproveitar a sombra dos mesmos. Os pôr-do-sóis que caíam avermelhados e alaranjados sobre as palmeiras, os coqueiros e as mangueiras davam ao conjunto visual uma sensação paradisíaca.

A noite era completamente escura, onde apenas brilhava ao longe o prateado da lua que caía sobre as folhas verdes nas diferentes árvores e que se estendia sobre as folhas das bananeiras como se fossem grandes travesseiros.

O silêncio! Era um silêncio natural onde apenas se ouvia ao longe o ruído de diferentes animais que se passeavam pela floresta, como que à procura da frescura que a noite lhes proporcionava

Cada vez que meu pai, Opáoká, o Soba da tribo, resolvia reunir os habitantes, colocava no centro do grande largo uma caixa não muito grande, quatorze centimetros de longo por sete de largo, feita de pau preto, numa kibaka, um cepo usado como banco. A população sentava-se ao redor, fumando e bebendo Marufo (vinho de sumo de caju de matebeira, palmeira, palmito ou bordão), e Caporroto (aguardente de milho).

Sempre e desde miúdo me intrigou este gesto que despertava em mim a curiosidade em saber o que a esta caixa continha.

A grandeza do olhar de meu pai era mais do que suficiente para que eu respeitasse a condição exígida e nunca me tentar aproximar da mesma para a abrir e saber o que continha.

Por vezes quando havia reuniões, eu aproximava-me discretamente da kibaka e ponha-me a olhar fixamente para a caixa como a querer penetrá-la com o olhar, mas de repente sentia em

mim o olhar fixo e dominador do meu pai que me levava a distanciar-me da mesma e ir jogar a Kiela, espécie de gamão africano jogado com pedras na areia, ou brincar com os outros miúdos perto das kubatas.

Os anos foram passando e como tudo, as marcas desta passagem foram-se fazendo sentir nas coisas e nas pessoas.

N'gola é o nome que meu pai me deu à nascença.

Durante quase vinte anos vivi com a sensação de que me sentia incompleto, mordido pelo grande desejo que sempre tive em tentar saber o que continha a caixa feita de pau preto, que meu pai depositava sobre uma kibaka no meio do grande largo. Nestes momentos a população reunia-se para o ouvir falar dos problemas que iam afectando a comunidade.

Por vezes dizia ao meu amigo Sabingi, não podes imaginar o quanto sofro só de pensar na minha impotência, na minha honestidade em respeitar o querer do meu pai. Por vezes passa-me uma luz pelos olhos que me cega, descontrola-me e tenho uma vontade férrea de ir direito à caixa para a abrir e terminar com esta dúvida, com este mistério. Depois, uma vontade de desatar a correr pelo mato fora até desaparecer com este mesmo mistério, como um guerreiro que acaba de vencer o seu inimigo.

Mas por outro lado, pergunto-me a mim mesmo, se isso acontecesse, haveria uma razão válida, concreta e imaginária, para que eu através de todos estes anos alimentasse uma sensação subjectiva do que é que poderia estar dentro daquela caixa preta?

Acreditaria eu que, um dia iria satisfazer a minha curiosidade?

Ou será que teria que ser sempre assim, morrer com a eterna dúvida?

- Sabes N'gola eu também tenho pensado nisso, mas se o faço é apenas pelo facto de tu o fazeres, no fundo é-me indiferente o que possa estar dentro da caixa.

Há tempos tive um sonho!

- E que sonhaste Sabingi?

Sonhei que toda a aldeia dormia e eu completamente nu, só, com a tanga ao redor da minha cintura, deslizava no silêncio da noite em direcção ao largo onde estava a caixa preta deposta na kibaka. A luz da lua tornava-a como acinzentada, o seu brilho era muito mais convidativo à sua descoberta e incidia sobre a mesma dando-lhe um ar de algo mais misterioso do que aquele que ela tem durante as noites de reunião.

- E depois?

- Bem depois, deslizei e aproximei-me da caixa, lentamente deixei o meu braço dirigir-se à mesma, quando ía a levantar a tampa, uma luz forte saíu da mesma e cegou-me completamente. Nada pude ver, apenas o vazio escuro que por vezes vemos no céu em dias de trovoada.

- Nunca me tinhas contado esse sonho!

- Pois não! Porque sempre pensei que não valeria a pena, dizer-te o que a caixa continha. NADA! Isto no meu sonho claro. Pareceu-me apenas ver um buraco negro de tão cego que fiquei?

- Tens razão! Não valia a pena.

Eu mesmo tenho adormecido através destes anos todos com o pensamento do mistério que esta caixa contem.

- Deixa lá N'gola ainda um dia irás saber o que ela encerra!

Os anos foram passando e o ritual repetia-se, a cada reunião das gentes, lá estava a caixa como se não tivesse sofrido algum desgaste através de todos estes anos, lá estava o mistério que absorvia todo o meu pensamento.

Um dia resolvi casar-me com a filha da Kitandeira, a vendedora, a bela Nhoka. Meu pai deu-me a sua autorização e o casamento celebrou-se no largo. Como nas grandes ocasiões lá estava deposta na kibaka a caixa negra a tentar de novo a minha resistência.

No dia ao meu casamento, o meu pai deu-me como llêmbu, o dote, duas galinhas, um porco, um saco de sal e um vitelo, assim como uma kubata onde passei a viver com a minha bela Nhoka.

Sériamente, pensei que esta saída da kubata do meu pai me iria ajudar a esquecer o diabo da caixa negra, pois a partir desta data teria que trabalhar durante muito mais tempo na minha chitaka, pequena porção de terra de cultivo, onde o trabalho me iria absorver e fazer esquecer a caixa de pau preto, pensava eu.

Mas não, o meu espírito parecia que estava completamente dominado pela imagem da mesma.

Passado uma semana quando fui almoçar a casa do meu pai resolvi com todas as minhas forças e coragem perguntar-lhe qual era o significado desta misteriosa caixa negra que ele depositava no centro do largo em cima de uma kibaka!

- É como lhe digo pai, desde pequeno, e o pai sabe-o muito bem que o tenho visto a pôr a caixa negra no meio do largo, posso saber o que significa?

- Meu filho há coisas que não têm muito significado, mas que têm muita incidência sobre o comportamento das pessoas, dos grupos, e que actuam como estímulos, compreendes?

- Não pai, não compreendo!

- O significado por vezes não é importante o que é importante e o acto em si. Mas supõe tu, que a caixa não contem nada dentro, que me irás tu perguntar?

Eu sei. N'gola eu sei!

Então meu pai porque é que a põe no meio do largo se nada tem dentro?

E verdade e tens razão, tens e não tens, pensa um só momento que a caixa contem algo dentro, que é que isso iria mudar, que importãncia teria que ela tivesse algo ou não?

A não ser que tu soubesses concretamente que a caixa continha isto ou aquilo e assim poderias chegar a conclusões, como aceitar ou não aceitar. É isso? E verdade que todos se perguntam o que é que a caixa pode conter, mas também é verdade que nem todos vivem fazendo essa pergunta, aceitam-na como uma coisa real e irreal, como algo que lhes é necessário espiritualmente, como algo que os protege.

Que lhes interessa saber o que a caixa contém? Diz-me!

Não é esse o propósito N'gola, nao é esse o fim!

Imagina tu que se todos soubessem o que a caixa contém a caixa deixaria de ter o valor espiritual, ou o valor transcendental que ela pode ter nas gentes da aldeia.

Mas para ti é diferente!...diferente porque pões em causa, os valores pessoais que te intrigam, te levam a perguntar, te levam a duvidarr o que é que a caixa contém, que possa ser assim tão importante quanto isso!

Supõe que caixa está vazia! Supõe que o vazio é importante na medida em que constitui uma curiosidade uma pergunta, uma incógnita.

O vazio será aquilo que está para além dele mesmo?

Ou apenas o facto de a caixa nada conter?

E o que está para além dele senão o próprio vazio daquilo que é vazio, não é verdade N'gola?

- Pode ser verdade, mas...! Não compreendo pai, não compreendo simplesmente porque é que essa caixa existe, tem ela uma razão para existir?

Ou tem ela uma razão para fazer existir os outros, ou simplesmente fazer existir nos outros a dúvida?

- Não, a dúvida não, mas sim como já te disse, a razão que nos é necessária para acreditar. Acreditar numa dimensão puramente espiritual, uma razão que nos mova na razão do existir, uma razão necessária sem que seja posta em causa, uma razão simplesmente para ser algo, para haver uma razão, compreendes agora?

- Não, não compreendo!

- Mas não te preocupes quando eu for velho e estiver a consumir os dias que faltam à minha existência serás tu que terás que ser o responsável de pôr a caixa em cima da kibaka. Então a caixa fará parte de ti, como tu farás parte dela e aí já compreenderás melhor porque é que se transcende a razão do saber. Aí compreenderás que já não é importante saber o que ela contém, mas que é importante que ela esteja lá com tudo quanto ela encerra e pode significar para cada um, para todos. O mistério, a dúvida, o amor, a razão, o ódio, a necessidade e o equilíbrio da sua própria existência.

Aí compreenderás o mistério que tanto mal e bem te tem feito.

Mas N'gola não podia compreender a explicação de seu pai, não compreendia a necessidade da existência da caixa, sem que ela pudesse conter ou não algo.

Uma noite quente de verão, depois de ter bebido uma boa quantidade de Marufo, não conseguindo dormir, mesmo que a sua amada o tenha convidado para o leito do amor, N'gola saiu da sua kubata e dirigiu-se ao largo onde as reuniões tinham lugar, sentou-se no meio. Encontrava-se exactamente onde seu pai depositava a caixa de pau preto, fechou os olhos, reteve a respiração e começou a pensar nas frases que o seu pai lhe tinha dito: "e então a caixa fará parte de ti como tu farás parte dela".

E porquê?

Talvez porque à morte de seu pai tivesse ele que!(...)

Não compreendia.

Ele sabia que à morte de seu pai passaria ele a ser o Soba da tribo, mas...até lá!...

Será que a caixa encerra apenas um lado puramente espiritual e seja usada apenas como uma espécie de talismã, Para tentar manter as gentes da aldeia num sincronismo puramente estimulante e espiritual? Levando as mãos à cabeça e dasatando a rir-se, N'gola esfregava-se no chão e ria-se como um louco, com uma vontade enorme de gritar para os céus: agora comprendo, agora comprendo! Por isso é que tudo tem sido assim desde o meu avô, a maldita caixa apenas serve para nos mantermos unidos, apenas serve para que tenhamos uma razão de grupo uma solidariedade social e espiritual.

Lentamente, surgindo do escuro apareceu Sabingi, que ao ver o seu amigo a esfregar-se na terra pensou que o mesmo estivesse louco.

- Vem para junto de mim Sabingi penso que já descobri o mistério da caixa de pau preto. Ou então parte dele!

- Já?

- Sim, penso que sim.

- Eu também já descobri a forma de saber o que a mesma contem sem que sejamos nós a abri-la.

- Como?

- Sim N'gola, se quizeres posso explicar-te como devemos proceder.

- Muito bem, mas primeiro vai à minha kubata e traz-me um pouco de Marufo, vamos beber e conversar.

E assim foi, bebendo e fumando, os dois, iluminados pela luz da lua cheia começaram a conversar.

- Pois como te digo, o teu pai deu-te como llêmbu, duas galinhas e um porco.

- Sim é verdade e que tem isso a ver com a descoberta daquilo que poderá estar dentro da caixa de pau preto?

- É que pensei N'gola, que poderíamos treinar o porco a ir direito à caixa e com o focinho abri-la.

- Não é uma má ideia, e assim nós não nos sentiríamos culpados perante o teu pai.

- Boa ideia, então a partir de amanhã vamos começar a treinar o porco.

E quanto àquilo que descobriste?

Qual é a razão?

- A razão Sabingi é puramente ficticia, actua como um talismã, é puramente ilusória e serve apenas como um amuleto espiritual, mas isso a mim não me interessa muito, o que me interessa é saber o que a caixa contém, por isso estou de acordo contigo, vamos começar a treinar o porco.

E rindo-se as gargalhadas abraçando o seu amigo, N'gola dirigiu-se à sua kubata, onde estendendo-se na esteira sentiu o corpo quente da sua mulher a quem no silêncio da noite e no calor sufocante do ar amou com ternura.

No dia seguinte cedo pela manhã lá estava o N'gola em frente da kubata de seu amigo, os olhos inchados, mastigando um pequeno ramo de pau e cuspindo de vez em quando, pois o gosto amargo do Marufo dava-lhe a sensação de ter uma enorme manga podre na boca.

- E então N'gola, hoje não foste com com a Nhoka trabalhar na chitaka?

- Não Sabingi, hoje não me sinto com forças para trabalhar, alias pensei durante a noite naquilo que me disseste sobre treinar o porco para poder abrir a caixa de pau preto. Então fiquei excitado com a ideia e pensei começar hoje mesmo o treino. Mas sabes que, pensei também que não só vamos ter que lhe ensinar a abrir a caixa com o focinho, mas que existe outro problema, o qual tu não te deves ter apercebido, teremos também que ensinar algo mais ao porco.

- Qual, o quê?

- Não te esqueças de que a caixa é colocada na kibaka, então vamos ter que lhe ensinar a deitar abaixo a mesma e atirar a caixa ao chão para assim a poder abrir.

- É verdade, não tinha pensado nisso!

Mas sabes N'gola que isso não me parece dificil!

- Vamos a ver, mas agora escuta o que temos que fazer. Devemos ir à aldeia mais próxima e comprar duas pequenas tábuas de pau preto para que possamos fazer uma caixa idêntica e assim começarmos a treinar o porco.

- Vamos então.

Passadas três horas de caminho, lá chegaram à aldeia, onde um grande mercado ao ar livre se realizava todos os dias e onde gentes de todas as aldeias vizinhas se deslocavam para trocar coisas.

Depois de terem adquirido as duas tábuas de pau preto que lhes parecerem ser as indicadas, resolveram voltar à aldeia com o propósito de começarem a construir uma caixa de pau preto.

Trabalharam quase toda a tarde e terminaram a dita.

Já a noite começava a caír sobre a aldeia quando Sabingi e N'gola entraram na kubata com a caixa na mão. Um grito fez-se ouvir muito perto dos seus ouvidos.. Nhoka com as mãos apertando a cabeça dava gritos histéricos ao ver os dois amigos com a caixa na mão.

- Que tens mulher? Porque estás gritando? Não me digas que estás doente, passa-se algo contigo?

- Não, não estou doente, é que vocês trazem convosco a má sorte, a ira dos espíritos, o Cazumbi, alma do outro mundo vai apoderar-se da nossa kubata e vai ser o fim para nós. Deitem fora essa caixa ou levem-na para onde a trouxeram.

- Mas que tens tu mulher? Não vês que o Sabingi quiz fazer-me uma surpresa e fez esta caixa idêntica à que meu pai pôe no largo? Porque quando eu era miúdo sempre gostei de ter uma idêntica.

- Isso é verdade Sabingi?

É sim Nhoka, podes ir lá fora ver ainda os bocados de pau que cortei, ou então vai a casa do pai de N'gola e vai certificar-te que a "verdadeira" caixa está lá.

- Se vocês me dizem a verdade eu acredito.

- Podes acreditar sim, disse N'gola.

Amanhã Sabingi vem ter comigo, o mais cedo possivel, pois queria que me ajudasses a fazer algo.

- Muito bem N'gola podes contar comigo e despedindo-se saiu pela porta da kubata, lá fora foi emergido pela noite escura que caía sobre a aldeia africana.

No dia seguinte dirigindo-se à parte traseira da kubata, onde uma pequena cerca impedia as duas galinhas, o porco e o vitelo de se perderem e serem comidas pelos animais salvagens durante a noite, N'gola abriu a mesma e deixou sair as galinhas e o vitelo. Tentou agarrar o porco, mas o mesmo começou a dar voltas e a grunhir.

Com medo de que os vizinhos corressem a ver o que se passava N'gola abandonou a ideia.

- Sabingi, vamos à chitaka colher folhas de mandioca e vamos fazer uma Kizaka, esparregado de folhas de mandioqueira, com esta pasta vamos tentar que o porco se aproxime de nós.

Assim foi, depois de terem feito cozer as folhas de mandioqueira, de as terem pisado e deixado arrefecer dirigiram-se à cerca e começaram a chamar o porco mostrando-lhe a pasta.

- N"gola e como vamos chamar ao porco para que ele se habitue a vir ter conosco?

- Ja sei, para que a Nhoka não desconfie de nada acho que lhe vamos chamar Sanga, cântaro de barro.

- Boa ideia assim ela não desconfia de nada.

Duas semanas se passaram até que o porco se habituasse a vir comer à mão de N'gola quando este chamava por ele: Sanga!.

- Pronto Sabingi, agora vamos arranjar uma kibaka e vamos ensinar o porco, digo o Sanga, a tentar deitá-la abaixo. Não foi muito fácil, N'gola punha-se atrás da kibaka com a mão cheia de esparregado e Sabingi ia chamando o porco pelo nome, tentando dirigi-lo em direcção à kibaka. Nas primeiras tentativas não foi nada fácil, o porco batia com a cabeça no cepo e parecia ficar zonzo, à terceira tentativa ficou mesmo, posso dizer inconsciente. Era o N'gola a deitar-lhe água no focinho e Sabingi a correr de um lado para o outro com as mãos juntas viradas para o céu: matamos o porco, matamos o porco. Nesta excitação não se deram conta que Nhoka se aproximava.

- Mas o que está acontecendo?

- Náo é nada, estamos a treinar para quando tivermos que matar o porco!

- Mas o pobre porco ainda é um leitão!

- É verdade, mas é melhor começar cedo, do que tarde.

Distanciando-se, abanando os ombros, Nhoka pensou que pareciam mesmo duas crianças.

Ao fim de quatro semanas já o Sanga deitava abaixo o cepo com grande facilidade, já reconhecia a voz de N'gola e vinha logo quando o mesmo pronunciava o seu nome.

A fase seguinte era a mais dificil, levar o Sanga a deitar o cepo abaixo e com este a caixa, depois tentar abri-la com o focinho.

Eram cenas verdadeiramente hilariantes, mas a verdade é que após oito semanas o porco era mestre dos seus movimentos. Primeiro respondia logo à chamada, segundo vinha correndo e deitava abaixo o cepo, terceiro com o focinho empurrava a caixa contra o cepo e abria-a num fechar de olhos, tudo estava preparado para o dia fatal.

Agora só teriam que ter a oportunidade, que o Soba depusesse a caixa de pau preto umas horas antes da reunião, para assim terem tempo de sair com o porco e passar à acção.

Aconteceu que durante o mês de Abril o pai de N'gola não se sentia muito bem e decidiu nesse dia avançar tudo, quer dizer, decidiu ir pôr no meio do largo a caixa de pau preto e voltar à sua kubata para descansar. Ora este era o momento ideal para que os dois amigos pudessem passar à acção.

Em silêncio caminhavam em direção ao largo, Sabingi com as mãos cheias de esparregado de mandioqueira, seguido pelo porco que parava de vez em quando, como que a pedir que Sabingi lhe desse mais esparregado, e N'gola espreitando para todos os lados para ver se não via ninguém.

Chegados ao ponto estratégico e tomando as posições devidas iniciaram o ritual. O porco foi direito à kibaka e com um encontrão deitou-a abaixo. A caixa caiu e ficou junto da mesma, o Sanga levantou o focinho fez um esforço e abriu a caixa. Os olhos de N'gola ficaram arregalados, os de Sabingi não foram capazes de se levantar para ver o que a mesma continha. Uma pequena pedra caiu de dentro da caixa e ficou exposta à luz do sol. Esta pedra começou a progetar uns raios de luz de todas as cores, era uma luz pura e brilhante que dificultava ao N'gola ver a cor da mesma. Depois de se ter concentrado e entrado dentro da própria luz que a mesma imitia ele viu uma pequena pedra branca, de um branco translucido, de uma pureza inegável, uma pureza que ele nunca tinha visto! E agora que iriam fazer? Deixar a caixa estendida na terra quente do largo?

Não, não podia fazer isso, para ele já nada tinha importância, dirigindo-se em direcção à caixa de pau preto ajoelhou-se, pegou na pequena pedra e sentiu como uma queimadura na mão. Depôs a mesma na caixa e esta em cima da kibaka.

- Vamos já nada se pode fazer, tudo está feito, e o que está feito é porque devia ter sido feito, agora só nos resta ficar com este segredo guardado em nossas almas.

Dois dias depois o pai de N'gola sentia que a vida lhe fugia, mandou chamar o filho e pediu a todos que o deixassem só com ele.

- Espero meu filho que tenhas compreendido quanto é importante a pureza que o homem pode conter na sua alma, no seu olha,r na sua vida. Espero também que a tua curiosidade te tenha levado à dimensão da procura, à dimensão da razão, mas sobretudo à dimensão da tua verdade. Estou e parto seguro, confiante de que tu saberás desempenhar o papel que todos nós temos desempenhando, respeitando os outros e respeitando-se a si mesmo. Aperta a minha mão meu filho, sinto que a pureza chama por mim.
Sentindo uma enorme força na sua mão N'gola ouviu também o último suspiro de seu pai.
De hoje em diante será N'gola que terá que levar para o centro do largo a kibaka e nela depôr a caixa de pau preto, na qual ele agora sabe nada existir.
Amanhã, depois da sua procura, será o filho de N'gola que irá depôr a caixa de pau preto no largo da aldeia.

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