A entidade superior mirou a partícula de gente a sua frente sem entender
como um ser tão pequeno poderia ser tão inconveniente. A diminuta
criatura continuou a encará-lo, com um fio grosso de secreção
esverdeada descendo da fossa nasal esquerda até o lábio superior.
A entidade ponderou sua condição de ser cultural, emocional e
cronologicamente elevado e optou por ignorar a criatura. Puxou novamente o jornal
até a altura dos óculos e concentrou a leitura no caderno esportivo.
Um pedaço de carne, com cinco alongadas e intrometidas extremidades pousou,
rapidamente, na parte superior do objeto informativo, fazendo um movimento descendente,
e rompendo o papel de alto a baixo.
O homem olhou, furioso, a criança. Esta, não satisfeita, estendeu
o dedo médio da mão esquerda em atitude anarquista. O indivíduo
de maior idade olhou em volta a procura da fêmea de sua espécie
que seria responsável por aquela cria. Viu dezenas de mulheres, mas nenhuma
se comoveu de seu olhar suplicante. Decidiu ir embora. Levantou, dobrou o resto
do jornal e ajeitou os óculos. Sentiu um pequeno punho fechado atingir
repentinamente seu órgão reprodutor. Emitiu um gemido abafado,
fechando os olhos. Luzes piscando. Ainda curvado sobre si e sob o efeito do
desconforto latejante entrepernas, abriu um dos olhos e, com a protuberância
óssea localizada no na articulação da falange e da falanginha
dos quatro dedos internos de sua extremidade superior direita, desferiu um sonoro
sabacú no crânio do atrevido moleque. Como por um passe de mágica,
ao primeiro berro do garoto, a genitora, outrora desaparecida (ou invisível?),
surgiu diante do homem curvado, acariciando o filhinho inocente e berrando acusações.
A entidade viu-se cercada de outros seres também classificados adultos,
que, obviamente, revoltaram-se com o ato de extrema violência contra um
ser frágil, inocente e indefeso. Os transeuntes honrados decidiram, então,
linchar o cruel monstro de maneira humana e democrática: todos sobre
ele espancando-o até a constatação de seu passamento. Sem
conseguir articular sons orais, um tanto pela dor, outro tanto pela algazarra
ensurdecedora, o condenado pela unanimidade viu, aliviado, chegar um representante
da lei. Este, atraído pela aglomeração, forçou sua
corpulenta e adiposa passagem através da massa de populares. Ordenou
silêncio e ponderou que o mais justo seria ouvir as duas partes. A genitora
do pirralho o inteirou de sua versão do ocorrido. O homem da lei virou-se
para o acusado e, ao primeiro movimento labial que este fez na tentativa de
explicar-se, o pesado instrumento da lei, espalmado, gerou um som utilizando-se
do rosto, perplexo e contraído pela dor, como instrumento de percussão.
A bofetada causou comoção no público espectador, que, satisfeito,
fez soar palmas e assobios.
Após outras agressões físicas mais exaltadas, o ex-gentil
homem de bem foi levado pelo cumpridor da lei e da ordem até o veículo
de transporte de meliantes. Devidamente acomodado entre outros marginais de
sua mesma monta, o criminoso foi encaminhado à delegacia localizada nas
proximidades, acondicionado em uma cela de altíssima densidade demográfica,
seviciado em sua região anal por um número elevado de indivíduos
do sexo masculino e, posteriormente, espancado até confessar o assassinato
de um policial. Logo após a confissão, deu-se o óbito.