A Garganta da Serpente
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Causo urbano

(Yara Ferreira)

A entidade superior mirou a partícula de gente a sua frente sem entender como um ser tão pequeno poderia ser tão inconveniente. A diminuta criatura continuou a encará-lo, com um fio grosso de secreção esverdeada descendo da fossa nasal esquerda até o lábio superior. A entidade ponderou sua condição de ser cultural, emocional e cronologicamente elevado e optou por ignorar a criatura. Puxou novamente o jornal até a altura dos óculos e concentrou a leitura no caderno esportivo. Um pedaço de carne, com cinco alongadas e intrometidas extremidades pousou, rapidamente, na parte superior do objeto informativo, fazendo um movimento descendente, e rompendo o papel de alto a baixo.

O homem olhou, furioso, a criança. Esta, não satisfeita, estendeu o dedo médio da mão esquerda em atitude anarquista. O indivíduo de maior idade olhou em volta a procura da fêmea de sua espécie que seria responsável por aquela cria. Viu dezenas de mulheres, mas nenhuma se comoveu de seu olhar suplicante. Decidiu ir embora. Levantou, dobrou o resto do jornal e ajeitou os óculos. Sentiu um pequeno punho fechado atingir repentinamente seu órgão reprodutor. Emitiu um gemido abafado, fechando os olhos. Luzes piscando. Ainda curvado sobre si e sob o efeito do desconforto latejante entrepernas, abriu um dos olhos e, com a protuberância óssea localizada no na articulação da falange e da falanginha dos quatro dedos internos de sua extremidade superior direita, desferiu um sonoro sabacú no crânio do atrevido moleque. Como por um passe de mágica, ao primeiro berro do garoto, a genitora, outrora desaparecida (ou invisível?), surgiu diante do homem curvado, acariciando o filhinho inocente e berrando acusações. A entidade viu-se cercada de outros seres também classificados adultos, que, obviamente, revoltaram-se com o ato de extrema violência contra um ser frágil, inocente e indefeso. Os transeuntes honrados decidiram, então, linchar o cruel monstro de maneira humana e democrática: todos sobre ele espancando-o até a constatação de seu passamento. Sem conseguir articular sons orais, um tanto pela dor, outro tanto pela algazarra ensurdecedora, o condenado pela unanimidade viu, aliviado, chegar um representante da lei. Este, atraído pela aglomeração, forçou sua corpulenta e adiposa passagem através da massa de populares. Ordenou silêncio e ponderou que o mais justo seria ouvir as duas partes. A genitora do pirralho o inteirou de sua versão do ocorrido. O homem da lei virou-se para o acusado e, ao primeiro movimento labial que este fez na tentativa de explicar-se, o pesado instrumento da lei, espalmado, gerou um som utilizando-se do rosto, perplexo e contraído pela dor, como instrumento de percussão. A bofetada causou comoção no público espectador, que, satisfeito, fez soar palmas e assobios.

Após outras agressões físicas mais exaltadas, o ex-gentil homem de bem foi levado pelo cumpridor da lei e da ordem até o veículo de transporte de meliantes. Devidamente acomodado entre outros marginais de sua mesma monta, o criminoso foi encaminhado à delegacia localizada nas proximidades, acondicionado em uma cela de altíssima densidade demográfica, seviciado em sua região anal por um número elevado de indivíduos do sexo masculino e, posteriormente, espancado até confessar o assassinato de um policial. Logo após a confissão, deu-se o óbito.

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