Acabado de somar mais um ano aos 68 já existentes, fui ao café.
Como dantes, mantinha tal hábito ao acordar pela manhã. Independente
até mesmo das intempéries. Como notado na véspera o dia
amanhecera a cumprir o prometido. E, assim, aos poucos, a sexta-feira surgia
mais uma vez vestindo-se pelo cinzento. Nuvens pairavam sonolentas e ensopadas
de chuva, como se à espera umas das outras para uma breve confraternização,
e daí não tardariam a debitar mais água sobre a cidade.
Portanto, o fim de semana adivinhava-se, repetindo com esta medida, o que já
tanto me parecia uma série inacabada.
Atestei de moedas os bolsos antes de sair de casa (para a compra do jornal).
Porém esqueci-me do agasalho, ainda assim sustentei por alguns instantes
a teoria da caminhada ligeira para afugentar o frio húmido da manhã.
Mas em seguida, consentindo o erro, retornei à casa. Era preferível
o conforto do agasalho ao stress de qualquer corrida atrapalhada. Afinal, sabia
bem um café expresso em manhãs de chuva e frio. E por esta razão
não me custaria em nada tal esforço.
Apesar dos pés gelados e mãos tremulas por um par de luvas mantive
a boa disposição. Contudo, minha única preocupação
naquele momento resumia-se em não ser, uma vez mais, sujeito a enfrentar
uma fila de espera, e seus respectivos e pitorescos integrantes, à porta
da banca de jornais ( já havia sofrido disso na véspera). A chuva
por pouco não cairia por cima de nossas cabeças, submeter-me a
tal lentidão pela compra do jornal, poderia comprometer subtilmente a
minha capacidade de transpor, em bom humor, o mau tempo da manhã. Confiei
remotamente alguma esperança; antecipei-me psicologicamente para o pior
e, segui meu rumo.
Sem mais novidades lá estava a pequena aglomeração: formada
por uns tantos de minha idade e os restantes com a mesma num estágio
mais avançado. Eles alinhavam-se a contragosto, cada qual à espera
de sua vez perante o responsável pela banca, onde um melancólico
e denso burburinho era já possível ouvir-se. Eu, conformado e
anónimo, alistei-me aos demais.
Ao correr das décadas fomos atendidos pelo Sr. Antonio. Um simpático,
obeso e astuto português, natural de Lisboa e aportado no Rio de Janeiro
momentos antes do Século XX completar a sua primeira metade. E que na
superactiva memória guardava, antecipadamente, as publicações
preferidas dos clientes habituais e, por seu próprio mérito discutia-as
também tal e qual um experiente editor ao ponto de nos impingir outras
menos interessantes, trazidas ao sabor da sua erudição. A publicidade
por ele fornecida aos novos lançamentos era tal que na maioria das vezes
acreditávamos ter suficientes razões para dispensar mais alguns
cobres numa compra não programada. E em virtude desse "marketing"
fui eleito vítima vezes sem conta; e assim, impelido a levar para dentro
de minha própria casa revistas de gosto ambíguo, excepcionalmente
por razões solidárias ao esforço publicista do Sr. Antonio
.
Porém, ele morreu ano passado. E abruptamente substituído pelo
filho. Que desde então nos atende como se fossemos mutantes perdidos
ou meras entidades sem rosto e expressão tal a sua total displicência,
distancia e desprazer para este fundamental posto literário na nossa
comunidade. Lentamente, por consequência a esta atitude, um véu
frio e pesado ia cobrindo sem misericórdia a importância, e o relevo
intelectual, trazido pelo pai durante uma vida inteira àquele local.
Busquei no interior da algibeira "O Velho e o Mar" de Hemingway, absorvendo-me
instantaneamente na leitura.
Se a nossa leitura manter-se em dia não necessitamos usufruir do sabor
do tédio, estado este que a condição de velho nos força
a provar, enfrentar e frequentar de vez em quando.Com maestria os livros ensinam
a qualquer indivíduo o ofício do ócio no seu esplendor.
E uso esse princípio como que uma fórmula química a qual
recorro em situações como a desta manhã. Ao ver-me cercado
por vozes, odores, tossidos, reclamações e ruídos diversos
que misturados entre si formam uma massa sonora confusa e alucinante.
À semelhança das drogas na leitura vicio-me desprezando as forças
para voltar atrás, arrastado pela violência duma corrente, como
a de um rio revolto e lodoso a me sugar para o seu profundo leito interior,
longínquo, algures longe de tudo. Gozo o torpor, alucinando, a ler sem
culpas a qualquer hora e lugar.
"Vou-lhe comprar o jornal", irrompeu uma voz remotamente familiar
a resgatar o meu espírito do romance. "Não precisa estar
nesta fila pois vou ser atendido agora e faço questão em comprar
o seu jornal!", completou com entusiasmo. Sorri com agrado reconhecendo
a voz, enquanto o meu amigo de longa data Bonifácio Bonforte arrastava-me
pelo braço fila à fora. Sem balbuciar uma única sílaba
consenti o assédio com bom grado e, em seguida, já não
contendo a mudez, exclamei : "Só você mesmo para me salvar
dessa tragédia", acrescentando, "O que faz acordado a essas
horas? Nunca tive o privilégio de encontrá-lo às sete da manhã
na rua." Bonifácio meneou a cabeça encabulado porém
contente: "Mudei de hábitos Ricardo, agora sou um velho que almeja,
finalmente, o bem estar espiritual e corporal", e puxando-me para mais
perto de si, mas sem deixar de olhar ao redor, segredou aos meus ouvidos: "
Passo por um momento na minha vida que se faz necessário estar em boa
forma o mais rápido possível...", concordei com a cabeça,
cúmplice. Porém, surpreso com tal disposição.
O meu amigo Bonifácio Bonforte fora durante muitos anos um dos mais
famosos cantores líricos do País. Barítono, viveu grande
parte de sua vida profissional a cantar nos palcos da Europa amealhando fama
e fortuna. Conheci-o ainda cedo, no liceu, estudara francês e italiano
em aulas particulares, custeadas pela avó Italiana, estatuto que lhe
auferia um status acima de nós. A turma, na sua maioria, ridicularizava-o
à conta do seu porte diferente. Era grande e pançudo para um menino
da sua idade. Sendo um colega tímido e sem sucesso com as meninas, trocou-as,
prematuramente, pelo estudo. Tornou-se óptimo aluno. Raras as ocasiões
em que eu não recorria às suas explicações para
me safar dos exames de fim de ano lectivo. Mostrava-se sempre ao nosso dispor
e, com natural paciência, nos introduzia nas disciplinas mais difíceis.
E daí em diante nossa amizade perdurou por muitos anos. Só a distancia
fez-nos diferentes, mudou-se na adolescência para Itália. E lá
descobriu sua verdadeira paixão: A Ópera. Transformando-se num
cantor profissional em pouco tempo. E quando de visita ao nosso país
não perdia a oportunidade em procurar por nós, e não disfarçou
a surpresa quando soube, através de minhas filhas que eu me tornara Reitor
na Universidade.
Após a compra dos periódicos, que por sua vez fez-nos divergir
sobre os quais gostávamos de ler, pois o meu amigo apreciava o conservador
e eu o liberal, fomos em direcção à esplanada do café
com o passo acelerado a tentar fugir da chuva, que, entretanto, havia-se estabelecido
definitivamente no ambiente matinal.
Bonifácio irradiava felicidade e excitação por todos os
poros, logo que percebi isto, detive-me a reflectir se este fenómeno
não era fruto de algo novo na sua vida, pois ao lembrar o comentário
feito por ele próprio, referindo-se à emergente necessidade de
se colocar em forma espiritualmente e a nível corporal, desconfiei que
por ali desenvolvia-se alguma mudança, fomentada provavelmente por interferência
exterior.
Enquanto modificava a forma a qual o nosso café da manhã fora
disposto na mesa pelo empregado do café, com a rapidez de quem sabe o
que está a fazer, falava sem parar num crescente que parecia não
acabar retendo-se de vez em quando para tomar de volta a respiração,
mas isso fazia-o em intervalos não frequentes, o que me fez lembrar estar
a falar com uma pessoa que deste assunto percebia muitíssimo bem, afinal
era um cantor lírico, acostumado a trabalhar todos os músculos
responsáveis pela respiração !
Notava-se que estava contente por me ter encontrado as noticias por ele contadas
já eu as sabia através jornais, onde especulavam à volta
de sua aposentadoria, mas mesmo assim falava-as como se eu ainda não
as soubesse. Mas em meio às noticias triviais, sempre fazia um parênteses
como que uma observação extra a me informar que tinha algo de
especial a revelar-me, fazia-o muito rápido como uma vírgula entre
as conversas, desse jeito acreditava pois, que a minha curiosidade aumentasse
a cada intervenção do género. Questionou-me várias
vezes sobre como eu encarava a aposentadoria alegando sentir muitas coisas em
comum e, também, ao meu método de ver esta etapa de vida.
Depois de algum tempo sentados a conversar deduzi que a sua inicial excitação
diminuísse gradualmente, mas não era isso o que se lhe sucedia,
Bonifácio gesticulava ainda mais ao falar mesmo se o assunto não
necessitasse de ênfase alguma, pelo simples facto de não ter muita
importância, fazia-o na mesma. E o que piorava é que tratava-o
teatralmente abrindo os fortes braços sem cerimonias e, às vezes,
lançando-os a minha cara implorando por alguma compreensão. Eu
de vez em quando deitava um olhar à volta para certificar-me se estávamos
a ser assistidos por alguma plateia, felizmente a maioria dos clientes permanecia
absorta nos seus matutinos .
Com paciência esperei por uma chance para interrompe-lo na sua oratória,
que por ora fazia-se ouvir em toda a esplanada tal era a potência de sua
voz empostada, certo momento intervim com uma observação inútil
e, enquanto ele ria e troçava disso, adiantei-me a perguntar: "Bonifácio,
o que é que quer me dizer de tão importante ? já pela décima
vez que me avisa que tem algo para contar, o que é afinal?" perguntei-o
de uma vez por todas aproveitando para completar a sua chávena com um
pouco mais de chá de menta. Tomado de surpresa ele hesitou por uns segundos,
olhando em volta como se não tivesse resposta a dar ou apenas a ganhar
tempo suficiente para restabelecer-se do susto. Retornou os seus grandes e negros
olhos na minha direcção e curvando as costas sobre a mesa do café,
como se quisesse alcançar-me de onde estava, procurou chegar o mais perto
possível aos meus ouvidos, até que disse com voz de quem está
a contar um segredo: "Ricardo, estou apaixonado !" e voltou ao seu
lugar de origem sem antes olhar ao redor zeloso por algum motivo. "É
compreensível num ser humano, Bonifácio." Respondi-o e completei,
"Ainda bem que sente isso por alguém, é muito bom estar-se
apaixonado, faz bem à alma e ao corpo. Agora entendo melhor quando disse
que precisava de exercícios espirituais e corporais". Porém,
Bonifácio permanecia com a mesma expressão no rosto, com excepção
da parte superior aos olhos, suas sobrancelhas pareciam estar quase a se unir
uma à outra e as dobras da testa multiplicaram-se magicamente alterando
ainda mais o semblante tenso do amigo. "Ricardo, não é uma
paixão qualquer, tem suas dificuldades, suas inquietações
e particularidades. Para ser sincero com você, estou deveras preocupado
com isso e foi muito bom ter encontrado você aqui hoje, pois estou precisando
de um conselho de amigo e acho que aconteceu desabafar com a pessoa certa",
disse isso segurando nas minhas mãos e com ambas a tremer pensei de reflexo
se essa postura não era, senão, fruto de décadas de teatro.
"Bonifácio, acalme-se em primeiro lugar. O que tem de tão
especial estar apaixonado por uma mulher?", e de repente, veio-me à
cabeça uma alternativa que a principio parecia descabida, mas mesmo assim
arrisquei um palpite e completei, "a não ser que não seja
uma mulher a fonte da paixão !, é isso o que te incomoda?"
inquiri. "Ricardo! Você está senil? Depois de velho acha que
eu ia querer abordar rapazes??", explodiu num rompante e novamente abrindo
os braços largos e pesados, alguns dos clientes enfim notaram a sua enorme
presença, reconhecendo em seguida por quem se tratava o alarido. "Tornar-me
uma bicha velha e gorda?, francamente ! Claro que não é isso.
Nasci homem e morrerei do mesmo jeito!", com o dedo em riste tal e qual
um czar russo qualquer. Amenizando o estardalhaço tentei acalma-lo, "
Não Bonifácio, não precisa demonstrar esse espanto todo,
porque hoje em dia , nada mais normal do que um homem se apaixonar por outro,
foi só uma pergunta que fiz apenas tentando descobrir do que se trata
realmente." Reservei um momento, à espera de alguma reacção
dele, como não obtive nenhuma daí continuei: "Mas então,
o que é tão preocupante nesta sua paixão? Ela é
muito mais nova do que você ?, é isso?"
Apoiado nos cotovelos por sobre a mesa e com os nós dos dedos vermelhos,
tal a pressão a que eram submetidos pelo cruzar das mãos, Bonifácio
semicerrou os olhos em direcção ao chá que já deveria
estar frio e balbuciou algo incompreensível e débil como se falasse
de si para si. Após um momento ergueu o rosto e descruzou as mãos
pousando-as agora nas pernas. E disse: "Lembra-se da minha primeira mulher?
A Isadora, lembra-se? era uma Italiana de família tradicional, mecenas
de várias companhias de Ópera, catedrática, cultíssima
e de um bom gosto raro, e que Deus a tenha em paz..." disse-o com as lágrimas
a bailarem nos olhos.
"Deus não existe.", murmurei. "O que Ricardo?? O que
disse?" assustou-se com a minha interjeição, "Nada,
esqueça. Isso é outro assunto" e sem deixa-lo pensar disparei:
"O que tem a sua primeira mulher a ver com isso??" e ele voltou a
fitar o chá com o mesmo olhar melancólico, "Ricardo, lembra
da minha segunda mulher? A Tereza? Que era a bailarina mais cobiçada
por todas as companhias da Europa, que por minha culpa abandonou prematuramente
os palcos para cuidar do nosso filho, porque eu não queria deixa-lo a
cargo dos avós. Nunca havia conhecido uma pessoa tão determinada,
tão persistente. Foi ela que fez-me reciclar os exercícios nas
óperas, fez-me acreditar no meu valor e cobiçar outros papéis,
outros desafios. Ensinou-me mais sobre os clássicos do que qualquer professor
que alguma vez encontrei.", ele desabafava toda essa historia sem tirar
os olhos do chá, como se fosse vergonhoso falar de si próprio
a alguém, pelo menos era essa a impressão que deixava escapar.
"Mas ela, como a primeira, morreu antes de mim, infelizmente. E deixou-me
um filho que hoje me orgulho muito. Estou grato por isso e o homem que hoje
sou devo em grande parte à influencia desta maravilhosa mulher".
Testemunhei: "Sim Bonifácio, a Teresa foi uma pessoa importantíssima
para você, e, não só, para nós também. Ela
irradiava alegria e isso foi muito bom para todos, adorávamos a sua companhia.
Mas o que ela tem a ver com o nosso assunto actual?".
E como se não estivesse a escutar o que saía da minha boca, o
meu amigo olhava, a partir de agora, à frente de nós, adiante,
para o infinito. Produziu um leve tossido, elevando a mão à boca
e prosseguiu: " Lembra da Mafalda ? a minha terceira mulher?". "Ainda
bem que esse homem só teve três mulheres, senão não
sei a que horas eu sairia daqui", pensei comigo mesmo. "A Mafalda
tinha um grande defeito Ricardo, achava-se superior a tudo e todos, sentia-se
a dona da verdade, muito vaidosa com a inteligência que deus lhe havia
dado. Era sofisticada demais para a sua época, erudita em demasia, sem
nunca ter trabalhado na vida não entendia os desejos mais básicos
do ser humano. Casamos quando eu estava ainda gozava da fama e da fortuna, um
pouco para o final da minha carreira, mas mesmo assim, o glamour das óperas
era o ópio que a consumia. Nossa vida era em muitas vezes monótona
de tanta vaidade que eu tinha de suportar. Na verdade ela sabia muito bem o
que queria, e soube até o fim do nosso casamento usufruir do que o sucesso
tem de melhor: o brilho inflamado e pomposo do ego!".
"Bonifácio, não querendo interromper, mas já interrompendo:
O que tem a ver isso tudo que está a contar com a tua paixão de
hoje em dia? Sentes-te em dívida com as tuas ex-mulheres? Ou a traí-las
de alguma forma, é isso? Peço desculpas mas não estou a
perceber onde quer chegar". Bonifácio fitou o teto com invulgar
admiração pela brancura da luz que dali era reflectida agora pelo
sol, que por sua vez driblara algumas nuvens no céu e lançava
seus raios tímidos lentamente por cima de nós, puxou o ar para
si e iniciou a seguinte questão: "Ricardo, meu grande amigo: O que
você acha que estas três mulheres que fizeram parte da minha vida
tinham em comum?", e pousando novamente os olhos em mim terminou sem que
eu pudesse responde-lo, "Foram as três muito bem escolhidas, não
acha Ricardo? As três representavam o que eu achava que era o melhor para
mim; Bonitas, elegantes, de boas famílias, inteligentes, cultas, viajadas,
vaidosas, ricas por consequência e, mais que tudo: companheiras fiéis
!".
Enquanto ele falava, repousei os braços na cadeira, estiquei-me um pouco
para trás a fim de dar espaço às pernas, e desse modo poder
cruza-las pois a posição em que me encontrava tornara-se quase
insuportável perante a demora da conversa e, após me colocar confortável
novamente, interrompi-o de repente: " Ok Bonifácio, todas elas eram
uma dádiva da natureza, você realmente obteve sorte nas suas escolhas,
muita sorte, mas vamos tentar relacionar, mais uma vez, as suas antigas mulheres
com o nosso assunto em voga neste momento. O que tem uma coisa a ver com a outra?"
e acrescentei, " Tente ser mais abreviado a partir de agora, ok?".
Bonifácio olhou-me com um esgar de surpresa, como se desconfiasse da
minha boa vontade em ouvi-lo.
Demorou um pouco de tempo para voltar ao assunto, talvez a raciocinar sobre
o que eu acabara de dizer, ou demonstrar. Mas por fim acabou desabafando o que
lhe estava a angustiar havia tanto tempo, ao mesmo instante em que driblava
as lágrimas evitando que estas lhe escorressem pelo rosto abaixo: "Ricardo
estou perdidamente apaixonado pela minha lavadeira!" acrescentando com
as últimas forças, que ainda podia contar, antes de desabar em
prantos: "E ela é negra, pobre, ignorante, mora na favela do Vidigal..."
e já em choro compulsivo, ignorando os presentes, à procura de
um lenço nos bolsos, a soluçar, intercalou com mais informações,
"Eu a contratei porque não suporto ver as minhas roupas a rodopiar
dentro de uma máquina que não distingue marcas e qualidades. Gosto
que a minha roupa seja lavada à mão, com muito cuidado. Você
sabe disso, eu sempre fui assim. E a morar sozinho tive de me relacionar mais
de perto com a empregada, disse-lhe que seria melhor se ela viesse à
minha casa a fim de passar a roupa, assim poupava a energia da sua própria
casa".
Contudo, já estava mais calmo. Eu , impotente em situações
dessas, não conseguia determinar o que era melhor fazer para tentar ajudar,
limitei-me a segurar a sua mão, sem antes notar , ao toque , o quanto
ela era grande, gorda e pesada. "Olhe, Ricardo, até o sabão
em pó que lhe forneço é importado, "Fairy" da
Bélgica. O ferro para que ela passe as roupas fiz eu questão de
comprar o mais caro e passamos uma tarde inteira a ler o manual, para usufruir
de todos os recursos do aparelho. E foi nessa precisa tarde em que eu simpatizei
com aquela mulher... Ricardo, não sei o que fazer...ajude-me!!"
e de volta ao choro Bonifácio agarrou-me com mais força dessa
vez, sacudindo o seu corpo e o meu. "Tenha mais calma Bonifácio."
Adverti-o e, tentando que ele olhasse nos meus olhos disse-lhe: " Olhe,
se você sente isso por ela, não tem porque se reprimir. Eu sei
perfeitamente o que está pensando em relação à sociedade
que gira em volta de si. Mas tem que ser sempre você em primeiro lugar
Bonifácio, não adianta em nada ficar a pensar no que os outros
vão dizer. Se você é correspondido no amor que sente por
ela, o que presumo ser o normal, pois você é um homem muitíssimo
interessante, educado e sabe, como nenhum outro, a maneira correcta a tratar
uma mulher. Aliás, todos nós sabemos disso", disse-lhe isso
de perto, fazendo-o, mais uma vez curvar as costas em minha direcção.
Bonifácio ouvia-me atentamente, como um menino que necessita de informações
preciosas para o primeiro encontro amoroso. "Mas Ricardo, existe uma coisa
que está a preocupar-me mais ainda: eu nunca me senti atraído
por relações inter-raciais, durante a minha vida inteira nunca
passou pela minha cabeça vir a atrair-me por uma negra, apesar dela ser
mulata, mas é da raça negra na mesma. E isso está fazendo
com que eu, ao passar dos dias, adie a nossa consumação carnal,
está a me entender agora?", disse-o sem olhar para lado algum, apenas
para baixo, como se acabasse de revelar uma heresia qualquer, e à espera
de alguma repreensão de minha parte. Afastei-me um pouco, retornando
ao encosto almofadado da minha cadeira, mas sem demover os olhos de sua rosada
face, que nesse momento parecia mais inchada do que o normal, tomei alguns segundos
como recurso para uma breve meditação, lembrei-me de como prolongar
esse truque ao chamar o empregado do café, instruindo-o a trazer mais
uma dose de pãezinhos de queijo e, em simultâneo, lançando
meu olhar ao relógio de parede que marcava, com seus ponteiros em forma
de flechas indígenas, 9hs em ponto.
Ao encontrar novamente os olhos de Bonifácio, notei que eles me olhavam
do mesmo jeito, fixos em mim, sem se moverem a lado nenhum, perdidos no tempo
ao desprezarem a interrupção feita há instantes, era como
se o mundo não fosse suficientemente ruidoso e movimentado para o demover
da sua suspensão hipnótica.
" Está bem Bonifácio, vou contar para você uma história
que se passou comigo há muitos anos.", e quem agora curvava todo
o corpo era eu, chegando mais depressa aos seu ouvidos - mais rápido
do que julgava capaz - e , falei-lhe muito calmamente, num tom quase ameaçador:
"Mas se você reproduzir o que lhe vou revelar, em hipótese
alguma volto a ser seu amigo, e, sempre, até morrer vou negar tal história,
tratando-a sim, como uma calúnia das mais descabidas. E não precisa
concordar com essas condições, pois vou contar na mesma, parto
do princípio que a partir de agora você está sob juramento."
Voltei à cadeira com um leve sorriso na boca, satisfeito com a sua mudez
e total cumplicidade.
Bonifácio puxou a cadeira para que esta encaixasse totalmente no rotundo
corpanzil ficando, desse jeito, encurralado entre a cadeira e a mesa. Sua barriga
pendia para baixo, de onde eu estava não a via, sobrando o peito e os
braços que debruçados sobre a mesa formavam, ambos, uma posição
de escuta totalmente concentrados no que se ia desenrolar a partir daquele momento.
Foi então que dei início, em voz baixa e pausada, ao meu relato:
"Certa vez, por intermédio de um intercâmbio entre as Universidades
Federais de Caracas, na Venezuela, e do Rio de Janeiro, fui obrigado a me deslocar
àquele país. Um pouco a contragosto, é verdade, devido
o nascimento de minha segunda filha ser ainda muito recente. Ministrei um curso
de Psicologia durante um ano e meio naquela capital. E como passava a semana
inteira na Universidade, todos os dias dando aulas, dedicava os fins de semana
ao descanso irrestrito.
Caracas é uma cidade espectacular e o seu povo hospitaleiro, carinhoso
deixava-me menos ansioso em retornar à casa, pelo menos amenizava a adaptação
forçada a que havia sido submetido. Como no campus da Universidade, os
"pisos" - era dessa forma que eles se referiam aos apartamentos -
estavam já todos ocupados por outros professores, a direcção
resolveu alugar, por toda a minha temporada no país, um pequeno e confortável
apartamento mesmo junto ao complexo universitário.
Esta acomodação era gerenciada, ao exemplo de outras no mesmo
edifício de três andares, por uma senhora chamada Dolores. Uma
mulata extravagante para a época, pelo menos era assim que eu a julgava.
Porém, tempos depois cheguei à conclusão que naquela sociedade
a sua postura não era em nada extravagante, porque ao longo dos meses
fui me apercebendo que a extravagancia a que me reportava, não era senão
uma forma de expressão usada por todos no país. Era normalíssimo.
Contudo, suas roupas justíssimas, as unhas pintadas de vermelho garrido
e enormes, a maquilhagem a transformar-lhe a cara de um jeito que mais lembrava
uma actriz de cinema mexicano; os cabelos eram longos e negros, espessos e que
brilhavam extraordinariamente, tanto de dia ou à noite, faziam-na aos
meus olhos numa autentica personagem extraída dos filmes de Visconti,
"em cores". Todos os dias exibia um par de óculos diferente,
cada um mais espalhafatoso que o anterior. Nunca a vi senão em saltos
altos, muito altos e se equilibrava naturalmente ao passar pelos corredores
e escadas. Sempre com muita pressa e atormentada com os inquilinos, que estavam
sempre a pedir por socorro. Ela era uma espécie de faz tudo no prédio,
quando não entendia do assunto, o que era raro, pedia auxilio ao porteiro
vizinho.
Tratava das minhas roupas de cama e também das pessoais, limpava duas
vezes por semana o apartamento, só não organizava a limpeza do
meu quarto porque assim o havia determinado. De resto, estava sempre de bom
humor. Mantinha o hábito de improvisar algum prato, da culinária
local, para a minha aprovação. E não eram raras as vezes
que me surpreendia deixando uma ceia pronta em cima da mesa, antes de abandonar
o apartamento ao fim da tarde, depois da lida da casa.
Um certo dia, presumo que seria um sábado, cheguei mais cedo da universidade
e encontrei-a a preparar um bolo de amêndoas e mel na minha cozinha, achei
muito simpático de sua parte e até fiz uma brincadeira qualquer
para tentar agrada-la na amabilidade que lhe era natural. E então era
o estopim para o falatório engrenar, Dolores falava pelos cotovelos e
sempre a soltar uns gritinhos de vez em quando, como se quisesse temperar a
conversa que estabelecia animadamente. Polido, pedi licença e fui tomar
um duche frio para espantar o calor húmido e insuportável que
aterrorizava a todos naquela cidade. Momentos seguiram e o telefone tocou. Dolores,
num impulso, atendeu-o, elevando o auscultador ao ouvido e falando à
sua maneira. Era a minha mulher. Disse-lhe então que eu estava tomando
banho e que não podia atender no momento. Imagine só como isso
repercutiu no Brasil ! minha mulher ficou furiosa e passei o fim de semana a
telefonar dezenas de vezes, tentando dismistificar o ocorrido.
Enfim, vou mais adiante para tentar encurtar o caso: No fim de semana seguinte
aceitei um convite, muito agradável feito por um casal de alunos, para
assistirmos num restaurante local uma apresentação de uma colega
deles e, também, aluna minha, a recitar poemas de autores Latino Americanos
e que era, em complemento, seguido por um show do conjunto da casa. Seria a
primeira vez a sair à noite e a ideia me deixou bastante contente e entusiasmado.
A noite correu como eu previra, pelo menos o inicio dela ! O restaurante era
fabuloso, podia-se ir à pé da minha casa até ele, era grande
e decorado com motivos alusivos àquela cultura, no centro do salão
havia montado um pequeno palco em forma de lua, equipado com alguns aparelhos
e instrumentos musicais, o primeiro deles a sobressair aos meus olhos foi o
piano de meia cauda, que ocupava quase a totalidade do espaço exíguo.
Deu-se, então, a apresentação a qual fomos convidados
com três pessoas a recitar, intercaladas, poemas e prosas de alguns dos
mais conhecidos poetas da Venezuela e do resto da América Latina, e o
poeta que escolheram para representar o Brasil, neste sarau, foi ninguém
menos do que Vinícius de Moraes, adorei !
Jantamos frutos do mar, cozinhados à base de um tempero estranhíssimo,
mas que resultava soberbamente. E depois disso tudo, as luzes foram reduzidas,
diminuindo o seu calor e deixando a sala envolta numa penumbra, só atravessada
pelo lume de algumas velas, ainda acesas em pontos estratégicos, a orientar
os empregados na sua alucinante locomoção entre as mesas. O pianista,
um negro de corpo delgado e bem parecido, e que sustentava no alto da cabeça
um chapéu do tipo "Panamá", pôs-se a debitar as
primeiras notas de uma canção, que alcançaram imediata
resposta na minha memória, porém eu não possuía
suficiente ouvido musical para identificar o seu título. Entretanto,
nesse exacto instante emergia, não sei de onde, um vulto feminino ao
palco. Tomando nas mãos o microfone, com subtil delicadeza, pronunciou
com perfeita afinação as primeiras frases da belíssima
canção.
A cantora era alta, adornada por um vestido longo, púrpuro, feito a
partir de um tecido muito parecido com o cetim, tão colado ao seu corpo
que perto das costuras viam-se as dobrinhas feitas sob a pressão exercida
pela pele. Notei que ela usava luvas vermelhas que combinavam com o resto de
sua indumentária. E um véu fino e cinzento filtrava o seu rosto
face à luz que agora se lhe incidia por todo o corpo. Ela não
se movia. Apenas a boca, aberta em notas mais altas e fechada nos sussurros,
é que concebia o único movimento àquele belo corpo feminino.
Agora eu já reconhecia a canção apesar da versão
em castelhano, a qual imprimia mais sentimento à letra da musica ao meu
ver, ela interpretava uma canção chamada "Crying" de
Roy Orbinson, um dos meus ídolos.
Admirava a sua anca a tombar vagarosamente à direita, e retornar com
a mesma velocidade e fleuma no sentido oposto, como se embalada pela força
que a canção exercia sobre ela. Deixou-se curvar para trás
ao entoar uma nota mais grave e, tomando o microfone com a outra mão,
arqueou-se ao contrário, fazendo com que o seu busto se pronunciasse
à frente de todos na sala e exibindo os seios, que não faziam
mais nada do que estarem ali presos entre duas fitas paralelas percorridas ao
longo do peito, deixando por ver alguns centímetros de espaço
vazio às nossas fantasias. Sua voz era quente, tórrida, às
vezes límpida e de vez em quando, atendendo à interpretação,
rasgava-se rouca e pesada. Do que se podia ver da sua pele - pois o vestido
longo cobria-lhe quase todo o corpo - era somente a cor dela: Ocre. Porém,
num tom mais ameno, morena, avermelhada. Pensei comigo mesmo se esta tonalidade
não era produzida pela ilusão que as luzes do palco, projectadas
nos artistas, provocam na plateia.
Em determinados momentos, ao abrir a boca um pouquinho a mais, seus dentes
grandes e muito bem ordenados, reluziam um brilho que completava maravilhosamente
o desenho de seus lábios carnudos e sensuais. E então, ao meio
de sua memorável interpretação, decidiu livrar-se do véu,
elevando calmamente os dois braços ao rosto, enquanto cantava uma área
mais terna da canção. Tocando de leve no véu, remeteu-o
para trás do pequeno coque, que atava todo o seu cabelo, permitindo ao
público um regalo à admiração dos contornos da sua
beleza facial. Meu corpo contraiu-se instantaneamente em resposta à surpresa
que o arrebatou ao constatar de quem se tratava a cantora: Dolores!
Meus dedos colaram rente à minha boca, tentando reprimir de alguma forma
um som qualquer que dali pudesse se libertar tamanho o meu espanto, no exacto
momento em que ela cantava erguendo os olhos em minha direcção.
Permaneci em estado de choque mas de seguida demovi a tensão, e por fim
me refiz, passando a admira-la ainda mais a partir daquele ponto de viragem.
Seguiu-se a segunda canção, antevendo um repertório romântico
e melancólico, estendendo-se por mais meia hora. Tempo do qual beneficiei
para mudar as lentes que, até então, utilizava na minha cabeça
para observar a Dolores que conhecia - sua sensualidade ao cantar arrebatou
todos ao meu lado, inclusive as meninas comentaram rapidamente que até
a elas havia tocado - Aos bocados tentava, comigo mesmo, aproximar um paralelo
entre a serviçal Dolores, que equilibrando-se nos saltos altos metia-se
no meio de pó e sujidade, bailando entre a cozinha, quartos e outras
dependências, levando até esses a sua correcção e
asseio, à Dolores que se erguia à minha frente, ali mesmo no palco,
envolta em glamour. Que desafiava os nossos sentidos com o seu garbo e atentando
aos instintos de qualquer um de nós.
Gradualmente fui-me repararando atraído por aquela mulher, esquecendo
que a conhecia de outros recantos. E lá do alto do palco, não
sei se fazia-o de propósito, o seu olhar quase a todo instante ia de
encontro ao meu. Ela não esboçava nenhuma simpatia, animo ou cumplicidade
ao fitar-me, simplesmente observava-me de acordo com o baile do seu canto, ao
qual, quase que por travessura, levava-a até a minha direcção
inúmeras vezes. Adorava vê-la cantar, descobri isso em pouquíssimo
tempo, fiz-me o seu maior fã, como se já ali estivesse há
anos ouvindo-a. De repente a apresentação terminou, supus que
sim ou, pelo menos, a primeira parte. Ela agradeceu a todos os ouvintes e, após
à ovação, segredou algo aos ouvidos do pianista, deixando-o
com um sorriso maroto entre os lábios. E assim que se livrou do fio do
microfone tomou o rumo de nossa mesa, sorrindo sem descanso e não desviando
os olhos da minha direção.
Depois das apresentações mútuas que produziram divertimento
geral, pois meus alunos surpreenderam-se ao perceberem que eu já a conhecia,
deixei de lado a origem da ligação entre nós por conta
da excitação do momento. Convidei-a para se juntar ao nosso grupo
e desatamos a conversar e não nos furtando de tecer largos elogios à
sua belíssima voz e, também, ao repertório escolhido por
ela para aquela noite. Aproveitando, também, para lhe revelar que cantara
uma das minhas preferidas de Roy Orbinson, e ainda mais bonita na versão
em castelhano.
De acordo com a nova disposição feita na nossa mesa, Dolores
calhou sentar ao meu lado, e toda vez que fazia um comentário mais divertido
acerca de qualquer assunto pousava delicadamente a sua mão por sobre
a minha fazendo-me sentir, a cada vez repetida, um arrepio ténue e agradável
que circulava por um segundo todo o meu corpo. Experimentava sensações
por aquela mulher que jamais sonhara, sobretudo porque me fazia um pouco de
incomodo quando, sem controle, imagens de minha família e mulher passavam
rente aos meus olhos num rompante, seguido de flashs esquisitos, como que a
ilustrar a censura que me era imposta perante os meus idílios em torno
da mulata Dolores.
A noite fora memorável em todos os aspectos e deixamo-nos ficar até
ao fecho do restaurante. Nosso grupo se dispersou após as despedidas,
mas fiquei à espera de Dolores no intuito de acompanha-la até
à sua casa, situada no edifício contíguo ao meu.
Fomos caminhando embalados ainda pelo animo da noite que nesta altura já
deixara de ser calorenta, passando a nos soprar uma brisa fresca e estimulante.
Deu-me a mão sem cerimonias, entrelaçando os dedos vagarosamente
aos meus, e que de vez em quando me puxavam para o centro do nosso equilíbrio,
como se quisessem dizer alguma coisa com isso.
Tenso, apesar do estado dormente e espontâneo que o vinho branco nos
fornece com o seu álcool, evitava a todo custo olha-la de perto, apenas
respondia alegremente às suas perguntas tolas e brincalhonas, mas que
continham entre si um teor sedutor e provocante na forma a qual eram formuladas,
que me faziam raciocinar e não querer raciocinar ao mesmo tempo.
Era óbvio que estávamos tocados pelo vinho, consumido sem economias,
e era uma sensação aprazível estar ao lado de uma mulher
interessante e diferente, que se exprimia usando outro idioma que não
o nosso. Sensual ao entoar frases que mereciam ir acabando aos poucos, roucamente,
sem a necessidade de serem lúcidas, formais ou normais.
Deixamo-nos ficar por um tempo indeterminado ao relento sentados no banco do
jardim que marginava todo o condomínio, já não se via ninguém
por perto ou janelas abertas e iluminadas a espreitar qualquer coisa que por
ali passasse, apenas se ouvia o zumbido muito fraco da estática de um
rádio qualquer ligado e esquecido algures. Acabamos por falar de música
e, surpreso, descobri que ela detinha informações curiosas sobre
a musica popular brasileira, seus autores e intérpretes. Era fã
de João Gilberto, por quem eu nutria especial antipatia, mas não
a quis provocar e continuei sorrindo sem nenhuma vergonha de estar ali confortável,
mirando o céu negro e silencioso, tendo ao lado uma mulher a falar coisas
agradáveis ao ouvido. Disse-me, encostando com carinho a sua cabeça
ao meu ombro, que ao entoar a primeira canção no espectáculo
dedicou-a intimamente a mim. Já havia me visto, momentos antes, na plateia
e por esse motivo fez questão de usar o véu a tapar-lhe o rosto.
Agradeci-lhe o gesto dizendo que a canção tocava-me directo lá
no fundo do coração e por alguma coincidência, que foge
a qualquer controle, estivemos em sintonia por alguns minutos mágicos.
Então Dolores, com um movimento cauteloso, contornou com os braços
o meu peito e as costas, apertou-me junto a si dizendo com a voz tremula, e
insegura, que queria cantar todas as canções que pudesse lembrar
naquele momento só para mim. Respondi-lhe que ouviria todas quantas elas
fossem e arqueei o braço envolvendo-a por inteiro, e ficamos para ali
parados por instantes a degustar a prosa e o estado contemplativo oferecido,
num ápice, às nossas vidas comuns e paradoxais.
À revelia de quaisquer estímulos cerebrais nossos corpos iam
se movendo, lentamente e prometidos, à procura de algo. Mas, enquanto
se exploravam mutuamente e silenciosos, as nossas bocas eram mais hábeis
encontrando-se maliciosamente na escuridão maciça que aquela noite
reservara aos nossos nervos. Um beijo profundo.
O odor da sua pele, intenso e inebriante, circulava à minha volta tal
e qual um almíscar selvagem entorpecendo os meus sentidos em pequenas
doses infernais. Beijava-a com intensidade e entusiasmo, respondendo à
altura seus avanços para dentro de mim, querendo-a, retesando os músculos
cada vez mais, desconhecendo por completo onde iríamos vaguear à
mercê desse transe e qual seria o nosso destino, traçado por essa
força extraordinária a qual estávamos presos.
A dada altura já não respondíamos a mais nada a nenhum
chamado à luz da razão ou à racionalidade. Ela se livrara
dos adornos, que davam protecção ao seu corpo, não podendo
arrancar mais nada a não ser o resto que lhe cobria o essencial perante
a nudez. Foi então num único salto que ergueu o seu corpo moreno
levando-me consigo até onde tinha forças e, de pé, continuamos
agarrados um ao outro sem mais um único passo à frente para conquistar.
A sua pele agora brilhava com uma intensidade bruta, contrariando a noite sem
lua, noite escura como o fundo de um túnel antigo e ermo.
Aos poucos foi nos conduzindo para longe de onde estávamos em direcção
ao seu apartamento que se encontrava mais adiante do meu. Estaquei hirto defronte
à entrada da minha casa, ela hesitou por momentos se encostando à
parede, sem largar minhas mãos puxou-me novamente a si, ela respirava
a custo e a cabeça arrastava na tinta da parede em várias direcções
a procurar algum alento aos seus desejos, encostei minha cabeça ao seu
peito sem dar conta do que fazia, agora a sua cabeça remetia para frente
como se quisesse me tocar ou morder.
Acabamos por invadir o meu apartamento indo directos para o quarto, fechei
a porta à chave - sem saber ao certo por que o fazia deste modo - e não
tive tempo de acender uma luz sequer ou qualquer outra coisa que não
fizesse parte do nosso ato. A única espécie de recordação
que ainda tive tempo de registrar, antes de ser tragado por aquela mulher, foi
o seu olhar fixo e arregalado por cima dos meus ombros, certificando-se de que
não havia mais nada superior a nós no quarto; sua face brilhava
em lágrimas, arquejando e escancarando a boca o mais aberto que suportava
e não descansou enquanto não chegou totalmente ao cimo de tudo,
ao patamar do delírio. Demos luta ao nosso universo demente e particular
na noite quente.
No dia seguinte acordei sem a companhia de Dolores. Ao tomar o banho julguei
ouvir o telefone a tocar e logo a seguir o atendedor automático a maquinar
suas operações de gravação. A mensagem deixada por
Dolores descrevia um assunto delicado, a que ela própria tratava com
bastante zelo: sua filha, que sofria de uma doença ainda sem diagnóstico,
enfraquecera muito nos três últimos dias levando os seus pais a
chama-la de urgência à sua cidade natal, ou "pueblo"
que era como se referiam a essas terras na Venezuela. Portanto, ela ligava da
rodoviária, e por fim, não conseguindo reprimir os soluços
do próprio choro, terminou a mensagem a dizer que se voltasse em breve
seria para repetir a frase que me sussurrou ao ouvido por toda a noite: "Ata-me
Ricardo!" e sem se despedir desligou.
Até ao fim da minha estadia naquele país não pensei em
outra coisa senão nela. Questionei o porteiro vizinho se conhecia a cidade
a qual ela era natural, pois queria enviar-lhe uma carta. Ele, com um ar grosseiro
e petulante deu de ombros e olhando-me por cima dos mesmos, atirou ao ar que
não adiantaria nada a minha carta pois Dolores nunca iria responder-me
pelo simples fato dela não saber ler e nem escrever."
Os ponteiros em forma de flechas indígenas giraram mais do que eu queria
acreditar, marcavam 11 horas em ponto.
Bonifácio mantinha a mesma postura inicial, em detrimento ao seu semblante
actual: olhava-me apertando os lábios, fazendo sumir um deles para dentro
da boca. As sobrancelhas erguiam-se amarrotadas e húmidas, como se a
sua testa tivesse sido transformada numa pequena cascata de gotas de suor. Com
essa expressão parecia não acreditar que a minha historia havia
terminado. Acordei-o: "Bonifácio! Diga algo, contei essa historia
secreta, que agora não nos é mais secreta, para dar um exemplo
a você de que mesmo sendo uma mulher que não sabe escrever e nem
ler, não abdica de sentimentos e da dignidade em mantê-los vivos, sem
dar importância a credos, títulos ou extracto social. Isso não
é um sermão, não é nada disso. Quero que você
saiba que existe uma pessoa que gosta de você e que está a sua
espera para partilhar alguma coisa nessa vida, sendo ela quem for."
Bonifácio olhou-me com aquiescência e remeteu a sua mão
direita em minha direcção, apertei-a olhando-o mais uma vez firmemente.
"Bonifácio, corra! Ela está a sua espera homem!". Ele
soltou um grito visceral e estrondoso, que abalou a todos na esquina do café,
fazendo-me saltar da cadeira num espanto sem igual. Bonifácio prendeu-me
nos braços beijando a minha face e dizendo que não podia esperar
nem mais um segundo sem declarar o seu amor àquela lavadeira!
Enquanto corria a passos largos pelo passeio lançava olhares rápidos
e alegres na direcção da esplanada como se pretendesse constatar
ainda a minha presença.
"Francamente não sei como as horas conseguem ser tão curtas
nas manhãs de Sexta-feira," pensei comigo mesmo, "também
pudera, fui inventar uma história longa demais. Afinal onde fui desembrulhar
ideias para tamanha fábula ??!!".
Pedi ao empregado meia porção de pãezinhos de queijo -
bem cozidos ! - observando simultaneamente que o Sol vencera a batalha lá
por cima e triunfava, pelo menos por mais algum período, iluminando com
força aquele espaço de vida. " O que um amigo não
faz por outro, senão encoraja-lo às mulheres !", brindei
ao vento.
(conto escrito em Abril de 2002)