A beleza atribuída àquela mulher transgredia de tal forma as normas
que pairava no ar a sensação, medida num abalo, de que o mundo
à sua volta girava em permanente dívida para consigo, tal o impacto
fascinante dali surgido. Na sua marcha deambulante sob tensão impulsiva
e enérgica, singrando entre a multidão submissa, emanando a partir
daquele corpo uma superioridade inata e impune, insurgente sem medidas, sem
paralelo chamava a si toda atenção sem rodeios. Ao todo era como
se algo, no vasto ambiente circundante perdesse o sentido e constância
na ausência dessa mulher. Era como se dela fosse-nos suspenso, citando
outro exemplo: a escalada do tempo ! do sol ! e da luz necessária do
elemento para se caminhar nas manhãs e vislumbrar o dia; do prazer resultante
em acariciar os nossos pares, da manutenção das rotinas e, a partir
delas, a conformidade da vida quotidiana.
E sem a criatura haveria, portanto, a escuridão, a inexactidão,
o descalabro dos dias inúteis trocados, senão, pelo verdadeiro
caos; as dúvidas e a angustiante luta sem ideais. E daí o declínio.
A total ausência da cor, do brilho, da perenidade na efeméride,
do senso comum ou, ainda pior, da falta dele. Essa discrepância era medida
no resultado da distancia que nos separava de tão raro e magnífico
ser. É verdade, uma autentica confrontação, tenho dito
! E a qual nos fora imposta assim, sem avisos, sob jugo oculto e superior, perante
esta presença inebriante e avassaladora; uma obra divinal, narcisista
e dionisíaca. Intocável.
A mulher parecia instruída para tal, sabia-o desde à partida
quiçá na urbe ou no campo, nos mares, nas selvas ou até
no cosmos; quer onde fosse a fonte de tamanha aparição imperiosa!
Ela sabia-o. Por isso julgava-se destemida e implacável. Levava consigo
a carga subtil da dominação, tinha toda razão a mulher. Ela: a interpretação ambulante da criação em estado
nobre, a pureza incarnada num só habitáculo grandioso; e de tez
bela !
Indispensável, e importa divulgar, a ligação admirável
- pelo menos à nível espiritual - no que diz respeito a esses
seres raros com a "Sorte". Eram, pois, definitivamente elegidos
e protegidos por esta entidade obscura, caprichosa e imprevisível. Outrora,
mas não muito distante, fora inegável a sucessão quase
que interminável de ambientes, manifestações, festas, labor,
missas e até revoluções - por ordem quer divina quer por
alguma dialéctica lúdica sobre a qual, neste momento, não
encontro explicação - a comoverem-se por criaturas dessas e, sem
mais e nem menos, moldando-se à sua candura e magnetismo virem a espalhar
na torrente contínua da evolução, e através
dela, a felicidade , a prosperidade, a fecundidade; por todas as civilizações
esses seres raros encontravam abrigo e enfeitiçavam-nas e moldavam-nas
à bel prazer ! Persiste, contudo, o enigmático teor deste curioso
fenómeno. Há de se dizer muito mais no futuro. Há muito
que aviso.
A riqueza faz desdém do acaso mas a pobreza venera-o. Necessita dele
enquanto confusa e, com subserviente respeito, chamando-lhe "Destino".
Por que então não estamos todos em condições idênticas
? Por que não somos todos tão belos ? Por que não somos
todos afortunados com a perfeição plástica e com a pompa
do destino rico ? O destino destes seres estão marcados!
E onde está avaliado o nosso? O critério é incorruptível?
Impassível ante o meu suborno? O critério anda pelas mãos
de superioridade divina ou não? Que farsa!
Ela caminhava urgente entre a multidão. Todos reparavam. Os homens se
apaixonavam enquanto as outras julgavam-na sob crivo acusando a discriminação
da sua beleza virginal - eu testemunhei esse julgamento - Vestia-se de negro,
na religião dela era assim, encobria-se algo branco por debaixo das vestes
longas. O rosto era ornado com tecido suave, e sob medida, dando um contorno
exacto à sua face saudável e rosácea. Levava sobre o peito
a cruz pendente do seu amante. Amava-o com sofreguidão mas sem a gula.
No entanto, amavam-na com gula ( eu, pelo menos).
Saltou para o templo dela ( o refúgio). É lá que se despe,
eu sei. Na nave deles. E ora naquele altar, ainda por cima, com cega paixão
e cúmplice satisfação.