A Garganta da Serpente

Werner Wellgs

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" Ela "

(Werner Wellgs)

A beleza atribuída àquela mulher transgredia de tal forma as normas que pairava no ar a sensação, medida num abalo, de que o mundo à sua volta girava em permanente dívida para consigo, tal o impacto fascinante dali surgido. Na sua marcha deambulante sob tensão impulsiva e enérgica, singrando entre a multidão submissa, emanando a partir daquele corpo uma superioridade inata e impune, insurgente sem medidas, sem paralelo chamava a si toda atenção sem rodeios. Ao todo era como se algo, no vasto ambiente circundante perdesse o sentido e constância na ausência dessa mulher. Era como se dela fosse-nos suspenso, citando outro exemplo: a escalada do tempo ! do sol ! e da luz necessária do elemento para se caminhar nas manhãs e vislumbrar o dia; do prazer resultante em acariciar os nossos pares, da manutenção das rotinas e, a partir delas, a conformidade da vida quotidiana.

E sem a criatura haveria, portanto, a escuridão, a inexactidão, o descalabro dos dias inúteis trocados, senão, pelo verdadeiro caos; as dúvidas e a angustiante luta sem ideais. E daí o declínio. A total ausência da cor, do brilho, da perenidade na efeméride, do senso comum ou, ainda pior, da falta dele. Essa discrepância era medida no resultado da distancia que nos separava de tão raro e magnífico ser. É verdade, uma autentica confrontação, tenho dito ! E a qual nos fora imposta assim, sem avisos, sob jugo oculto e superior, perante esta presença inebriante e avassaladora; uma obra divinal, narcisista e dionisíaca. Intocável.

A mulher parecia instruída para tal, sabia-o desde à partida quiçá na urbe ou no campo, nos mares, nas selvas ou até no cosmos; quer onde fosse a fonte de tamanha aparição imperiosa! Ela sabia-o. Por isso julgava-se destemida e implacável. Levava consigo a carga subtil da dominação, tinha toda razão a mulher. Ela: a interpretação ambulante da criação em estado nobre, a pureza incarnada num só habitáculo grandioso; e de tez bela !

Indispensável, e importa divulgar, a ligação admirável - pelo menos à nível espiritual - no que diz respeito a esses seres raros com a "Sorte". Eram, pois, definitivamente elegidos e protegidos por esta entidade obscura, caprichosa e imprevisível. Outrora, mas não muito distante, fora inegável a sucessão quase que interminável de ambientes, manifestações, festas, labor, missas e até revoluções - por ordem quer divina quer por alguma dialéctica lúdica sobre a qual, neste momento, não encontro explicação - a comoverem-se por criaturas dessas e, sem mais e nem menos, moldando-se à sua candura e magnetismo virem a espalhar na torrente contínua da evolução, e através dela, a felicidade , a prosperidade, a fecundidade; por todas as civilizações esses seres raros encontravam abrigo e enfeitiçavam-nas e moldavam-nas à bel prazer ! Persiste, contudo, o enigmático teor deste curioso fenómeno. Há de se dizer muito mais no futuro. Há muito que aviso.

A riqueza faz desdém do acaso mas a pobreza venera-o. Necessita dele enquanto confusa e, com subserviente respeito, chamando-lhe "Destino". Por que então não estamos todos em condições idênticas ? Por que não somos todos tão belos ? Por que não somos todos afortunados com a perfeição plástica e com a pompa do destino rico ? O destino destes seres estão marcados! E onde está avaliado o nosso? O critério é incorruptível? Impassível ante o meu suborno? O critério anda pelas mãos de superioridade divina ou não? Que farsa!

Ela caminhava urgente entre a multidão. Todos reparavam. Os homens se apaixonavam enquanto as outras julgavam-na sob crivo acusando a discriminação da sua beleza virginal - eu testemunhei esse julgamento - Vestia-se de negro, na religião dela era assim, encobria-se algo branco por debaixo das vestes longas. O rosto era ornado com tecido suave, e sob medida, dando um contorno exacto à sua face saudável e rosácea. Levava sobre o peito a cruz pendente do seu amante. Amava-o com sofreguidão mas sem a gula. No entanto, amavam-na com gula ( eu, pelo menos).

Saltou para o templo dela ( o refúgio). É lá que se despe, eu sei. Na nave deles. E ora naquele altar, ainda por cima, com cega paixão e cúmplice satisfação.

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