A Garganta da Serpente

Werner Wellgs

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O Crime de Elsa

(Werner Wellgs)

"Os apaixonados são seres perigosos." W.W.

Coube ao oficial de serviço avaliar o sucedido. O carro havia sido destruído apenas parcialmente. Todavia, mediante as parcas provas evidenciais recolhidas na cena do acidente impossível seria, de facto, avançar qualquer prognóstico perante o único jornalista ali presente a inquirir, impaciente e tenaz, acerca do assunto. No entanto, se mesmo assim o fizesse provavelmente a seguradora poderia se lhe insurgir ao meio da noite, privando-o do sossego, para ouvir-lhe as satisfações. Portanto, permaneceu em silencio sobre a matéria atribuindo sua momentânea mudez à sequela causada pelo cansaço acumulado por um fim de semana chuvoso e agitado.

A sala oval, que antecede ao ultimo corredor do pavimento reservado à morgue, fora o local escolhido por eles e onde se improvisara uma reunião com a imprensa. O jornalista fingiu acreditar no que acabara de ouvir e foi-se embora amuado, sem antes solicitar uma apreciação ao cadáver - ou corpo, como habitualmente os agentes da lei se referem ao indivíduo frio e inerte sobre a marquesa - , mas não logrou êxito. Bateu a porta atrás de si e sumiu. O chefe dera-se por satisfeita a questão retornando à rotina do serão.

A chuva intensa não contemplava meios para cessar. Era a mesma cidade embora sob nuvens carregadas e cinzentas mantinha inalterável a sua serenidade peculiar. Um prematuro anoitecer não era mais que o aviso de novas etapas do ano, avizinhava-se outra estação, disso é que se tratava. Tínhamos de lhe dar tempo. Era uma questão de dias para que todas as ruas, jardins, monumentos (mesmo os poucos que havia) adquirissem outros moldes pela chegada da nova estação.

Sentado a um dos extremos da pequena sala de comunicações o Detective Pascolinni consumia o resto do que havia no saco de batatas fritas, a mão húmida de gordura e empoeirada pelo sal não deixava margem a dúvidas. Despejou sobre os papéis da secretária os últimos farelos da embalagem. Pedindo ao auxiliar, num gesto ligeiro, que introduzisse outra moeda na máquina de sodas, na esperança que lhe fosse sorteada outra garrafa, das mais frescas, em complemento à sua fugaz refeição. O jantar não fora tão bom quanto havia previsto e a esta hora, quase 9 da noite, sentia uma ligeira necessidade de dar algo ao dente.

O que o incomodava, no entanto, era o facto de ter o comandante de serviço a rondar por ali a sua procura para lhe delegar um caso menor. Mais um a juntar ao rol das boas acções as quais já se acostumara resolver, pelo menos nos últimos três meses, desde o seu retorno à activa. A soda ardia no estômago, recuou em silencio, indo bebericar para a casa de banho insuspeita.

Harmonyville desde sempre fora uma cidade pela qual todos os turistas interessados na apicultura não haveriam de esquecer uma visita anual. Principalmente quando a época estival estava para terminar. Muitos deles ainda se encontravam entre os aficcionados - estes sim os verdadeiros consumidores - porém o número diminuíra sensivelmente na progressão dos dias. Neste domingo, quando se esperava uma quantidade maior de visitantes, por ser o último dia de festival, foram perturbadas todas as esperanças pelas forças da natureza. Ficando, assim, adiada por mais um ano a festa de encerramento do evento.

Esquecida no interior do Vale da Prata, protegida no enclave por duas cadeias de montanhas rochosas, a pequena localidade rural se estabelecera ali tal e qual outras tantas províncias que surgiram em série em nome do fenómeno mineiro na região. A prata emergia tornando-se a grande vantagem, e mais valia a quem, por razões várias, quisesse tentar a vida por aquelas zonas longínquas do país, deixando atrás de si a falta de oportunidades, a desilusão, a desordem e o frenesim das grandes metrópoles. Muitos se aventuraram no fim do século XIX, quando a procura por regiões mineiras sugeria ser a última novidade a facilitar um futuro promissor a todos que dele dependiam para sobreviver, mas poucos vingaram o logro dos falsos contratantes. Estes, por seu turno, fazendo-se passar por proprietários de minas, exigiam dos candidatos a mineiro uma quantia designada "custo de controle", que mais não era uma maneira de cotizar os espaços que por ali se exploravam, como forma de "fiscalizar" o fluxo migratório oriundo do norte do país. Pura vigarice. Muitas foram as famílias pobres que optaram por desistir da iniciativa após perderem por completo todas as suas economias e parte da dignidade.

Porém com os O'Connors não ocorreu tal folhetim. Chegaram, trabalharam, construíram e conquistaram um lugar na sociedade local. Essa família de ascendência Irlandesa haveria de superar os infortúnios dos primeiros anos na nova cidade que escolheram para viver. Chegaram a Baltimore a bordo do "Carmel Sea", vapor que os trazia de Dublin, lá pelos últimos dias de Agosto de 1889. Um mês marcado pelo surgimento do mais novo membro da família, nascido ainda no mar, há apenas dois dias de chegarem à terra americana. Um menino, chamaram-lhe: John Prescot O'Connor.

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