"Os apaixonados são seres perigosos." W.W.
Coube ao oficial de serviço avaliar o sucedido. O carro havia sido destruído
apenas parcialmente. Todavia, mediante as parcas provas evidenciais recolhidas
na cena do acidente impossível seria, de facto, avançar qualquer
prognóstico perante o único jornalista ali presente a inquirir,
impaciente e tenaz, acerca do assunto. No entanto, se mesmo assim o fizesse
provavelmente a seguradora poderia se lhe insurgir ao meio da noite, privando-o
do sossego, para ouvir-lhe as satisfações. Portanto, permaneceu
em silencio sobre a matéria atribuindo sua momentânea mudez à
sequela causada pelo cansaço acumulado por um fim de semana chuvoso e
agitado.
A sala oval, que antecede ao ultimo corredor do pavimento reservado à
morgue, fora o local escolhido por eles e onde se improvisara uma reunião
com a imprensa. O jornalista fingiu acreditar no que acabara de ouvir e foi-se
embora amuado, sem antes solicitar uma apreciação ao cadáver
- ou corpo, como habitualmente os agentes da lei se referem ao indivíduo
frio e inerte sobre a marquesa - , mas não logrou êxito. Bateu
a porta atrás de si e sumiu. O chefe dera-se por satisfeita a questão
retornando à rotina do serão.
A chuva intensa não contemplava meios para cessar. Era a mesma cidade
embora sob nuvens carregadas e cinzentas mantinha inalterável a sua serenidade
peculiar. Um prematuro anoitecer não era mais que o aviso de novas etapas
do ano, avizinhava-se outra estação, disso é que se tratava.
Tínhamos de lhe dar tempo. Era uma questão de dias para que todas
as ruas, jardins, monumentos (mesmo os poucos que havia) adquirissem outros
moldes pela chegada da nova estação.
Sentado a um dos extremos da pequena sala de comunicações o Detective
Pascolinni consumia o resto do que havia no saco de batatas fritas, a mão
húmida de gordura e empoeirada pelo sal não deixava margem a dúvidas.
Despejou sobre os papéis da secretária os últimos farelos
da embalagem. Pedindo ao auxiliar, num gesto ligeiro, que introduzisse outra
moeda na máquina de sodas, na esperança que lhe fosse sorteada
outra garrafa, das mais frescas, em complemento à sua fugaz refeição.
O jantar não fora tão bom quanto havia previsto e a esta hora,
quase 9 da noite, sentia uma ligeira necessidade de dar algo ao dente.
O que o incomodava, no entanto, era o facto de ter o comandante de serviço
a rondar por ali a sua procura para lhe delegar um caso menor. Mais um a juntar
ao rol das boas acções as quais já se acostumara resolver,
pelo menos nos últimos três meses, desde o seu retorno à
activa. A soda ardia no estômago, recuou em silencio, indo bebericar para
a casa de banho insuspeita.
Harmonyville desde sempre fora uma cidade pela qual todos os turistas interessados
na apicultura não haveriam de esquecer uma visita anual. Principalmente
quando a época estival estava para terminar. Muitos deles ainda se encontravam
entre os aficcionados - estes sim os verdadeiros consumidores - porém
o número diminuíra sensivelmente na progressão dos dias.
Neste domingo, quando se esperava uma quantidade maior de visitantes, por ser
o último dia de festival, foram perturbadas todas as esperanças
pelas forças da natureza. Ficando, assim, adiada por mais um ano a festa
de encerramento do evento.
Esquecida no interior do Vale da Prata, protegida no enclave por duas cadeias
de montanhas rochosas, a pequena localidade rural se estabelecera ali tal e
qual outras tantas províncias que surgiram em série em nome do
fenómeno mineiro na região. A prata emergia tornando-se a grande
vantagem, e mais valia a quem, por razões várias, quisesse tentar
a vida por aquelas zonas longínquas do país, deixando atrás
de si a falta de oportunidades, a desilusão, a desordem e o frenesim
das grandes metrópoles. Muitos se aventuraram no fim do século
XIX, quando a procura por regiões mineiras sugeria ser a última
novidade a facilitar um futuro promissor a todos que dele dependiam para sobreviver,
mas poucos vingaram o logro dos falsos contratantes. Estes, por seu turno, fazendo-se
passar por proprietários de minas, exigiam dos candidatos a mineiro uma
quantia designada "custo de controle", que mais não era uma
maneira de cotizar os espaços que por ali se exploravam, como forma de
"fiscalizar" o fluxo migratório oriundo do norte do país.
Pura vigarice. Muitas foram as famílias pobres que optaram por desistir
da iniciativa após perderem por completo todas as suas economias e parte
da dignidade.
Porém com os O'Connors não ocorreu tal folhetim. Chegaram, trabalharam,
construíram e conquistaram um lugar na sociedade local. Essa família
de ascendência Irlandesa haveria de superar os infortúnios dos
primeiros anos na nova cidade que escolheram para viver. Chegaram a Baltimore
a bordo do "Carmel Sea", vapor que os trazia de Dublin, lá
pelos últimos dias de Agosto de 1889. Um mês marcado pelo surgimento
do mais novo membro da família, nascido ainda no mar, há apenas
dois dias de chegarem à terra americana. Um menino, chamaram-lhe: John
Prescot O'Connor.