A Garganta da Serpente

Wladyslaw Reymont

Wladyslaw Stanislaw Reymont
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Uma lenda de Natal

(Wladyslaw Reymont)

Certo dia, ia Jesus, com São Pedro e Judas, de Ujazd a Piotrkow.

Isso foi há muito tempo, há tanto tempo que, onde hoje é; terra firme, só havia então pântanos, e onde agora existem campos, só existem bosques. Era tão deserta a região que se podia andar uma lé;gua sem se encontrar uma aldeia, e duas sem se ver um castelo.

Jesus ia tiritando tanto que causava dó. Até; as pedras estavam geladas; era noite de Natal. Os três iam esfomeados, e não havia nem uma cabana, nem um albergue, nem uma viva alma. De vez em quando, paravam para descansar; logo, poré;m, tornavam a caminhar, porque os lobos e outros animais ferozes lhes seguiam os passos, em bandos, uivando, fazendo-os tremer de medo.

São Pedro tinha arranjado um pau, pequeno mas forte; e Judas se armara com uma pedra. Disse-lhes o Senhor:

- Não tenham medo, meus filhos, eu estou com vocês.

São Pedro e Judas não tinham medo, mas, afinal, uma fera sempre é; uma fera, e portanto é; sempre mais garantido andar com um cacete.

A noite já tinha caído quando chegaram a um castelo. Pensaram que poderiam descansar ali, mas o castelo pertencia a uns alemães, que os puseram na rua, dizendo-lhes que não os importunassem. São Pedro foi tomado de uma cólera imensa e queria a todo o custo experimentar a superioridade do seu cacete na cabeça do castelão. Judas resmungava:

- Estou danado, Senhor, estou danado! Estou com vontade de torcer o pescoço daquele patife. . . Só assim me acalmaria.

Mas disse-lhes o Senhor:

- Tenham paciência. Os homens são ignorantes, e é; por isso que são maus. É natural que os macacos se roubem uns aos outros, mas os homens devem auxiliar-se entre si. 0 mundo será assim por muitos anos . . .

E prosseguiu o seu caminho, falando, seguido pelos dois discípulos. O frio se tornava cada vez mais impiedoso, e a fome crescia. Finalmente, depois de muito andar, encontraram uma estalagem.

- Entremos - disse Jesus. - Ainda há gente boa no mundo.

- Mestre - respondeu São Pedro -, eu não tenho um vinté;m!

O Mestre revistou os bolsos e não encontrou nada. Ficou triste.

- Eu també;m não - disse ele. - Empreste-nos você, Judas, algum do que tem.

- Só tenho um florim polonês - retrucou Judas.

Tinha dois, mas lhe custava muito ter de dá-los.

- Pois dê aqui esse florim, já que não tem mais.

Mas o Senhor sabia perfeitamente que Judas estava mentindo.

Judas tirou da bolsinha vinte e oito gros, tudo em dinheiro miúdo.

- Ainda devo ter mais dois gros enfiados aqui nos bolsos - disse ele, fingindo que os procurava. E pensava consigo:
"Sempre são mais uns cobres que ficam. . . "

Jesus pegou o dinheiro, e entraram na estalagem.

- Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!

- Para sempre seja louvado! Seja bem-vinda, boa gente! Para onde Deus dirige os seus passos?

- Por esse mundo, boa mulher, por esse mundo. Estamos caindo de fome e de cansaço. Há alguma coisa que se possa comer? Já nem podemos abrir a boca.

- Sim, dê-nos um pedaço de pão - acrescentou São Pedro.

- Não há mais pão.

- Bem, então um pouco de queijo ou de chouriço . . .

- També;m não tenho mais . . .

- Então, boa mulher, dê-nos um pouco de batata. . .

- També;m não tenho. Não tenho nada. Antes de vocês, passaram outros viandantes, que comeram tudo.

- E aguardente?

- Bem, aguardente tenho, mas previno que é; muito forte. Da fraca é; que já não tenho nada.

- Talvez não se incomodasse se tomássemos um copo - atalhou o Senhor.

Judas cuspiu com desprezo, e São Pedro disse:

- Ora, não nos fará mal! Estou morto para tomar qualquer coisa, pois já não posso ficar de pé;.

- E arenques, não há? - perguntou Judas, que gostava muito de peixe.

- Não.

- Que posso fazer por vocês, meus pobres amigos? - perguntou Jesus, desesperado.

- Se pudessem pagá-lo, talvez se arranjasse um ganso - informou a estalajadeira.

- Fique sossegada, que o pagaremos. Palavra de gente de bem! - exclamou Jesus. - Traga-nos o ganso, que logo receberá o seu dinheiro.

A mulher foi buscar o ganso. Judas, que tinha sido comerciante e era entendido em tais coisas, pegou o ganso, calculou-lhe o peso e soprou-lhe as penas da barriga.

- Magrinho, magrinho! Não tem mais que isso! Para mim, apenas, dava; mas, para os três, não dá nem para o buraco de um dente.

São Pedro coçava a cabeça. Para ele, só, també;m o ganso chegava.

- Ponha-o no fogo - ordenou Jesus, e, voltando-se para os discípulos: - Não lhe parece, Pedro, que é; muito pouco para nós três?

- Na verdade, é; pouco, Senhor! Ainda se houvesse couve para reforçar, e um pouco de pão . . .

Jesus refletiu e disse:

- Em vista disso, proponho o seguinte: vamos dormir, que a fome abrandará um pouco. Enquanto isso, o ganso ficará pronto, e, ao acordarmos, aquele que tiver tido o sonho mais bonito comerá o ganso.

Acomodaram-se ao lado da chaminé; e logo adormeceram.

Uma ou duas horas depois, Jesus despertou:

- Levantem-se! . . . Então, Pedro, o que é; que sonhou?

- Sonhei, Senhor, que era seu intendente. Que tinha a chave dos seus domínios e uma cabana para morar. Que o servia fielmente.

- Bom! Bom, meu amigo! Você será meu intendente - disse o Mestre, tomando a cabeça do apóstolo entre as suas mãos benditas. - E eu . . . eu sonhei que estava no cé;u, porque já não havia, neste mundo, nem ignorantes, nem miseráveis, nem malvados. Para todo camponês havia um pedaço de terra, todo mundo vivia contente.

- O ganso lhe pertence, Senhor, porque teve o sonho mais lindo! - disse São Pedro. E não sentia nenhum pesar, embora a fome o torturasse imensamente.

- E você, Judas, que é; que sonhou? - perguntou docemente o Senhor, ao vê-lo levantar-se, esfregando os olhos e bocejando.

- Eu, Senhor? Sonhei. . . sonhei que me levantava e que, em sonhos, comia o ganso - disse Judas, em voz muito baixa, com os olhos pregados no teto.

- Muito bem! Pois o seu sonho não foi dos piores. . . Ó mulher, traga-nos o ganso!

A estalajadeira contou então que aquele homem ruivo tinha comido o ganso sem deixar ao menos um ossinho para o cão.

Jesus olhou para Judas misericordiosamente e disse:

- Então, você sonhou que tinha comido realmente o ganso? Pois olhe que foi um bom sonho.

- Sim, não foi mau - respondeu o outro, sem ousar encará-lo e coçando a barba ruiva.

- Pois bem, já que sonhou isso, fique aqui sozinho e sonhe ao seu bel-prazer que come o ganso com couve, em
alegre companhia. Eu e Pedro iremos por este mundo afora, à procura de quem não caçoe de nós.

E partiram os dois.

Eis por que agora o povo da Polônia guarda santamente as vigílias. Mas os hereges, não; esses, nunca!

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