A Garganta da Serpente
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Maldição

(Michelle R.D - Witch of the Love du Lac)

Não importa quanto tempo passe, ainda hoje continuam a pedir para que escreva algo, conte uma história, um fato, um sinal, qualquer coisa, me pergunto à finalidade por vezes, afinal não acreditariam; Claro, exceto os que chamam por loucos que sábios são na verdade, mas a resposta é clara, nenhum enigma como se possa imaginar, pedem tanto por histórias, informações para alimentarem suas próprias ilusões, quanto tempo passou e ainda hoje posso ver cada cena minuciosamente em cada detalhe repetir-se diante de meus olhos como filme maçante eterno em inacabável longitude; O que fazer? Se de sonho vivem os homens e talvez relatar faz-me sonhar, que assim seja e assim se faça.

' São Paulo, Julho do ano de 1961'...

Como de hábito, tantas vezes triste naturalmente banhada em angústia, caminhava pela hoje velha São Paulo uma vez mais a fim de seguir os passos daquele que minha atenção prendia já há tantos anos, mal pudera saber.

Saudosa época onde Vincent ainda exalava piedade e justiça, sério, ativo, não perderei tempo contando sua incansável rotina, devem imaginar, um jovem, estudante, filósofo, apreciador de diversas culturas, supersticioso, místico até, estagiário em pediatria, 25 anos.

Acompanhava seus passos a um bom tempo.
Apesar dos pesares acreditem ou não eu ainda era capaz de me impressionar com lapsos de extrema bondade, ele era tão absurdamente bom, compreensivo, ativo, feliz, vivo, aaa... como era tudo tão diferente, amava aquelas crianças, passava as noites e acredito que os dias a cuidar com esmero de cada uma delas, me lembro de uma das noites de plantão, chovia forte, do outro lado do vidro ofusca e imóvel pude ver quando fez Catherine adormecer com alguns brinquedos e a canção de ninar que cantou, a mãe levara a criança às pressas, a achava lunática, na verdade faltava-lhe atenção foi o que deduziu, sim, a criança estagnada nervosa o fez compreender logo em alguns simples testes que o problema era psicológico e não físico, algum tempo com os brinquedos, a música a atenção, adormeceu em seus braços como se não fizesse a séculos...Eu, enternecida, já com o coração momentaneamente aquecido, nem pude sentir o peso das vestes encharcadas pela gelitude do temporal.

Imagine um estrondo de luz serena reconfortante na escuridão, luz acolhedora, pura, capaz de envolver e gradativamente mesclar-se à alma tomando suave tom sombrio, um refugio das vozes do desânimo, um bálsamo para os cortes executados pela angústia, um sonho talvez, contra a insistência dos funestos pensamentos a que éramos instigados e ensinados a crer, como que a destruição de um vampiro brotaria imediatamente caso se entregasse ao sentimento humano do amor, onde pregavam que este era nosso maior perigo e pior maldição, este era Vincent, era meu alívio, meu desligamento das normas estipuladas em leis funestamente terríveis.

Desculpem-me, apenas lembranças, talvez ainda seja algo doce que tenha sobrado da amarga vastidão que a tanto perdura.

Mas os fatos não continuariam iguais por tanto tempo...

' Agosto de 1963'...

Afastada Por cerca de 2 anos, finalmente pude retornar a São Paulo, correrias comuns a nós que temos de manter os padrões de vida e aparência apesar da 'essência'; Na mesma noite corri para Vincent e para minha surpresa não dava mais plantão na clínica habitual nem em nenhum dos hospitais das cercanias, já era tarde, não poderia procurar por muito tempo mais, o sol iria surgir e minha ansiedade falecer com preocupação.

Noite adiante, finalmente o encontrei, 2:00 horas do cair da madrugada acomodado em elegante bar café ao centro da cidade, de costas para mim à distância identifiquei sua pessoa; Decididamente a saudade me fez resolver entrar e não apenas observar como a tempos.
As luzes não incomodavam tanto, o dormente vermelho arroxeado parecia perpetuar além do ambiente a mente dos presentes demasiadamente relaxados, ou seria o whiskie?...

Lentamente, cada passo dado em sua direção naquele momento soavam como barreiras que eu finalmente ouvia estourar como copos estilhaçados e apesar de não sentir junto a estes o velho coração embevecer por sua energia inconfundível, no calor do momento deixei tal fato cantar delicadamente despercebido.
Do outro lado entre o discreto do creme da tinta que banhava extenso balcão, extremamente fácil era conferir cada movimento.
Aparentemente imóvel, provido de vestes e um distinto blazer negro, acariciava entre os dedos a insignificância da taça repleta de curaçau.

Porém, tudo mudara, passados os primeiros resquícios de ansiedade natural, leve brisa fria a tudo contaminou gradativamente, naquele momento então, pude sentir o próprio inverno em mim;
Entre caminhos ligados infelizmente fui obrigada a compreender o que estava havendo, minha alma não negaria a ver a atrocidade que meus próprios olhos podiam visualizar;
Tranquilamente suspendeu os olhos do azul do líquido doce para finalmente pousar no mais profundo âmago de meus desejos, olhos petrificados pelo tempo, névoa de amargura, lascas de vidros finos cortando a pele e a alma... Já não era o mesmo.
Infelizmente.

Antes que seus pensamentos tentassem acercar minhas defesas prontas para o ataque, tratei eficientemente de disfarçar e ele nada pode decifrar.
Em poucos segundos compreendi a ausência do velho calor que brotava em todo meu ser com esplendor quando o via e o sentia ainda que a distância, para enfim pensar em quem seria o atroz que teria poupado uma vez para sempre, meu próprio ser de ligar-se a única forma positiva de vida que encontrara ainda que por breves momentos, brevíssimos que já outras vezes soavam longos, eternos.

Naquela mesma noite, vi o resto de vida que em mim vivia ainda, melancolicamente padecer frente a um filete de sangue qualquer que esvaía uma vez mais, entrando para a funesta contagem estatística de assassinatos da cidade graças a seus lábios.
Desprovido de piedade, já àquela hora, não poupou em rasgar com violência sedutoramente enganosa os pulsos de um jovem maltrapilho perambulante que se divertia entre as trevas.
Do outro lado do fétido beco, cercada pela leveza funesta do véu vaporoso que subia aos céus fruto da chuva que a pouco caíra, oculta, assisti o grotesco da 'espetacular emboscada';

Sentido morrer mais a cada segundo, decidi partir por ver minha única esperança desmoronar como cinzas levadas ao vento;
Saindo as pressas deixei o ecoar de um pedregulho qual tropecei me denunciar sem salva alguma, impulsivamente olhei para trás e ao fim da estreita passagem em sua extensão, agora ele estava finalmente me fitando dos pés a cabeça, sério, com os lábios contaminados pelo vermelho do sangue, braços pendidos e expressão irreconhecível.
Naturalmente havia me identificado como um(a) semelhante, porém à distância notei como estranhava e sentia á metros o que se passava em minha mente, como se houvesse decifrado o passado.

Passando a caminhar sem pressa em minha direção, não reagi, não o quis fazer, novamente a chuva pairou contrastando com a triste decepção que a tudo cobria, sem chance alguma invencivelmente.

Rente a minha face, tão perto quanto jamais estivera, nada disse, e eu, apenas pude balbuciar...
- Em que se tornou?...

Tendo como resposta:

-Quem é você?, o que faz aqui?, como pode questionar quando na verdade és espécie de reflexo, como se fossemos da mesma espécie porém não da mesma raça...

Não contive as lágrimas por infelizmente saber que falava a verdade em partes, de nada adiantaria explicar, fazer emitir toda a verdade, todo o amor em forma de admiração enjaulados em um coração que igualmente se alimentava de sangue.
Distraidamente desviei seu olhar de minha alma para a lua e aproveitando os segundos com a velocidade extrema que não costumava usar, fugi, sem que um novato como era na época pudesse reagir ou se esclarecer do paradeiro.
De nada adiantaria ficar e talvez correr o risco de conviver eternamente com a presença da angústia e do afeto transformado em decepção ao longo de cada noite inacabável em mim.

Jamais voltei a qualquer lugar que possivelmente poderia correr o risco de encontrá-lo.
Escolhi ficar só, acabei poupando minha própria vida.

Hoje, Dezembro do ano de 2001, prefiro lembrar dele em vestes alvas com as crianças e não banhado em sangue.

Talvez, seja porque vivo não apenas de eternidade, mas acima de tudo por lembranças.

"Imortais também podem amar e talvez esta seja a maldição lançada ao amor pelo simples fato de nem mesmo a morte poder conter um sentimento indestrutível, mesmo diante das barreiras do que a olhos humanos, pareça impossível".

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