A Garganta da Serpente
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O córrego

(Wanderlei Francisco)

Um dos relatos encontrados entre os papéis de meu primo Dio,
lembrando o machismo rasteiro e a criminalidade mais artesanal
do bairro onde crescemos, dá voz a um narrador
meio que guardião da "boa" ordem criminal.

A nêga fica sempre guardada no barraco - não gosto dela perto das parada.
Às vezes ela insiste em ir pro mundão comigo.
Fica birrenta, num dá os chego direito, nem cuida como é de lei; e acaba levando nos cornos. Sacomé: homi mal cuidado por muié, perde logo a paciência. Depois eu amanso. Trago uns dins (jeans) de mina de escola, tipo burguesinha; deixo ela dormi uma noite na Gutinha, se vejo que vô demorá; e as coisa fica no jeito.
A rua da Gutinha tem lá uns trocentos metros, continuação da ponte em cima do córrego que de longe acompanha a avenida; e num sei se é mais cacete a estreiteza mal iluminada da ponte, ou o cheiro de merda do córrego.
A partir da metade da rua dela só tem casas de um lado; até chegá num barranco sem saída, onde começa morro acima a barraqueira em que nóis mora - pra chegá até aqui tem de seguir uma trilha pelo barranco.
A casa que a Gutinha mora é a última antes do barranco, e a janela do quarto dela fica de frente, uns cinquenta metros do começo da trilha.
A Gutinha mora bem, naquela ruinha lá embaixo - é habitante do bairro e se sente protegida: conhece bem a malandrage, e num tem pobrema c'os home.
Os home!
Quando chegam é no máximo até a beira do barranco. Aqui num tem boca de graúdo, e se eles sobem é dedurage besta de nego safado que sabe que vai morrê depois - vagabundo que bota a polícia pra resolvê treta é mais filho-da-puta que a polícia.
Quem vê de fora vai pensá: a política tá braba na área do Sereno.
Mas malandro que é malandro sabe que treta de casa é decidida a bala ou o que for, mas sempre entre nóis mesmo. Quem quer ser gente decente, pague sua cota e fique manso.
Os home têm a parte deles, e é o que basta.
______

Solitária, Gutinha não é melosa como a maior parte das vizinhas lá da rua; nem pode ser comparada com as burguesinhas-cor-de-bosta do outro lado da ponte. Mesmo assim ainda sofre safadeza de dendeca escolada - insônia. Chamam de insônia essa falta de homi (e os bói que diz ter isso também! - coisa de viado!).
Quando baixa a tal de insônia, Gutinha cochila na fresta da janela madrugada adentro; observa, aborrecida, a movimentação da noite.
______

Pois foi numa madrugada dessas, com minha nêga por testemunha, que Gutinha assistiu ao fato.
A mina ia passando pela trilha no barranco, quando foi guentada pelo sujeitinho.
Oitão na mão, além do guento ele teria tentado jantá a garota; e só desistiu por causa da gritaria que ela armô.
De manhã, numa dessas conversinhas de muié, Gutinha foi saber que se tratava de distinta moradora dum barraco próximo. Vivia com a mãe e um irmão que tava em cana.
______

Neste sábado, cheguei no bar lá embaixo meio cherado; mas o mau cheiro do córrego era mais forte que o pó.
A casa tava cheia, e o assunto era um só - conversa fácil de muié chega rápido em boteco.
Se era gente da área, irmã de malandro, por que num passô batido?
Calmo como sempre, sentei e pedi uma forte, observando a entrada do Pato.
Num gole virei o copo e, falando pra todo mundo ouvi, convidei o Pato pra fumá um baseado no sossego do escurão.
Houve quem olhasse meio a susto, mas saimo na moral em direção ao fim da rua - em noite besta de sábado, nada como uma boa pitada ao pé do morro.
Sentamo perto de onde a moça foi atacada e, aproveitano alguma luz da rua de cima, eu comecei a enrolá o que se podia dizê um bem-servido-Baseado. Depois, com displicência entreguei-O para o Pato, que me olhava de um jeito estranho, e levei as duas mãos com o isqueiro quente próximo ao bico do convidado.
Bem carburada a Bomba, o Pato deu dois ou três tapas profundos e estendeu Ela pra mim, que num gesto insisti pra que ele fumasse mais.
Isso fez ele se soltar aos poucos.
Apesar de Pato, já não tinha a mesma cara de penoso convidado - estava muito-loco.
Só então peguei a sobra do jasco, pra também fumar um pouco.
A nêga tinha ficado abirrentada, mas bem posta no barraco; e quem esticasse o olhar para a fresta da janela da Gutinha havia de repará que, mesmo sem a companhia da amiga, ou por isso mesmo, a tal de insônia prometia - enjoada de novela e filme besta, sem homi pra mordê nem muié pra fofocá, a noite do sábado havia de servir só pra ela espiá cá pra fora.
Em silêncios e oras-oras, eu e o camarada escorregava as ideias.
Até o calmo da marofa transformar-se em sutilezas, e a brisa entrada no espírito aprofundá as conversas que a maconha determina. Primeiro as vozes baixas e solenes; depois, tom ritmado como o som lá da capela: às veis explodindo em susto, às veis ensaiando sono. Pipôcos de bons assaltos, tretas de gargalhar, papo-furado de sexo, guento em patrão e PM - caosos de rir e gemer, tossir e estrebuchar; até que o assunto do dia foi entrando na palestra, e as risadas sufocantes começaram a se intalar.
- Aí ladrão! Foi você quem depenô a irmã do Barriga, e quase levô ela pra sobremesa; não foi?
- Ê Sereno, dá licença. Eu sô lá homi de encostá nêgo da área? Ainda mais se tratando de muié!
- É! Mais só que ela me disse que foi o Pato, e o único Pato que eu conheço agindo na área é você.
- Só que ela tá enganada. Este lugar é muito escuro; ela podia ter me confundido com outro.
- Mais péra lá! Eu nem disse que ela foi encostada aqui neste lugar!
- Eu sei...! Mais tá todo mundo sabendo Sereno. Pergunte pra vê. Qualqué um vai dizê que foi aqui...
- Tá legal Pato. Eu vô botá uma fé na tua fala; mais você vai tê que negá na frente dela.
- Êh! Qua-lé-que-é, tá me tirano? Cê acha que eu tô mintino mano?
- Olha aqui o Pato, cê já num é novo na área e sabe muito bem como é que eu gosto das coisa. Ou cê tem a manha de negá na frente dela, ou tá ligado que o bicho pode pegá!
- Êh Sereno, ela é só irmã do Barriga. Se alguém tem que tirá alguma diferença, é ele e não você. E, qué sabê? Ela num passa de uma piranhona. Eu mesmo só não comi porque não quis.
- Não comeu, porque não quis...? Cusão do caralho! Bem que a mina disse que você só num jantô ela na forçada porque ela começô a gritá que era irmã do Barriga.
Do escuro da janela, Gutinha pareceu ver o brilho de um oitão engatilhado, e c'a orelha em pé quis se ligá um pouco mais.
Mas dois disparos impediram que ela ouvisse talvez um grito: ...num faça isso See..r..ee..
______

- Boa noite Gutinha!
Falei pro escuro da fresta ouvindo um suspiro manso, e continuei descendo sem pressa.
Outro suspiro mais lá atrás.
- Esse filho-da-puta num morreu!
Eis que eu subia de volta seguido pela Marlene - uma ruiva cumprida, que queria me dá faz tempo; se ela tinha vindo posá de boa dona, e me pedir pra eu não fazê o que fiz, desistiu. Quase num ratiô, quando eu mandei que me esperasse na janela da Gutinha.
Cheguei bem perto do vulto, que se arrastava e gemia; e dessa vez num teve erro. Dois tecos bem na cara.
- Boa noite Gutinha!
Puxei pelo braço a ruiva Marlene, que tinha sentado muda.
Na porta do bar, o aglomerado; mas, nos aproximando, todos voltaram a beber com a indiferença que eu exijo nessas horas.
Chegando em cima da ponte fumamos um suadeiro; e, rindo do treme-treme sobre o escuro do lôdo, ficamos trocando apertos.
Mas cheiro de fumo passa, e logo o fedô do córrego veio expulsá nóis dali.
______

Mais tarde tive vontade que o hotelzinho de esquina valesse os triscos da ruiva - que cavala!
Antes que amanhecesse, dei mais um tapa na bicha e deixei ela roncando.
Sem acordar o porteiro, atravessei a avenida.
______

A nega tava direita, de camisola e tudo.
Descansei a rola nela, rosnei a treta com o Pato, mais ela nem se acordô - tava com raiva e com sono.
Então levantei de novo, e fui pro chuveiro frio - misturei o fedô do córrego com a frescura do banheiro.
Aí saí cá fora; fumá um, espiá o dia lá pra baixo, e vê se enfim durmo mesmo.

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