As janelas de seu quarto não mais ficavam abertas, ele detestava o Sol,
a Lua, o universo. Detestava tudo. Detestava inclusive a si mesmo, o que não
era difícil. Em meio à loucura, livros, silêncio, um copo
com água e um insuportável maço de cigarros, pensava nele,
pensava muito, pensava mundo. Pensava que pensava e quanto mais pensava mais
queria pensar e mais odiava tudo.
Pensava em Adão, em Platão e no amor. Aliás, detestava
o amor. Amor... Essa palavra lhe corroia por dentro quando ouvida, ou melhor,
lida. Fazia muito tempo que não ouvia. Detestava ouvir, falar, sentir,
esse último mais que todos os outros. Sua professora lhe ensinou que
sentir é poder amar e odiar. Hipocrisia. Um dos motivos para odiar tanto
o amor quanto o ódio. Sentimentos, vida, o que ele menos entendia. Mais
lia e menos compreendia. Chorava, calava. Amor era sexo, libido, sexo, orgia,
sexo, defloração, orgasmo, gozo. Amor era falsidade, traição,
vingança, ansiedade, impiedade, ódio. Ódio. Era(m) a mesma
palavra, cada uma em seu tempo verbal.
Viu-se vago. Viu o mundo vago. As palavras eram vagas, ortodoxas, loucas. Louco.
A filosofia era vaga, ingênua, tenaz. Em Deus e papai Noel já não
acreditava. Tornou-se sombrio, negro. Mais negro que sua pele. Escravo. Escravo
da morte, que, acreditava ele, era sua dona. Tanto sua quanto fora de todos
os autores que lera no empoeirado acervo em seu velho quarto no segundo andar
de um beco escuro. Todos eles tolos. E mais tolo ainda eram seus pensamentos.
Exaltavam a sádica vida que viveram, muitos deles, pouco. Que tolice.
Ele não exaltava, não agradecia. Maldizia, amaldiçoava
e maldizia novamente.
Não se deixava levar pela ilusão das palavras e nem ao menos pelos
sentimentos, que eram sim, os males do homem. Também não acreditava
em felicidade, julgava-a uma ânsia eterna e inalcançável.
Foi vivendo e lendo sempre as mesmas palavras, vazias, apenas em novas capas
e percebeu que não encontraria a resposta para suas perguntas, e se encontrasse
não se contentaria. Não encontraria resposta para nada. Tudo era
ignorância. Os conceitos eram tênues e a vida, finalmente, não
se resumia em coisa alguma.
Sua mente ficou cansada disso. Ficou cansada da busca entre frêmitos e
soluços em noites sem dias, sem verbetes, sem soluções,
equacionadas em gritos sufocados na mais profunda morada de sua alma. O tempo
passava-se e o tempo parava-se, parando-o e passando-o dias e mais anos e ventos
ignorantes de eras. Passou tudo, seu calendário com a foto de Madona,
os caras-pintadas, passaram seu tempo e seu mundo. Passaram-se suas primaveras,
impercebíveis, que foram trocadas por outonos de invernos sem verões.
Suas festas, cavalgadas, assombros e contidas alegrias repentinas, proporcionadas
pelas estórias nos livretos, não mais saciavam. Não mais
lia. Conformava-se e relutava cada vez menos, menos sabia. Suas lembranças
e noções se apagavam como se escritas na areia. Isso lhe aliviava,
pois apesar de insalubre, arracava-lhe as dúvidas e o tempo das costas
já pesadas de dias e enigmas.
Parado, estático, faminto e sujo. Muito sujo... Desistia.
Seu corpo velho e seco - sabia ele, não duraria muito tempo. Não
mais falava. Esse era o preço das fumaças entretidas de tantos
tempos. Mas a fala, sabemos, era algo que não lhe fazia falta. Seus olhos
velhos e chorosos não podiam mais deslumbrar a beleza das cores.
- Morte... Morte...
Balbuciava em meio a lágrimas de dores sem cura. Queria ouvir... Compreendeu...
-... ... ... ? : !... ? ...? ", .
Era sua dona lhe chamando, era a hora de seguir seu destino, afinal não
mais lhe pertencia a vida, ela nunca lhe pertenceu.
(Premiado no II Concurso Gente Miúda de Conto - Medalha
"Monteiro Lobato"
e no IV Concurso Nacional de Literatura de Caçu-GO)