A Garganta da Serpente
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Jeferson

(Wesley Carvalho)

Jeferson tinha um pênis notável. Era de grande comprimento, robusto, pesado e veiudo. Sua irmã costumava observá-lo escondida pelo buraco da fechadura e chamá-lo carinhosamente, e em frente a toda família, de tripé. Jeferson sempre lhe devolvia o sorriso, apesar de incomodado.

Mas a generosidade do seu dote deixou de ser tão engraçada quando, com o passar do tempo, as proporções se tornaram circenses. Mais nenhum comentário na mesa de jantar, mais nenhuma cafungadinha da mamãe. Apenas a constrangedora certeza impregnando o ar da casa de que o garoto levava uma aberração entre as pernas. Seu pênis havia se tornado um tabu.

E não podemos dizer que havia exagero na atitude. De fato, parecia que era algo vivo, completamente autônomo da base da qual nascia. Um ser siamês que poderia te morder, caso você se aproximasse muito. As manifestações de carinho tiveram de ser reinventadas, pois que quase todas faziam referência ao já não tão carismático membro do rapaz.

E cresceu Jeferson, mais incomodado com seu pênis do que se ele pudesse lhe envolver o pescoço e asfixiá-lo por conta própria. Ninguém que lhe tivesse perto poderia ignorar o contorno que havia em suas calças. O grande volume não era mais segredo e Jeferson sofria muito com aquilo. Ele sentia vontade de arrancá-lo, descer desse tablado cotidiano no qual apresentava um show de humor às pessoas e apagar os olhos-holofotes que se punham sobre ele. Jeferson via que por causa do seu problema, ele não podia ser ele mesmo, não deixava desenvolver a pessoa enrustida pelo trauma, pela constante vergonha, a pessoa sufocada pelo pênis, soterrada debaixo dele, impedida de surgir, de ver a luz do dia, de viver plenamente.

Até que, em certo momento da vida, aquele no qual, dizem, nós nos definimos para sempre, toda a questão que vivia se lhe apresentou sintetizada no seguinte dilema: "Ou eu me recolho às eternas tentativas de disfarce, ou assumo o que a natureza me deu." A primeira alternativa era a que vinha tomando durante toda adolescência, e ela não lhe havia trazido muita coisa além de fracasso, timidez, reclusão e conhecimentos enciclopédicos sobre tv.

Deus não lhe soube ser moderado e foi desse mesmo jeito que Jeferson escolheu a segunda opção, dando uma volta de 180 graus na vida. E foi assim, em um piscar de olhos, que ele tomou para si seu pênis. Ele já não era mais um estranho para quem ele mal podia olhar. Não. Naquele momento, aquele havia se tornado o pênis de Jeferson. E muito mais do que isso: naquele mesmo momento, Jeferson havia se tornado aquele pênis.

Era agora o seu trunfo, o seu estandarte, sua comissão de frente deslumbrante na Avenida, o seu cartão de visitas, o seu cartão de entrada e saída, de entrada e saída, de entrada e saída... ah! o amor das mulheres - Jeferson mal imaginava que ele existia há até pouco tempo atrás e hoje mal pode viver sem ele. Sua reputação, tão logo ele mudou de atitude, se espalhou por elas e a demanda passou a ser altíssima. E elas o amavam, elas eram fascinadas, elas mal conseguiam dar conta, elas gritavam de dor, pediam para descansar um pouco, mas elas sempre voltavam querendo mais daquele brinquedo pitoresco.

E os amigos, a quem antes Jeferson tinha tanta desconfiança, passaram a ser em grande número, todos lhe tendo admiração, e até inveja, dada sua grande fama entra garotas, além do seu atributo especial. Ainda que Jeferson se consumasse em prazer imenso com mulheres na cama, apenas quando o feito era relatado para eles que a coisa encontrava pleno sentido, a sua verdadeira finalidade. Antes solitário, sem vida social, inseguro e vítima de gozações, Jeferson passou a ser o mais requisitado pela galera, o centro das atenções. O seu pênis o uniu a eles. Nada como o reconhecimento do outro. Jeferson agora havia se tornado uma pessoa realizada.

Depois de um tempo, recebeu um convite irrecusável e seu primeiro filme pornô foi um sucesso. A glória de Jeferson ultrapassou em muito o espaço das raves. Ele passou a figurar nas páginas de jornais, revistas e aparecia na televisão com grande frequência. Jeferson chegou a se tornar a pessoa mais midiática, além de peniática, que o Brasil já conheceu.

Mas notícias tristes vieram. Um caso que abalou o país inteiro. Um problema de saúde de grande magnitude, até porque se tratava do seu pênis. Os médicos foram muito claros no diagnóstico: dado o tamanho do órgão, existe naquela área, de forma muito concentrada, uma demanda forte por nutrientes. Por isso, a irrigação de sangue do pênis de Jeferson estava acontecendo em detrimento de todo o resto do corpo. O cérebro, por exemplo, estava sofrendo muito com a falta de oxigênio. O único caminho para a cura era algo bombástico, apesar de simples: decepar.

Jeferson foi firme na recusa da solução proposta pelos médicos. Foi avisado de que se não cortasse o membro, morreria em questão de meses. Porém, nada foi capaz de dissuadi-lo. Ele preferiu seguir o caminho para a morte. Algumas pessoas o chamaram de louco, mas outras entenderam que é impossível viver quando não se tem a sua vida. O seu pênis era a sua vida e agora ele estava drenando toda ela para morrer. Estava cobrando o preço que era exatamente a mesma medida que havia oferecido a Jeferson.

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