A Garganta da Serpente
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Freddie Krueger

(Wesley Carvalho)

O som da tv estava alto mas não foi obstáculo nenhum para que eu caísse no sono. Logo, vi-me em um trampolim. Tirei o roupão pesado que carregava e pulei para cair na piscina do sono e afundar por milhares de quilômetros até às regiões abissais, onde estaria uma cama onde eu dormiria, para ter um sono dentro do sono, mas não um sonho dentro do sonho, ainda que se pudesse dizer que seria um sono dentro do sonho, porque se há sonho, não há isolamento do mundo, e não era outra coisa que eu queria senão uma verdadeira "morte temporária", porque esquecer, ainda que temporariamente, é preciso, e eu o queria tanto que, como vocês já podem perceber, buscava, mesmo dormindo, esse sono sonhado que, na verdade, nada mais é que um sono muito profundo. Porém, tive sucesso só depois de muito custo, e essa história é somente sobre isso, pois o mundo, como o carrapato que é, se apegou a mim e quase não me foi possível me desvencilhar nem do som da programação da Globo que vinha da tv, nem das chatices do cotidiano, das preocupações grandes e pequenas, dos compromissos e etc, coisa que eu queria não como um suicida dramático, mas como um cansado comum, pois que tudo isso invadiu o meu sonho e impediu o meu sono, não o real, claro está, pois se esse fosse não haveria sonho, mas aquele almejado, como poderão saber todos os leitores que prosseguirem nessa narrativa, coisa para qual contribuirei, forte é minha vontade de que todos continuem lendo, não mais entupindo essas linhas de apostos, posto que eles são uma grande chatice e uma coisa um tanto over. Assim, apenas 2,384 segundos depois do salto, exatamente após a terceira pirueta, meu infortúnio começou: fui capturado em pleno ar por um pombo, cuja cabeça era a do presidente da Oi. Se não importa se perguntar qual das duas naturezas daquele ser é a mais odiosa, o fato é que com a sua garra vermelha e suja me segurou e foi com ela, em um movimento notável, que me arremessou para bem longe da piscina.

Fui jogado contra uma janela que se estraçalhou e caí sentado à mesa de um restaurante onde, à minha frente, minha namorada sorria. Meu terno estava impecável, a não ser pelo detalhe esverdeado, tiro do pássaro. Na mesa havia vinho, uma massa e a música-tema do Skank tocava ao fundo. Eu tinha esquecido seu presente e ela, ao percebê-lo, deixou transparecer nos olhos que havia se chateado. Depois, se ajeitou na cadeira como se estivesse um pouco incomodada. Achei que fosse por causa dos índios que se aproximavam, mas não.
-Amor, que felicidade a gente aqui!, ela disse
-É verdade...
De súbito, eu disse que ia banheiro e já ia me levantando quando ela pegou na minha mão. Ela percebeu a intenção de fuga, e era muito mais intenção que fuga mesmo, porque em uma situação como essa só se consegue mexer o corpo, nunca a grade:
-Amor, fica aqui. A gente precisa aproveitar esse momento...Ontem a gente nem ficou junto só porque você queria jogar dominó...
-Mas era a final do campeonato! Olha, desculpa, mas eu preciso muito voltar para...

Não havia terminado a frase e levei uma flechada. Depois do sequestro-relâmpago, me deixaram na av. Rio Branco, bem à frente do prédio da mega-poderosa S & S Finances Corp. Olhei para o relógio e vi que era exatamente a hora em que tinha marcado uma entrevista lá, coisa que lembrei com tristeza. Fui recebido por um executivo, não o mesmo que me receberia na quarta, quando iria lá de verdade. Ele me falou que a rotina enfadonha seria bem remunerada e ainda havia chances de subir na empresa. Me deu então o contrato para que eu assinasse. Meu pai me olhava do canto da sala com expectativa e receio. Ao lado dele estava o meu carro, que fazia rrrrrerrrrererrerrrrrerrrrrre, um barulho que há semanas não sabia precisar de onde vinha, qual era sua gravidade ou que facada me seria cobrada por ele. Naquele momento, coloquei a mão na cabeça e vi que tinha muito sangue. Olhei no espelho e vi meu crânio aberto na parte superior da cabeça e muitas feridas, todas causadas porque ele, meu carro, vinha comendo pequenos pedaços do meu cérebro, e não me perguntem quando foi aquilo e nem como eu não o tinha percebido, afinal, isso é um sonho e no sonho as coisas são assim mesmo. Olhei para o executivo que aguardava minha resposta e vi que ele não estava se importando com os machucados porque aquele emprego requisitava muita técnica, mas as melhores partes da mente eram dispensáveis.

O carro engatou a primeira e eu, sentindo o perigo, corri em direção à porta que estava atrás da bancada onde Daniel Dantas se defendia. Era a porta que dava para um santuário, o lugar que me bastava naquele momento e onde amiúde eu me basto, o meu quarto. 1.0, ele não me alcançou antes de eu chegar lá. Achei que encontraria o ponto final dessa história ali, mas eis que a campainha toca.

Era a festa me convidando. Disse que não iria porque estava muito cansado, um argumento que não lhe fez o menor sentido. Ela mostrou que estava todo mundo lá, que havia bebida a rodo e boa comida. Falei que realmente lamentava, mas que não ia dar. Ela insistiu e investiu pesado falando não sei o quê de "vida é para ser vivida", "carpe diem", etc. Resolvi mentir, então. Falei que tinha uma prova mas ela me lembrou que era domingo. Falei que era um concurso público e ela falou que não existia mais Estado. Ela me perguntou se havia algum problema com ela. Disse um pouco irritado então que só queria ficar sozinho, longe dos pequenos jogos cotidianos e mesmo das risadas. Ela foi embora e eu, saindo da dimensão ultraliberal, me encontrei no deserto.

O calor incomodava, mas eu só sabia me contentar com o silêncio e a ausência das coisas. Encostei a cabeça em uma pedra e fechei os olhos. Mal tinha deitado, apareceram Deus, o Dr. Fernando Lucchese e a Cláudia Raia. O primeiro me mostrou todas as coisas e todas as pessoas da minha vida e depois disse: "Levanta, minha criatura! A ti ordeno uma coisa: não te desvies do curso em que te pus. Cumpra o que te ordeno e os teus rebanhos serão numerosos, teus celeiros ficarão abarrotados mesmo nos tempos de fome para todos os seus vizinhos, tua mulher será fiel mesmo depois de tua morte, tua prole será bem empregada, terás vários imóveis, todos com piscina, sinuca e playstation e todos verão o quão bem-sucedido és. Ou não." A Cláudia Raia chorava porque tinha sido presa, e o Dr., por sua vez, disse algumas coisas úteis, outras não, mas todas insuportáveis naquele momento.

Eu me pus de joelhos e chorei: "Por favor, saiam todos vocês daqui! Eu só quero descansar um pouco!" Sensibilizados, eles foram me deixando lentamente, apagaram a luz e fecharam a porta. Abriu-se um buraco negro no chão para onde deslizei. Fiquei no vácuo por oito horas e meia e depois acordei.

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