A Garganta da Serpente
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Páginas arrancadas do diário de um jovem

(William A. Rodrigues)

Se foi um fantasma ou se foi uma ilusão
fantasmagórica da consciência ou se foi
um bêbado que não deveria estar naquele
lugar naquela hora (…) [não importa, pois]
nunca mais se ouviu falar dele.

(Visita para o Sr. Testante, Charles Dickens)

Ontem, quando estávamos ao redor da fogueira, eu me surpreendi com a minha memória! Nunca pensei que me lembraria dessa história com tanta perfeição, ainda mais por ter me sido contada há muitos anos por minha avó. Aliás, recordo ainda dela jurando ser a mais pura verdade... Verdade ou não, é uma boa história para se contar em situações como esta, portanto a transcrevo aqui afim de não correr o risco de esquecê-la:

Passava Carlos, meu bisavô, por uma cidade do interior do Rio Grande do Sul numa noite de rigoroso inverno. Chegou aos seus ouvidos o boato de que alguns rapazes que foram para a guerra já haviam chegado no porto de Santos e que em poucos dias deveriam chegar em Porto Alegre, onde Carlos esperava encontrar o seu filho mais velho, que há muito havia ido para a Europa, e que no fim das contas soube ter entrado na guerra. De qualquer forma, o frio congelava os ossos e a neblina densa não permitia que se visse um palmo à frente do nariz. Mesmo os cavalos à frente da carroça pareciam indispostos em seguir em frente em meio a tal contrária situação. Meio a contragosto, mas aparentemente sem opção, meu bisavô decidiu por procurar por uma hospedaria.

Tinha, contudo, sérios problemas nessa sua busca: além da pouquíssima visibilidade, era analfabeto. Era um daqueles velhos vigorosos de antigamente que chegavam ao fim da vida ainda parecendo no auge da juventude, e além do mais prezava o que se dizia "origem guerreira" por aquelas bandas, sempre carregando uma adaga consigo. Para a sua mente bruta, deveria ser uma hospedaria qualquer prédio grande e velho que tivesse uma placa na frente.

Guiava a sua carroça pelo que parecia ser a rua principal daquela cidadezinha, mas as casas eram tão afastadas pelas plantações que de uma a outra havia longos espaços vazios, completamente obscurecidos e nebulosos, e sem sinal nenhum de uma hospedaria com um rancho para abrigar os seus cavalos. Já pensava ele que se tardasse demais em encontrar alguma, seria obrigado a abusar da hospitalidade de algum morador das redondezas. Contudo, enquanto cogitava isso ouviu um estranho ruído na rua que parecia deserta. Antes ouvia-se apenas sapos do banhado coaxando e algumas árvores noturnas a ruflar assas, mas aquele ruído não tinha nada a ver com isso: era um ruído de algum objeto metálico sendo arrastado no chão, e o som não parecia distante. Pensou logo que deveria ser um morador ainda desperto, talvez zelando pelos seus animais, mas, como ninguém lhe disparou nenhuma palavra, tomou ele a iniciativa.

- Boa noite, camarada! - bradou em tom amistoso, sem receber qualquer resposta. O ruído metálico, no entanto, permanecia e cada vez mais se aproximava. Ora, podia ser um ladrão de estrada, por que não? Empunhou a adaga e esperou que alguém aparecesse, mas o som arrastado permanecia, incessante, cada vez mais próximo. Tentou mais uma vez comunicar-se: - Olá! Quem vem lá? -, mas novamente resposta alguma recebeu. Os cavalos, entretanto, logo empacaram, agitados, e a razão estava logo à frente. Naquela mesma estradinha de chão batido vinha em sua direção uma figura de horrenda aparência.

Sua pele era acinzentada e tinha uma enorme corcunda, e na cabeça trazia mechas dispersas de cabelo, como se a maior parte dos seus cabelos tivessem sido arrancada com as mãos, e os seus olhos pareciam débeis e opacos, enquanto de sua boca torta escorria um fio de sangue, este também visível nos trapos rotos que trajava. Um dos seus braços pendia inerte enquanto o outro arrastava o que parecia ser um pesado machado que desde o cabo estava coberto também de sangue.

Diante de tão horrível visão o sangue de meu bisavô Carlos pareceu congelar, tirando-lhe toda a coragem de que tanto se orgulhava. Ficou sem reação, sem saber o que fazer, permanecendo, então, ali parado, olhando para o homem que vinha mancando em sua direção. O seu olhar incerto e sem brilho por um instante pareceu fitá-lo, mirando-o, mas nem por isso mudando o seu passo. Com o mesmo vagar seguia em direção à carroça. Enquanto isso, meu bisavô já tomara novamente as rédeas afim de seguir o caminho inverso e escapar da rota daquele demoníaco ser. Em instantes disparava na direção contrária à do monstro, só então percebendo que ofegava.

Sem se importar de estar retrocedendo, seguiu sem hesitação o caminho pelo qual seguira, como se estivesse pronto a voltar para cada. No entanto, repentinamente, o mesmo som metálico invadiu-lhe os ouvidos. Apavorou-se. Como aquilo havia acontecido? Estava certo de que em nenhum instante aquela criatura o havia ultrapassado, e, contudo, já logo surgia do meio da névoa o medonho espírito. Sim, não tinha mais o olhar débil - agora o olhava fixamente, desejoso por alcançá-lo. Tinha agora em seus olhos um brilho assassino.

Meu bisavô abandonou desesperado a sua carroça, correndo em direção à primeira casa que viu. Era uma casa de madeira, de tábuas irregulares com tremendas frestas por entre elas, embora isso não fosse incomum. Estaria seguro abrigado, tinha certeza disso. Bateu freneticamente na porta, até que uma senhora abriu a porta. Trazia no rosto as marcas do sono bruscamente interrompido, mas igualmente nele trazia um sorriso simpático, como se fosse a coisa mais comum ser acordado no meio de uma noite como aquela. Meu bisavó, no entanto, a alarmou: - Senhora, desculpa incomodar o teu sono, mas teria como dar abrigo a este homem? Procurava por uma hospedaria, mas um espírito do mal corta qualquer caminho que eu tome. Não ouve o barulho? -, ao perguntar fez silêncio. O ruído antes audível, contudo, cessara. Indiferente à feição descrente da mulher, sentiu o coração aliviado ao perceber que havia acabado a perseguição.

- Deve ter sido coisa da minha imaginação, mas ainda assim peço a hospedagem, para mim e para os meus cavalos logo ali adiante. -, ao que a senhora abriu, sem qualquer palavra, a porta para que entrasse, apenas então lhe dirigindo a palavra: - Senta aí que não vais dormir sem um mate pra esquentar. Pode deixar que eu trago os teus cavalos depois, vão passar a noite muito bem! O rancho é melhor que essa minha casa.

Conversaram um pouco sobre o que levavam meu bisavô Carlos até ali, o que foi o suficiente para se esquentarem. Carlos, depois de muita insistência por parte da velha, deitou-se no sofá e deixou que ela cuidasse dos seus cavalos. Estava tão exausto que antes que ela voltasse já havia adormecido profundamente.

Pensando ser meio da noite acordou com um ruído estranho. Lentamente recobrava os sentidos, e ao perceber que se tratava do mesmo som metálico despertou-se prontamente. O fantasma o seguira até ali! E o som estava mais próximo do que nunca estivera. Olhou desesperadamente à sua volta, e, para o seu maior pavor, viu o olhar assassino diretamente para si por meio de uma das frestas. Teve vontade de gritar para que a criatura saísse logo dali, mas não teve forças para tanto. O horror havia lhe tirado a voz. Correu então para o quarto da senhora, que parecia realmente morar sozinha. Ela, no entanto, não estava em sua cama. Temeu o pior: o monstro havia a assassinado enquanto ela fora buscar os seus cavalos. O ruído tornava-se mais e mais audível, e, no entanto, não havia a presença do fantasma pelas frestas... Não, ao virar-se para o corredor conferiu o que mais temia: ele já estava ali dentro, entrando no quarto. Estava completamente encurralado e sem qualquer chance de fuga. Mediante tamanho terror sacou a sua adaga, mirando-a contra o seu adversário. O olhar da criatura fez um frio interno tomar-lhe todo o corpo, um frio ainda pior que o que fazia na rua. A criatura elevava o machado ensanguentado com a ajuda do braço antes inerte. Urrava fantasmagoricamente enquanto realizava o que parecia ser um hercúleo esforço. Meu bisavô, porém, num ato de coragem correu contra a criatura afim de apunhalar-lhe no peito. Tinha os olhos fechados e a respiração presa. Ao abrir os olhos, no entanto, viu que em nada havia atingido, tampouco algum fantasma lhe aparecia. Ninguém além dele próprio estava naquele quarto.

Não demorou muito para que aparecesse no quarto a senhora que o havia hospedado, certamente desconfiada do homem que protegia em sua casa: - O que faz no meu quarto, homem? -, perguntou com um início de irritação. Meu bisavô, sem saber o que responder, perguntou a ela se não havia visto há pouco um homem de machado entrar na casa.

- Tá louco? Não faz nem dez minutos que te deixei para ir trazer os teus cavalos! Que homem de machado queria que eu estivesse visto a essa hora da noite? -, ela respondeu, aparentemente com sinceridade. De fato, dormiu com tranquilidade o resto da noite e na manhã seguinte já tinha forças para seguir o seu caminho. Tomou café, agradeceu a sua hospedeira e partiu.

Bem, que eu me recorde ele não reencontrou o filho, até porque nunca conheci nenhum irmão da minha avó, só sei que na volta o meu bisavô Carlos parou novamente naquela cidade para agradecer novamente a senhora que o abrigara naquela noite, e foi quando ficou sabendo que, exatamente na noite imediatamente posterior ao de sua hospedagem, a velha havia sido assassinada a golpes de machado, e até então o culpado não havia sido encontrado. E ainda, segundo a minha avó, no leito de morte, o meu bisavô - em meio ao que ela julgou ser um delírio - sussurrou a ela: - Ele tá ali fora... Ouço o machado dele sendo arrastado.

(Janeiro de 2010)

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