Se foi um fantasma ou se foi uma ilusão
fantasmagórica da consciência ou se foi
um bêbado que não deveria estar naquele
lugar naquela hora (
) [não importa, pois]
nunca mais se ouviu falar dele.
(Visita para o Sr. Testante, Charles Dickens)
Ontem, quando estávamos ao redor da fogueira, eu me surpreendi com
a minha memória! Nunca pensei que me lembraria dessa história
com tanta perfeição, ainda mais por ter me sido contada há
muitos anos por minha avó. Aliás, recordo ainda dela jurando ser
a mais pura verdade... Verdade ou não, é uma boa história
para se contar em situações como esta, portanto a transcrevo aqui
afim de não correr o risco de esquecê-la:
Passava Carlos, meu bisavô, por uma cidade do interior do Rio Grande do
Sul numa noite de rigoroso inverno. Chegou aos seus ouvidos o boato de que alguns
rapazes que foram para a guerra já haviam chegado no porto de Santos
e que em poucos dias deveriam chegar em Porto Alegre, onde Carlos esperava encontrar
o seu filho mais velho, que há muito havia ido para a Europa, e que no
fim das contas soube ter entrado na guerra. De qualquer forma, o frio congelava
os ossos e a neblina densa não permitia que se visse um palmo à
frente do nariz. Mesmo os cavalos à frente da carroça pareciam
indispostos em seguir em frente em meio a tal contrária situação.
Meio a contragosto, mas aparentemente sem opção, meu bisavô
decidiu por procurar por uma hospedaria.
Tinha, contudo, sérios problemas nessa sua busca: além da pouquíssima
visibilidade, era analfabeto. Era um daqueles velhos vigorosos de antigamente
que chegavam ao fim da vida ainda parecendo no auge da juventude, e além
do mais prezava o que se dizia "origem guerreira" por aquelas bandas,
sempre carregando uma adaga consigo. Para a sua mente bruta, deveria ser uma
hospedaria qualquer prédio grande e velho que tivesse uma placa na frente.
Guiava a sua carroça pelo que parecia ser a rua principal daquela cidadezinha,
mas as casas eram tão afastadas pelas plantações que de
uma a outra havia longos espaços vazios, completamente obscurecidos e
nebulosos, e sem sinal nenhum de uma hospedaria com um rancho para abrigar os
seus cavalos. Já pensava ele que se tardasse demais em encontrar alguma,
seria obrigado a abusar da hospitalidade de algum morador das redondezas. Contudo,
enquanto cogitava isso ouviu um estranho ruído na rua que parecia deserta.
Antes ouvia-se apenas sapos do banhado coaxando e algumas árvores noturnas
a ruflar assas, mas aquele ruído não tinha nada a ver com isso:
era um ruído de algum objeto metálico sendo arrastado no chão,
e o som não parecia distante. Pensou logo que deveria ser um morador
ainda desperto, talvez zelando pelos seus animais, mas, como ninguém
lhe disparou nenhuma palavra, tomou ele a iniciativa.
- Boa noite, camarada! - bradou em tom amistoso, sem receber qualquer resposta.
O ruído metálico, no entanto, permanecia e cada vez mais se aproximava.
Ora, podia ser um ladrão de estrada, por que não? Empunhou a adaga
e esperou que alguém aparecesse, mas o som arrastado permanecia, incessante,
cada vez mais próximo. Tentou mais uma vez comunicar-se: - Olá!
Quem vem lá? -, mas novamente resposta alguma recebeu. Os cavalos, entretanto,
logo empacaram, agitados, e a razão estava logo à frente. Naquela
mesma estradinha de chão batido vinha em sua direção uma
figura de horrenda aparência.
Sua pele era acinzentada e tinha uma enorme corcunda, e na cabeça trazia
mechas dispersas de cabelo, como se a maior parte dos seus cabelos tivessem
sido arrancada com as mãos, e os seus olhos pareciam débeis e
opacos, enquanto de sua boca torta escorria um fio de sangue, este também
visível nos trapos rotos que trajava. Um dos seus braços pendia
inerte enquanto o outro arrastava o que parecia ser um pesado machado que desde
o cabo estava coberto também de sangue.
Diante de tão horrível visão o sangue de meu bisavô
Carlos pareceu congelar, tirando-lhe toda a coragem de que tanto se orgulhava.
Ficou sem reação, sem saber o que fazer, permanecendo, então,
ali parado, olhando para o homem que vinha mancando em sua direção.
O seu olhar incerto e sem brilho por um instante pareceu fitá-lo, mirando-o,
mas nem por isso mudando o seu passo. Com o mesmo vagar seguia em direção
à carroça. Enquanto isso, meu bisavô já tomara novamente
as rédeas afim de seguir o caminho inverso e escapar da rota daquele
demoníaco ser. Em instantes disparava na direção contrária
à do monstro, só então percebendo que ofegava.
Sem se importar de estar retrocedendo, seguiu sem hesitação o
caminho pelo qual seguira, como se estivesse pronto a voltar para cada. No entanto,
repentinamente, o mesmo som metálico invadiu-lhe os ouvidos. Apavorou-se.
Como aquilo havia acontecido? Estava certo de que em nenhum instante aquela
criatura o havia ultrapassado, e, contudo, já logo surgia do meio da
névoa o medonho espírito. Sim, não tinha mais o olhar débil
- agora o olhava fixamente, desejoso por alcançá-lo. Tinha agora
em seus olhos um brilho assassino.
Meu bisavô abandonou desesperado a sua carroça, correndo em direção
à primeira casa que viu. Era uma casa de madeira, de tábuas irregulares
com tremendas frestas por entre elas, embora isso não fosse incomum.
Estaria seguro abrigado, tinha certeza disso. Bateu freneticamente na porta,
até que uma senhora abriu a porta. Trazia no rosto as marcas do sono
bruscamente interrompido, mas igualmente nele trazia um sorriso simpático,
como se fosse a coisa mais comum ser acordado no meio de uma noite como aquela.
Meu bisavó, no entanto, a alarmou: - Senhora, desculpa incomodar o teu
sono, mas teria como dar abrigo a este homem? Procurava por uma hospedaria,
mas um espírito do mal corta qualquer caminho que eu tome. Não
ouve o barulho? -, ao perguntar fez silêncio. O ruído antes audível,
contudo, cessara. Indiferente à feição descrente da mulher,
sentiu o coração aliviado ao perceber que havia acabado a perseguição.
- Deve ter sido coisa da minha imaginação, mas ainda assim peço
a hospedagem, para mim e para os meus cavalos logo ali adiante. -, ao que a
senhora abriu, sem qualquer palavra, a porta para que entrasse, apenas então
lhe dirigindo a palavra: - Senta aí que não vais dormir sem um
mate pra esquentar. Pode deixar que eu trago os teus cavalos depois, vão
passar a noite muito bem! O rancho é melhor que essa minha casa.
Conversaram um pouco sobre o que levavam meu bisavô Carlos até
ali, o que foi o suficiente para se esquentarem. Carlos, depois de muita insistência
por parte da velha, deitou-se no sofá e deixou que ela cuidasse dos seus
cavalos. Estava tão exausto que antes que ela voltasse já havia
adormecido profundamente.
Pensando ser meio da noite acordou com um ruído estranho. Lentamente
recobrava os sentidos, e ao perceber que se tratava do mesmo som metálico
despertou-se prontamente. O fantasma o seguira até ali! E o som estava
mais próximo do que nunca estivera. Olhou desesperadamente à sua
volta, e, para o seu maior pavor, viu o olhar assassino diretamente para si
por meio de uma das frestas. Teve vontade de gritar para que a criatura saísse
logo dali, mas não teve forças para tanto. O horror havia lhe
tirado a voz. Correu então para o quarto da senhora, que parecia realmente
morar sozinha. Ela, no entanto, não estava em sua cama. Temeu o pior:
o monstro havia a assassinado enquanto ela fora buscar os seus cavalos. O ruído
tornava-se mais e mais audível, e, no entanto, não havia a presença
do fantasma pelas frestas... Não, ao virar-se para o corredor conferiu
o que mais temia: ele já estava ali dentro, entrando no quarto. Estava
completamente encurralado e sem qualquer chance de fuga. Mediante tamanho terror
sacou a sua adaga, mirando-a contra o seu adversário. O olhar da criatura
fez um frio interno tomar-lhe todo o corpo, um frio ainda pior que o que fazia
na rua. A criatura elevava o machado ensanguentado com a ajuda do braço
antes inerte. Urrava fantasmagoricamente enquanto realizava o que parecia ser
um hercúleo esforço. Meu bisavô, porém, num ato de
coragem correu contra a criatura afim de apunhalar-lhe no peito. Tinha os olhos
fechados e a respiração presa. Ao abrir os olhos, no entanto,
viu que em nada havia atingido, tampouco algum fantasma lhe aparecia. Ninguém
além dele próprio estava naquele quarto.
Não demorou muito para que aparecesse no quarto a senhora que o havia
hospedado, certamente desconfiada do homem que protegia em sua casa: - O que
faz no meu quarto, homem? -, perguntou com um início de irritação.
Meu bisavô, sem saber o que responder, perguntou a ela se não havia
visto há pouco um homem de machado entrar na casa.
- Tá louco? Não faz nem dez minutos que te deixei para ir trazer
os teus cavalos! Que homem de machado queria que eu estivesse visto a essa hora
da noite? -, ela respondeu, aparentemente com sinceridade. De fato, dormiu com
tranquilidade o resto da noite e na manhã seguinte já tinha
forças para seguir o seu caminho. Tomou café, agradeceu a sua
hospedeira e partiu.
Bem, que eu me recorde ele não reencontrou o filho, até porque
nunca conheci nenhum irmão da minha avó, só sei que na
volta o meu bisavô Carlos parou novamente naquela cidade para agradecer
novamente a senhora que o abrigara naquela noite, e foi quando ficou sabendo
que, exatamente na noite imediatamente posterior ao de sua hospedagem, a velha
havia sido assassinada a golpes de machado, e até então o culpado
não havia sido encontrado. E ainda, segundo a minha avó, no leito
de morte, o meu bisavô - em meio ao que ela julgou ser um delírio
- sussurrou a ela: - Ele tá ali fora... Ouço o machado dele sendo
arrastado.
(Janeiro de 2010)