Não rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti - as noites eu velei chorando,
Por ti - nos sonhos morrerei sorrindo!
(Álvares de Azevedo)
Quando o sol surgia na linha do horizonte, Abel já o assistia ao seu
nascer pela janela, com uma xícara de café na mão, sentado
numa pequena mesa - só para uma pessoa. E isso porque não havia
motivo para mais: naquele fim de mundo dos pampas era apenas ele e sua sombra,
toda manhã a tomar café e ler as notícias do jornal, embora
as únicas novidades no jornal fossem as crônicas, pois todo o resto
era o mesmo enredo com diferentes personagens; tinha a experiência de
mais de meio século vivido.
Enquanto saboreava o sabor amargo do café sem açúcar, olhava
para a estante a ele próxima, toda empoeirada, que tinha apenas uma meia
dúzia de livros, alguns álbuns antigos de fotografias e um retrato.
Ora, aquele retrato era a sua janela em um quarto sem ar.
A fotografia era monocromática e já amarelecida pelo tempo, mas
tão viva que quase acompanhávamos os movimentos: de pé,
ao lado de uma poltrona, um homem de terno, aparência varonil e bela,
de cabelos curtos e escuros, como também os olhos, embora a fisionomia
dura, olhava ternamente para a mulher sentada ao seu lado enquanto segurava
a mão dela, que repousava sobre o braço da poltrona. Ela também
o olhava, o rosto inclinado para cima, com a sua mão fina e notavelmente
alva sob a dele, o olhar cujo azul podia ser notado até mesmo naquela
fotografia tão antiga e danificada, além da cabeleira loira e
majestosa que lhe caía sobre os ombros. A sua aparência toda era
a da mais pura fragilidade: um sopro seria o suficiente para que desvanecesse,
impressão ainda fortalecida pelo vestido vaporoso que vestia.
Em vida chamara-se Benta, mulher sem igual. Abel a conhecera num baile de Nossa
Senhora dos Navegantes, em Porto Alegre, quando a festa ainda era um grande
atrativo para todos e não só apenas aos marinheiros d'água
doce, como são por alguns ainda chamados. Os fatos ocorreram de forma
dignamente novelesca, com o lenço caído logo pego pelo jovem que
ali fora em busca de uma noite de diversão, mas acabara encontrado muito
mais do que esperava.
Os meses seguintes foram os de maior felicidade na vida de Abel. Trocavam cartas,
confidências, juras de amor, e em pouco tempo já noivavam - sem
qualquer complicação. Pelo contrário, os pais apoiavam
os dois jovens que haviam tido a sorte de se encontrarem, um perfeito ao outro.
Nos fins de semana gostavam de passear no Parque da Redenção,
onde passavam os dias a se divertir como duas crianças, olhando as flores
sempre tão coloridas por ali - e Abel sempre surpreso com o conhecimento
que ela detinha sobre essas. Finalizavam o fim de semana com a missa dominical,
onde ficavam lado a lado, junto aos pais. Benta gostava de chamá-lo de
doutorzinho, pois ele estudava Medicina. "Meu doutorzinho
vai cuidar de mim quando eu ficar doente", brincava sempre. Casar-se-iam
logo depois que ele se formasse. E os anos assim se passaram, os quais a felicidade
tornou tão efêmeros e, ao mesmo tempo, eternos.
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Abel então se levantou, pois já havia se demorado muito na mesa.
Tinha ainda que ir ao mercado para comprar a comida para a semana, e ficava
um pouco longe. Tudo ficava um pouco longe.
Na saída notou que o inverno enfim se apresentava por aquelas bandas,
o vento minuano congelava-lhe os ossos velhos. Voltou para casa e pôs
mais um casaco, pois talvez mais tarde esfriasse ainda mais, talvez chovesse.
É, certamente choveria. Contudo, Abel apreciava o inverno. Benta amara
enquanto vivia. Ela costumava sair cedo da cama nos dias mais frios do ano para
ver o gramado coberto pela geada, e aquilo parecia alegrá-la por todo
o resto do dia: fazia bolos e doces quando estava animada. Mas raramente saía
de um inverno sem estar doente, mas pelo menos passava de agosto e aguentava
até o próximo ano.
Entretanto, chegou um ano em que as coisas ocorreram diferentemente. O inverno
chegara mais rigoroso naquele ano, o último ano de estudos de Abel, e
Benta quedou doente como nunca havia estado. No princípio creram que
seria como nos outros anos, mas as primeiras semanas se passaram e Benta continuava
na cama: mais fraca, mais pálida, e aparentava ainda mais frágil
que o comum. Abel largou os estudos e passava dias inteiros sentado ao lado
dela. No primeiro dia em que ele ali ficou, ela lhe sorriu e disse: "Eu
não disse que o meu doutorzinho ia cuidar de mim quando ficasse doente?"
Ele beijou a sua mão, as lágrimas nos olhos. Era perceptível
a ele que ela não só não melhorava como piorava com o tempo,
e todos os anos de estudo não faziam nenhuma diferença agora,
porque simplesmente não sabia como salvá-la.
Ela não sobreviveu àquele agosto. "Era um anjo que voltava
ao céu", como diziam lamentosos os amigos e parentes, sentindo verdadeiramente
a perda de tão boa mulher. Foi enterrada vestida de noiva, como pedira
à sua mãe em segredo certa vez. Ao vê-la vestida de branco,
usando o vestido que usaria em suas bodas, aquela mulher de alma tão
pura e santa, e ainda tão bela como havia sido em vida, as lágrimas
começaram a correr pelo rosto copiosamente.
Após a morte da noiva passou por diversas fases: tentou esquecê-la
em viagens pela Europa, na vida boêmia, na religião, mas nada conseguiu.
A sua última tentativa foi a definitiva: conformado, mudou-se para o
interior do seu estado, onde viveria sozinho, apenas com a Natureza e a lembrança
de sua amada.
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Lembrar-se de tudo isso lhe fazia doer o coração.
Já voltava para casa, quatro sacolas de compras: duas em cada mão.
Tinha razão, choveria em breve para acrescentar ao frio que já
fazia, era melhor que se apressasse em chegar em casa. As árvores já
balançavam por efeito da ventania, e a chuva se anunciava mais forte
do que Abel imaginara. Correu para chegar em casa antes da chuva embora o fôlego
não ajudasse.
Mal pisou em sua casa, o céu desabou. Pôs as compras encima da
mesa e sentou-se na poltrona, a mesma do retrato, a fim de recuperar o fôlego,
voltando a olhar a foto dos seus tempos felizes. O céu havia escurecido
de repente, mas deixou assim ficar, sem se levantar para acender a lâmpada.
Fechou os olhos por um instante. Estava cansado. Talvez dormisse ali mesmo.
No entanto, uma luz o incomodava através das pálpebras. Uma trovoada,
possivelmente. Mas não, nada ouviu, e continuava a receber uma luz através
das pálpebras. Não quis abrir os olhos. Sentiu uma mão
delicada e calorosa segurar a sua, repousada no braço da poltrona. Ouviu
um sussurro: "Vem, meu doutorzinho, vamos ficar juntos."
(Outubro de 2009)