"Quem é você?" - perguntou a Lagarta.
(Alice no País das Maravilhas, Lewis Carrol)
Tudo o que a sua vista alcançava era branco: as paredes, as roupas dos
outros e até mesmo a sua própria, e sempre fora assim, em todos
esses anos em que ali vivia prisioneiro. Já não detinha qualquer
noção sobre o tempo ou clima, pois para ele era sempre um quarto
branco, e nada mais.
"Nada mais", digo, mas era um branco transcendental, que o elevava
às alturas dos céus ou ao pesado vazio do inferno. De qualquer
forma, mesmo essa viagens dignas de Dante acabaram por se tornar uma maçante
rotina: a sua fascinação sempre fora a vida, e não o pós-morte.
De que adiantava ter os céus a um passo?
Viu-se então, diante de outro alguém vestido de branco, um outro
alguém sem rosto, pois nem o seu próprio reconheceriam a essa
altura, tão menos alguma outra pessoa teria alguma identidade perante
ele. Contudo, o ser vivia, podia ver, ouvir e sentir que vivia! O seu coração
batia, o ar invadia os seus pulmões, os seus músculos trabalhavam...
Vivia. Tinha ali a sua primeira chance, depois de tanto tempo, de apreciar a
vida, de fazer o seu recreio como não o fazia há anos. E assim
o fez: com a sua mão poderosa tateou, tal como cego, até que alcançasse
o pescoço da pessoa que via, sem que essa reagisse ao seu ato. Apertou
levemente o pescoço da vítima, e sentiu ali o pulsar da viva que
há tanto buscava, pulsar este que se fortalecia quanto mais apertava
a sua mão contra o pescoço, e assim apertava-o mais e mais.
A vítima era como se estivesse morta, por mais que lhe sentisse o pulso,
uma vez que nada fazia. Talvez gostasse também de brincar com a vida;
talvez também admirasse os seus mistérios, a sua dúbia
face de fragilidade e preciosidade. Perante tudo aquilo, mantinha o seu sorriso
sinistro, perdido em meio ao branco que os rodeava. Era como se apenas a sua
cabeça estivesse suspensa, apenas segura pela mão forte que a
segurava logo abaixo a cada instante mais forte. O ar então já
não entrava mais em seus pulmões, o seu corpo doía, os
seus olhos perdiam o foco e mesmo os seus lábios haviam desformado o
anterior sorriso. Apenas continuava a sentir a vigorosa força que lhe
oprimia a garganta.
Foi chegado o instante em que os seus sentidos se perderam e sua identidade
inexistente também o fez, invadia-lhe a mente vários pensamentos
vagos e vaporosos que logo se dissipavam: sobrava-lhe apenas o pavor, um pavor
que por si só enlouqueceria alguém são. O branco das suas
vestes e das paredes que o cercavam começaram a inundar-lhe todo o corpo,
os olhos. Era um branco glacial que lhe gelou até mesmo o suor, que escorria
pelas têmporas, juntamente a todo o resto do seu corpo. O oxigênio
já não era necessário, apenas aquele branco absoluto o
dominava, e foi então que a mão que comprimia a sua garganta perdeu
toda a força, quedando inerte, juntamente ao seu corpo sem vida jazido
diante de um espelho.
(Dezembro de 2009)