A Garganta da Serpente
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Conto Branco

(William A. Rodrigues)

"Quem é você?" - perguntou a Lagarta.
(Alice no País das Maravilhas, Lewis Carrol)

Tudo o que a sua vista alcançava era branco: as paredes, as roupas dos outros e até mesmo a sua própria, e sempre fora assim, em todos esses anos em que ali vivia prisioneiro. Já não detinha qualquer noção sobre o tempo ou clima, pois para ele era sempre um quarto branco, e nada mais.


"Nada mais", digo, mas era um branco transcendental, que o elevava às alturas dos céus ou ao pesado vazio do inferno. De qualquer forma, mesmo essa viagens dignas de Dante acabaram por se tornar uma maçante rotina: a sua fascinação sempre fora a vida, e não o pós-morte. De que adiantava ter os céus a um passo?

Viu-se então, diante de outro alguém vestido de branco, um outro alguém sem rosto, pois nem o seu próprio reconheceriam a essa altura, tão menos alguma outra pessoa teria alguma identidade perante ele. Contudo, o ser vivia, podia ver, ouvir e sentir que vivia! O seu coração batia, o ar invadia os seus pulmões, os seus músculos trabalhavam... Vivia. Tinha ali a sua primeira chance, depois de tanto tempo, de apreciar a vida, de fazer o seu recreio como não o fazia há anos. E assim o fez: com a sua mão poderosa tateou, tal como cego, até que alcançasse o pescoço da pessoa que via, sem que essa reagisse ao seu ato. Apertou levemente o pescoço da vítima, e sentiu ali o pulsar da viva que há tanto buscava, pulsar este que se fortalecia quanto mais apertava a sua mão contra o pescoço, e assim apertava-o mais e mais.

A vítima era como se estivesse morta, por mais que lhe sentisse o pulso, uma vez que nada fazia. Talvez gostasse também de brincar com a vida; talvez também admirasse os seus mistérios, a sua dúbia face de fragilidade e preciosidade. Perante tudo aquilo, mantinha o seu sorriso sinistro, perdido em meio ao branco que os rodeava. Era como se apenas a sua cabeça estivesse suspensa, apenas segura pela mão forte que a segurava logo abaixo a cada instante mais forte. O ar então já não entrava mais em seus pulmões, o seu corpo doía, os seus olhos perdiam o foco e mesmo os seus lábios haviam desformado o anterior sorriso. Apenas continuava a sentir a vigorosa força que lhe oprimia a garganta.

Foi chegado o instante em que os seus sentidos se perderam e sua identidade inexistente também o fez, invadia-lhe a mente vários pensamentos vagos e vaporosos que logo se dissipavam: sobrava-lhe apenas o pavor, um pavor que por si só enlouqueceria alguém são. O branco das suas vestes e das paredes que o cercavam começaram a inundar-lhe todo o corpo, os olhos. Era um branco glacial que lhe gelou até mesmo o suor, que escorria pelas têmporas, juntamente a todo o resto do seu corpo. O oxigênio já não era necessário, apenas aquele branco absoluto o dominava, e foi então que a mão que comprimia a sua garganta perdeu toda a força, quedando inerte, juntamente ao seu corpo sem vida jazido diante de um espelho.

(Dezembro de 2009)

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