As chamadas mulheres boas podem ter coisas terríveis
dentro de si: loucos rompantes de irresponsabilidade,
autoritarismo, ciúmes e maldade.
(O Leque de Lady Windermere - Oscar Wilde)
Não sei se algum dia alguém dará crédito a essa
história, um crédito maior que o dado a uma ficção,
mas se nesse momento paro para escrevê-la é na esperança
de que sirva de aviso a alguém de que nenhum homem merece crédito
e devem ser temidos justamente os que mais parecerem merecê-lo.
Tudo começou há duas semanas, quando recebi em minha casa um homem
de aparência grave, um velho amigo do meu falecido pai. Chamava-se Bertram,
um empresário riquíssimo da Grande São Paulo e muito influente
nesta região, e eu devia a sua visita justamente ao luto de meu pai,
morto então há uma semana. Acompanhava-o sua esposa, Ângela,
uma mulher sensual de cabelos ruivos, encantadora no seu modo de ser. Ainda
lembro-me do nosso jantar como se tivesse ocorrido hoje mesmo: tendo conhecimento
da personalidade que receberia em minha casa, havia pedido aos meus empregados
uma mesa impecável, e o mais refinado gosto não poderia negar
que o era. Meus convidados foram acompanhados à sala de jantar logo que
chegaram.
Na realidade, é justo informar que embora ainda lamentando a morte de
meu pai, não deixava de ver nessa visita uma grande oportunidade para
uma aliança próspera com tão célebre pessoa; os
negócios de meu pai por mim herdados eram maiores do que o estimado e
temia dirigí-los sozinho, ou pior, ser manipulado pelos velhos que viviam
cercando meu pai, diferentemente de Bertram, que jamais interferira em seus
negócios.
- Senhor Bertram, é um prazer conhecê-lo, e também a sua
adorável esposa. - então beijei a mão de Ângela,
tão pálida e macia que me fazia entender o seu nome: a mulher
era um anjo.
Bertram, no entanto, riu com a minha formalidade e abraçou-me forte.
Fiquei surpreso com a atitude, mas mantive a postura.
- Meu jovem, ainda lembro daquele pequeno correndo por esta casa deixando louco
o teu velho pai. Um homem agora... Fazem o que? Vinte anos? Parece-te muito
com o teu pai quando ele era novo.
Sorri. Sua esposa o olhava calada. Era certamente bem mais jovem que ele; na
verdade, não devia ser muito mais velha que eu. Ele continuou:
- Uma tragédia, não? Soube que foi assassinato. E justo um homem
como o seu pai! Lamentei muito quando soube, e acho que não será
nenhuma vergonha admitir que até chorei. Éramos grandes amigos!
Saberia me dizer como aconteceu?
- Na realidade a investigação não chegou a nenhum resultado
senhor: sem pistas, sem suspeitos. O corpo do meu velho pai, mutilado em um
beco escuro, foi a única coisa encontrada. Pode ter sido qualquer um.
- Compreendo. É uma lástima realmente.
Em seguida convidei-os à mesa e continuamos ainda por um tempo a conversar
sobre o meu falecido pai. Bertram comentava sobre as qualidades do velho. Sua
bela esposa, contudo, mantinha-se quieta durante todo o tempo... Não,
é necessário contar tudo! Ela me fitava calorosamente, o que eu
respondia em pé de igualdade.
Entretanto, eu me esforçava para olhá-lo com regularidade, inclusive
apoiando o queixo sobre as mãos - assim tentando simular atenção
e interesse -, por mais que eu estivesse ouvindo apenas o suficiente para responder
algumas eventuais perguntas. Eram todas banais, ainda sobre meu pai, e só
encontrei neste assunto algum motivo de interesse quando enfim decidiu elogiar
meu pai sobre o quão bom administrador fora em vida, e só então
minha atenção foi totalmente dirigida a Bertram, embora eu notasse
que Ângela ainda me dirigia o mesmo olhar incessantemente, sem se importar
com a presença do marido.
- Sim, senhor Bertram, este é um assunto sobre o qual eu gostaria de
tratar com o senhor. Como você bem sabe, sou o único herdeiro de
meu pai e são muitas as pessoas que me rodeiam por este motivo, e temo
que tais homens não sejam confiáveis; meu pai os domava, mas eu
ainda sou demasiado inexperiente...
- Permita-me interferir. Eu concordo plenamente com você, pois durante
vários anos aconselhei seu pai a se afastar destes homens, mas me parece
que você tem razão quando diz que ele os domava, pois ele realmente
se deu bem, mesmo que mal relacionado.
- Pois sim, e é por isso que eu gostaria de pedir a tua ajuda... - por
que ele aceitaria, tendo uma propriedade muito maior? - ... Em nome da sua amizade
com meu pai. - agora cri que havia acertado em cheio.
- Meu rapaz, nunca entendi porque seu pai não me havia pedido isso antes,
pois poderíamos ter feito uma próspera aliança. Mas agora
já são altas horas e nunca me estendi tanto em um jantar (um senhor
jantar, devo dizer), e já é tempo de voltar à minha casa.
- Bem, há muitos quartos nessa casa, e você poderia...
- Ah não, meu rapaz, mas rebato o convite: vá a minha casa no
próximo fim de semana e poderemos tratar desses assuntos.
Eu estava confiante do resultado. Uma aliança com Bertram seria todo
o necessário para que os negócios fossem ao céu! Entretanto,
não contava com o que me esperava em sua casa.
No momento em que a vi lembrei que já a conhecia, e então pude
supor que na infância meu pai já me havia trazido até aqui
para visitar o Sr. Bertram. Este logo veio, não me atendendo por intermédio
de empregados, mas sim diretamente, com sua esposa ao lado.
- É um prazer revê-los. - disse eu logo que me aproximei.
Bertram repetiu a saudação anterior: rindo novamente da minha
polidez, abraçou-me forte. Entramos na casa logo depois disso... Não,
ainda antes repeti um ato pelo qual esperei a semana inteira... Com grande vagar
peguei a mão de Ângela e a levei aos meus lábios, beijando-a
lentamente. Olhei-a e percebi que também me olhava como se também
tivesse passado as noites apenas pensando em mim. "Talvez tivesse"
- pensei eu.
Passamos o dia juntos, conhecendo algumas das incríveis coleções
de Bertram, ou ainda conversando sobre assuntos recentes, alguns até
relacionados à economia, mas sem jamais entrar de fato no assunto que
eu tanto esperava.
Contudo, tive todo um dia cheio de calorosos olhares. Era uma aventura os nossos
olhares de profundo desejo, os toques intencionais que saíam como acidentes,
as palavras com intenções disfarçadas, e tudo em frente
ao Sr. Bertram; por um dia inteiro a sua mulher e seu futuro sócio planejaram
sua traição bem debaixo dos seus olhos, e ele ainda me respondia
como um amigo de longos anos.
No jantar, enfim consegui que entrássemos na questão de futuros
negócios, e foi muito mais fácil do que eu imaginara: durante
a semana ele já fizera todo um planejamento de apoio mútuo entre
nossas empresas e de como cada um de nós poderia diminuir os gastos do
outro e ainda aumentar os lucros, ao menos segundo o que ele me dizia, pois
eu nada havia entendido de tudo aquilo. Ele me assegurou, no entanto, que se
responsabilizaria em pôr tudo nos trilhos, tomando a dianteira do projeto.
Confesso que naquele momento temi que talvez eu me tornasse uma marionete em
suas mãos, mas confiei. Eu daria um jeito de ficar de olho no procedimento
do nosso "projeto".
Ainda durante o jantar o telefone tocou. Uma empregada que estava ali próxima
à mesa do jantar atendeu, falando tão baixo que não pude
ouvir do que se tratava, mas sua expressão me pareceu curiosa, sentimento
este que só se fortaleceu ao ver a rapidez com quem Bertram se levantara
da mesa depois de receber o telefone da empregada. Parecia chocado. Sem dar
resposta alguma além de afirmações vagas ele desligou,
e então se aproximou de mim, abraçando-me novamente:
- Sinto muito meu caro amigo, mas uma urgência me espera no escritório.
Teremos tempo para conversar depois. Sei que me desculpará pela indelicadeza:
fique hospedado em minha casa. Estou certo de que Ângela saberá
ser uma perfeita anfitriã.
E com essas palavras ele abandonou a casa, sem mais nem menos.
Fiquei um tanto aturdido com o que acabava de acontecer, e por alguns instantes
sequer me movi, fazendo-o Ângela. Agora estávamos só nós
dois e eu notava que agora não apenas o seu olhar, mas todo o seu corpo
emanava sensualidade. Usava um longo vestido vermelho de tecido vaporoso, e
então andava com determinação em minha direção:
os seus olhos pareciam me puxar a ela. Este olhar cobiçoso me fez pensar,
por um instante, que me atiraria na superfície mais próximo que
pudesse encontrar, e, contudo, ela jogou seus braços em meus ombros e
aproximou o seu rosto lentamente do meu, como se fosse me beijar, até
que, desviando o curso, os seus lábios tocaram em minha orelha, e então
sussurrou:
- Estamos a sós agora...
O seu perfume me hipnotizava e sua voz me soava como o canto das sereias mitológicas,
que atraíam ao mar os homens seduzidos pelos seus cantos, e ela continuava:
- Agora eu sou toda sua, e você é todo meu.
Isso por pouco não me derrubou logo de uma vez, mas ainda restava algo
em mim que não fosse desejo naquele instante, então me afastei
um pouco, tentando ser racional:
- Mas e os empregados?
Ela me puxou, exercendo pleno domínio sobre mim, e me beijou tão
ardentemente como eu nunca havia sentido com qualquer outra mulher. Não
sei se chegou a durar um minuto, mas o que senti foi o sabor da eternidade da
qual jamais me fartaria. As suas duas mãos seguravam as minhas - as suas
macias e pálidas mãos. Ela sussurrou novamente, com um sorriso
lascivo.
- De todos nessa casa, sou a mais inocente; e eu já não disse?
Agora você é todo meu...
E tocou novamente os seus lábios nos meus, mas com tanta rapidez que
além de não saciar o meu desejo, apenas o incitava mais. Ela começou
a me guiar, andando para trás, os seus olhos quentes se aprofundando
nos meus. Eu quedava totalmente dominado, e em nenhum momento sequer eu a impedi
me conduzir como quisesse.
Naquela noite senti como se o meu corpo e alma se elevassem aos céus,
motivados por um prazer quase concreto e palpável. Naquele instante cheguei
a pensar que eu havia nascido apenas para aquele instante.
No dia seguinte, ao acordar, o café da manhã já estava
servido, do qual usufrui sem parcimônia, como se estivesse em minha própria
casa. Ângela me acompanhava e em momento algum ela me deu qualquer sinal
de que eu não devia agir assim.
O meu grande susto foi ao receber o jornal de um dos empregados - que já
me tratava como provavelmente trataria a Bertram, talvez por ordens de Ângela.
O jornal tinha já na manchete uma terrível cena: Bertram morto,
mutilado. As mesmas vestes que usava ao sair de casa na noite anterior, mas
agora empapadas de sangue; os braços e pernas não mais estavam
juntos ao tronco, tal como a cabeça, repleta de cortes de lâmina
e de feição horrorizada, talvez a mesma da hora da morte, mas
cujos traços me permitiam assegurar que aquele era o mesmo Bertram com
quem eu havia conversado na última noite.
Fiquei perplexo, e em seguida atemorizado: duas pessoas de convívio tão
direto a mim haviam sido assassinadas de modo tão semelhante, e nenhum
suspeito era apontado. Li e reli a matéria, mas não havia engano:
ele fora identificado pelos documentos que carregava, e pelo visto não
havia sequer chegado ao escritório.
Mostrei então a foto a Ângela, temeroso da reação
que ela poderia ter. E de todas as reações possíveis a
que presenciei foi a que de fato mais poderia me atemorizar: ela se manteve
fria, sem nenhuma reação esperada. Nem fez questão de ler
a matéria. Apenas continuou a tomar o seu café com leite com a
mesma tranquilidade. Pude ouvir apenas um murmúrio:
- Viúva novamente...
"Novamente?", pensei, "Que tipo de mulher é esta?"
Ela então se dirigiu a mim em uma voz amável:
- Gostou, meu amor? Agora sou toda tua. Tudo o que era dele agora é meu,
e portanto teu! - sorriu maliciosamente.
Meu corpo se fez inteiramente frio, e posso apostar que fiquei pálido
também. Eu não era tão ingênuo a ponto de acreditar
que um jantar em minha casa havia sido o suficiente para se apaixonar por mim.
Jamais! O que ela queria era o patrimônio de meu pai, o MEU patrimônio!
Contudo, eu não poderia demonstrar o que constatara a ela, pelo menos
não enquanto eu estivesse naquela casa. Tive vontade de sair dali no
ato, mas tive consciência de que isso tornaria tudo muito claro para ela.
Eu já a temia. Que reação eu deveria ter? O que ela esperava
de mim? Todas essas dúvidas me tomaram.
- Ângela, você fala sério?
Ela se levantou da cadeira, abraçou-me por trás, estando eu também
sentado, e repousando a cabeça sobre o meu ombro novamente me sussurrou
ao ouvido, como eu já havia notado que era um modo particular seu de
sedução:
- Tudo por ti, meu amor.
Beija-mo-nos.
Desvencilhando-me de seus braços eu segui para um banho relaxante, no
qual pensaria em alguma forma de tomar a minha liberdade. Dali eu deveria fugir,
para o interior, para outro estado, ou país talvez. Foi o que pensei.
Eu tinha certeza de que seria o próximo... Eu já cogitava quantas
vítimas ela já tinha tido antes de mim. Como caíra Bertram
nessa?
Fiquei quase uma hora na banheira, embora em metade desse tempo eu já
tivesse tudo planejado: com a desculpa de ir buscar meus objetos pessoais, sairia
dali logo após o banho, e então ela não me veria nunca
mais.
Saindo do banho, fui ao quarto em que passamos a noite a fim de pegar as chaves
do meu carro. Nem sei o porquê, mas agora reparava que havia vários
retratos antigos de Ângela, e analisei-os um a um. Já me questionando
quando as ondas de horror me abandonariam, percebi-me de que os mesmos empregados
presentes em algumas das fotos eram, sem exceção, os mesmos que
habitavam a mansão.
Como eles podiam servir ainda a Ângela, certamente sabendo dos seus crimes?
Horrorizei-me ao cogitar que eles poderiam ser cúmplices, afinal, ela
não saíra de casa a noite toda, e mesmo assim havia se responsabilizado
pela morte de Bertram. Por que não poderia estaria aqui mesmo o assassino?
Saí do quarto e logo me assustei ao ver que uma das empregadas me esperava
do lado de fora. Ela me avisou:
- A senhora mandou avisar que precisava acertar alguns assuntos com o advogado.
Deve esperar aqui enquanto ela não volta.
"Essa é a chance ideal para fugir daqui", pensei. Corri, então,
em direção à porta, tentando abrí-la: tudo em vão.
A empregada novamente se dirigiu a mim:
- Para se assegurar de que você não a abandonaria, ela trancou
todas as portas, e também mandou avisar que as janelas são gradeadas.
Notei o sorriso cínico no rosto de empregada. Estaria ela imersa em uma
sensação de Déjà vu? Aquilo era a confirmação
das intenções dela, embora eu já não a necessitasse.
Mas tão cedo? Ângela faria algo comigo tão pouco tempo depois
do assassinato do seu marido? Algo estava errado. Tudo aquilo já me havia
provado que ela não seria capaz de uma falha assim. Ela seria facilmente
apontada como suspeita e deveria saber disso. Tantas coincidências não
seriam possíveis nem à mais desgraçada das pessoas.
Aquela calma da empregada me exasperava. Eu não pude ver qualquer lógica
naquela frieza com a qual me dizia que eu estava trancado dentro dessa casa,
com vários empregados que merecem a máxima suspeita. Na verdade,
ainda penso se não teria sido Ângela forçada a agir da forma
como a vi naquela manhã, ou se não teria sido a empregada a ameaçada,
embora eu ainda não consiga compreender como, em qualquer um dos casos,
elas poderiam ter agido tão friamente...
A minha primeira reação naquela hora foi correr, correr e correr.
Creio que meu ato foi tão súbito que ela se surpreendeu, mas não
cheguei a olhar para ela depois que a ultrapassei, portanto não sei dizer
qual reação teve; sei apenas que poucos instantes depois ela gritou
o nome de alguém, nome que não me recordo qual era. O pavor me
tomou então.
O que fazer? Para onde correr? Não sei exatamente o caminho que trilhei,
apenas sei que tive a sorte de não encontrar ninguém ao longo
deste. Creio que as escadas que subi me levaram ao sótão, onde
estou agora, há uns dois ou três dias. Encontrei aqui apenas um
antiquíssimo lampião, do qual tenho me servido nessa densa
escuridão que aqui reina, para escrever o meu desespero. Vivo entre insetos
e todas as noites durmo mal por culpa dos ratos que me acordam. São ratos
do tamanho de gatos e não sei dizer quantas vezes fui despertado pensando
estar acompanhado. No entanto, não ouço nada que venha lá
de baixo, e temo este silêncio. Não sei como fugir, nem como sobreviverei
por mais tempo, pois até então tenho me alimentado de providenciais
vinhos aqui armazenados e alguns outros produtos coloniais, que creio estarem
impróprios para consumo há muito tempo. Mas não devo reclamar
da sorte, pois ao menos isso encontrei.
Quero sair daqui o mais breve possível, mas não sei como. Sei
que se sair daqui continuarei sendo tão prisioneiro quanto sou agora,
ou pior: serei assassinado e esquartejado, como Bertram.
Terei eu caído na mesma armadilha que ele? Como pode uma mulher manipular
um homem dessa forma? Como pude EU ser manipulado dessa forma? Eu quero viver!
E tremo apenas. Estou em um local alto demais para querer sair por qualquer
abertura que eu possa fazer, e estou longe demais da saída, portanto
será impossível chegar até lá sem ser visto ou ouvido
por ao menos um empregado, se é que as aberturas não estão
ainda trancadas. Por todos os lados eu me sinto mais e mais encurralado pela
morte. É... Acho que morrerei. Morrerei por ter sido um tolo, por ter
caído nas mãos de uma mulher ambiciosa e má. Quem sabe
não será essa a justiça, afinal, perante os meus crimes
também motivados pela ambição?
Acabo de me assustar mais uma vez por culpa de um rato, e esse parecia maior
ainda que os demais, mas não o vi, apenas o ouvi junto a um som metálico.
Talvez haja algo parecido com uma faca por aqui, o que me poderá ser
de muita ajuda. Ouço novamente! Não é um rato, não
são passos de um rato...
(Outubro de 2009)