A Garganta da Serpente
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As Faces de um Anjo

(William A. Rodrigues)

As chamadas mulheres boas podem ter coisas terríveis
dentro de si: loucos rompantes de irresponsabilidade,
autoritarismo, ciúmes e maldade.

(O Leque de Lady Windermere - Oscar Wilde)

Não sei se algum dia alguém dará crédito a essa história, um crédito maior que o dado a uma ficção, mas se nesse momento paro para escrevê-la é na esperança de que sirva de aviso a alguém de que nenhum homem merece crédito e devem ser temidos justamente os que mais parecerem merecê-lo.

Tudo começou há duas semanas, quando recebi em minha casa um homem de aparência grave, um velho amigo do meu falecido pai. Chamava-se Bertram, um empresário riquíssimo da Grande São Paulo e muito influente nesta região, e eu devia a sua visita justamente ao luto de meu pai, morto então há uma semana. Acompanhava-o sua esposa, Ângela, uma mulher sensual de cabelos ruivos, encantadora no seu modo de ser. Ainda lembro-me do nosso jantar como se tivesse ocorrido hoje mesmo: tendo conhecimento da personalidade que receberia em minha casa, havia pedido aos meus empregados uma mesa impecável, e o mais refinado gosto não poderia negar que o era. Meus convidados foram acompanhados à sala de jantar logo que chegaram.

Na realidade, é justo informar que embora ainda lamentando a morte de meu pai, não deixava de ver nessa visita uma grande oportunidade para uma aliança próspera com tão célebre pessoa; os negócios de meu pai por mim herdados eram maiores do que o estimado e temia dirigí-los sozinho, ou pior, ser manipulado pelos velhos que viviam cercando meu pai, diferentemente de Bertram, que jamais interferira em seus negócios.

- Senhor Bertram, é um prazer conhecê-lo, e também a sua adorável esposa. - então beijei a mão de Ângela, tão pálida e macia que me fazia entender o seu nome: a mulher era um anjo.

Bertram, no entanto, riu com a minha formalidade e abraçou-me forte. Fiquei surpreso com a atitude, mas mantive a postura.

- Meu jovem, ainda lembro daquele pequeno correndo por esta casa deixando louco o teu velho pai. Um homem agora... Fazem o que? Vinte anos? Parece-te muito com o teu pai quando ele era novo.

Sorri. Sua esposa o olhava calada. Era certamente bem mais jovem que ele; na verdade, não devia ser muito mais velha que eu. Ele continuou:

- Uma tragédia, não? Soube que foi assassinato. E justo um homem como o seu pai! Lamentei muito quando soube, e acho que não será nenhuma vergonha admitir que até chorei. Éramos grandes amigos! Saberia me dizer como aconteceu?

- Na realidade a investigação não chegou a nenhum resultado senhor: sem pistas, sem suspeitos. O corpo do meu velho pai, mutilado em um beco escuro, foi a única coisa encontrada. Pode ter sido qualquer um.

- Compreendo. É uma lástima realmente.

Em seguida convidei-os à mesa e continuamos ainda por um tempo a conversar sobre o meu falecido pai. Bertram comentava sobre as qualidades do velho. Sua bela esposa, contudo, mantinha-se quieta durante todo o tempo... Não, é necessário contar tudo! Ela me fitava calorosamente, o que eu respondia em pé de igualdade.

Entretanto, eu me esforçava para olhá-lo com regularidade, inclusive apoiando o queixo sobre as mãos - assim tentando simular atenção e interesse -, por mais que eu estivesse ouvindo apenas o suficiente para responder algumas eventuais perguntas. Eram todas banais, ainda sobre meu pai, e só encontrei neste assunto algum motivo de interesse quando enfim decidiu elogiar meu pai sobre o quão bom administrador fora em vida, e só então minha atenção foi totalmente dirigida a Bertram, embora eu notasse que Ângela ainda me dirigia o mesmo olhar incessantemente, sem se importar com a presença do marido.

- Sim, senhor Bertram, este é um assunto sobre o qual eu gostaria de tratar com o senhor. Como você bem sabe, sou o único herdeiro de meu pai e são muitas as pessoas que me rodeiam por este motivo, e temo que tais homens não sejam confiáveis; meu pai os domava, mas eu ainda sou demasiado inexperiente...

- Permita-me interferir. Eu concordo plenamente com você, pois durante vários anos aconselhei seu pai a se afastar destes homens, mas me parece que você tem razão quando diz que ele os domava, pois ele realmente se deu bem, mesmo que mal relacionado.

- Pois sim, e é por isso que eu gostaria de pedir a tua ajuda... - por que ele aceitaria, tendo uma propriedade muito maior? - ... Em nome da sua amizade com meu pai. - agora cri que havia acertado em cheio.

- Meu rapaz, nunca entendi porque seu pai não me havia pedido isso antes, pois poderíamos ter feito uma próspera aliança. Mas agora já são altas horas e nunca me estendi tanto em um jantar (um senhor jantar, devo dizer), e já é tempo de voltar à minha casa.

- Bem, há muitos quartos nessa casa, e você poderia...

- Ah não, meu rapaz, mas rebato o convite: vá a minha casa no próximo fim de semana e poderemos tratar desses assuntos.





Eu estava confiante do resultado. Uma aliança com Bertram seria todo o necessário para que os negócios fossem ao céu! Entretanto, não contava com o que me esperava em sua casa.

No momento em que a vi lembrei que já a conhecia, e então pude supor que na infância meu pai já me havia trazido até aqui para visitar o Sr. Bertram. Este logo veio, não me atendendo por intermédio de empregados, mas sim diretamente, com sua esposa ao lado.

- É um prazer revê-los. - disse eu logo que me aproximei.

Bertram repetiu a saudação anterior: rindo novamente da minha polidez, abraçou-me forte. Entramos na casa logo depois disso... Não, ainda antes repeti um ato pelo qual esperei a semana inteira... Com grande vagar peguei a mão de Ângela e a levei aos meus lábios, beijando-a lentamente. Olhei-a e percebi que também me olhava como se também tivesse passado as noites apenas pensando em mim. "Talvez tivesse" - pensei eu.

Passamos o dia juntos, conhecendo algumas das incríveis coleções de Bertram, ou ainda conversando sobre assuntos recentes, alguns até relacionados à economia, mas sem jamais entrar de fato no assunto que eu tanto esperava.

Contudo, tive todo um dia cheio de calorosos olhares. Era uma aventura os nossos olhares de profundo desejo, os toques intencionais que saíam como acidentes, as palavras com intenções disfarçadas, e tudo em frente ao Sr. Bertram; por um dia inteiro a sua mulher e seu futuro sócio planejaram sua traição bem debaixo dos seus olhos, e ele ainda me respondia como um amigo de longos anos.

No jantar, enfim consegui que entrássemos na questão de futuros negócios, e foi muito mais fácil do que eu imaginara: durante a semana ele já fizera todo um planejamento de apoio mútuo entre nossas empresas e de como cada um de nós poderia diminuir os gastos do outro e ainda aumentar os lucros, ao menos segundo o que ele me dizia, pois eu nada havia entendido de tudo aquilo. Ele me assegurou, no entanto, que se responsabilizaria em pôr tudo nos trilhos, tomando a dianteira do projeto. Confesso que naquele momento temi que talvez eu me tornasse uma marionete em suas mãos, mas confiei. Eu daria um jeito de ficar de olho no procedimento do nosso "projeto".

Ainda durante o jantar o telefone tocou. Uma empregada que estava ali próxima à mesa do jantar atendeu, falando tão baixo que não pude ouvir do que se tratava, mas sua expressão me pareceu curiosa, sentimento este que só se fortaleceu ao ver a rapidez com quem Bertram se levantara da mesa depois de receber o telefone da empregada. Parecia chocado. Sem dar resposta alguma além de afirmações vagas ele desligou, e então se aproximou de mim, abraçando-me novamente:

- Sinto muito meu caro amigo, mas uma urgência me espera no escritório. Teremos tempo para conversar depois. Sei que me desculpará pela indelicadeza: fique hospedado em minha casa. Estou certo de que Ângela saberá ser uma perfeita anfitriã.

E com essas palavras ele abandonou a casa, sem mais nem menos.

Fiquei um tanto aturdido com o que acabava de acontecer, e por alguns instantes sequer me movi, fazendo-o Ângela. Agora estávamos só nós dois e eu notava que agora não apenas o seu olhar, mas todo o seu corpo emanava sensualidade. Usava um longo vestido vermelho de tecido vaporoso, e então andava com determinação em minha direção: os seus olhos pareciam me puxar a ela. Este olhar cobiçoso me fez pensar, por um instante, que me atiraria na superfície mais próximo que pudesse encontrar, e, contudo, ela jogou seus braços em meus ombros e aproximou o seu rosto lentamente do meu, como se fosse me beijar, até que, desviando o curso, os seus lábios tocaram em minha orelha, e então sussurrou:

- Estamos a sós agora...

O seu perfume me hipnotizava e sua voz me soava como o canto das sereias mitológicas, que atraíam ao mar os homens seduzidos pelos seus cantos, e ela continuava:

- Agora eu sou toda sua, e você é todo meu.

Isso por pouco não me derrubou logo de uma vez, mas ainda restava algo em mim que não fosse desejo naquele instante, então me afastei um pouco, tentando ser racional:

- Mas e os empregados?

Ela me puxou, exercendo pleno domínio sobre mim, e me beijou tão ardentemente como eu nunca havia sentido com qualquer outra mulher. Não sei se chegou a durar um minuto, mas o que senti foi o sabor da eternidade da qual jamais me fartaria. As suas duas mãos seguravam as minhas - as suas macias e pálidas mãos. Ela sussurrou novamente, com um sorriso lascivo.

- De todos nessa casa, sou a mais inocente; e eu já não disse? Agora você é todo meu...

E tocou novamente os seus lábios nos meus, mas com tanta rapidez que além de não saciar o meu desejo, apenas o incitava mais. Ela começou a me guiar, andando para trás, os seus olhos quentes se aprofundando nos meus. Eu quedava totalmente dominado, e em nenhum momento sequer eu a impedi me conduzir como quisesse.

Naquela noite senti como se o meu corpo e alma se elevassem aos céus, motivados por um prazer quase concreto e palpável. Naquele instante cheguei a pensar que eu havia nascido apenas para aquele instante.







No dia seguinte, ao acordar, o café da manhã já estava servido, do qual usufrui sem parcimônia, como se estivesse em minha própria casa. Ângela me acompanhava e em momento algum ela me deu qualquer sinal de que eu não devia agir assim.

O meu grande susto foi ao receber o jornal de um dos empregados - que já me tratava como provavelmente trataria a Bertram, talvez por ordens de Ângela. O jornal tinha já na manchete uma terrível cena: Bertram morto, mutilado. As mesmas vestes que usava ao sair de casa na noite anterior, mas agora empapadas de sangue; os braços e pernas não mais estavam juntos ao tronco, tal como a cabeça, repleta de cortes de lâmina e de feição horrorizada, talvez a mesma da hora da morte, mas cujos traços me permitiam assegurar que aquele era o mesmo Bertram com quem eu havia conversado na última noite.

Fiquei perplexo, e em seguida atemorizado: duas pessoas de convívio tão direto a mim haviam sido assassinadas de modo tão semelhante, e nenhum suspeito era apontado. Li e reli a matéria, mas não havia engano: ele fora identificado pelos documentos que carregava, e pelo visto não havia sequer chegado ao escritório.

Mostrei então a foto a Ângela, temeroso da reação que ela poderia ter. E de todas as reações possíveis a que presenciei foi a que de fato mais poderia me atemorizar: ela se manteve fria, sem nenhuma reação esperada. Nem fez questão de ler a matéria. Apenas continuou a tomar o seu café com leite com a mesma tranquilidade. Pude ouvir apenas um murmúrio:

- Viúva novamente...

"Novamente?", pensei, "Que tipo de mulher é esta?" Ela então se dirigiu a mim em uma voz amável:

- Gostou, meu amor? Agora sou toda tua. Tudo o que era dele agora é meu, e portanto teu! - sorriu maliciosamente.

Meu corpo se fez inteiramente frio, e posso apostar que fiquei pálido também. Eu não era tão ingênuo a ponto de acreditar que um jantar em minha casa havia sido o suficiente para se apaixonar por mim. Jamais! O que ela queria era o patrimônio de meu pai, o MEU patrimônio! Contudo, eu não poderia demonstrar o que constatara a ela, pelo menos não enquanto eu estivesse naquela casa. Tive vontade de sair dali no ato, mas tive consciência de que isso tornaria tudo muito claro para ela. Eu já a temia. Que reação eu deveria ter? O que ela esperava de mim? Todas essas dúvidas me tomaram.

- Ângela, você fala sério?

Ela se levantou da cadeira, abraçou-me por trás, estando eu também sentado, e repousando a cabeça sobre o meu ombro novamente me sussurrou ao ouvido, como eu já havia notado que era um modo particular seu de sedução:

- Tudo por ti, meu amor.

Beija-mo-nos.

Desvencilhando-me de seus braços eu segui para um banho relaxante, no qual pensaria em alguma forma de tomar a minha liberdade. Dali eu deveria fugir, para o interior, para outro estado, ou país talvez. Foi o que pensei. Eu tinha certeza de que seria o próximo... Eu já cogitava quantas vítimas ela já tinha tido antes de mim. Como caíra Bertram nessa?

Fiquei quase uma hora na banheira, embora em metade desse tempo eu já tivesse tudo planejado: com a desculpa de ir buscar meus objetos pessoais, sairia dali logo após o banho, e então ela não me veria nunca mais.

Saindo do banho, fui ao quarto em que passamos a noite a fim de pegar as chaves do meu carro. Nem sei o porquê, mas agora reparava que havia vários retratos antigos de Ângela, e analisei-os um a um. Já me questionando quando as ondas de horror me abandonariam, percebi-me de que os mesmos empregados presentes em algumas das fotos eram, sem exceção, os mesmos que habitavam a mansão.

Como eles podiam servir ainda a Ângela, certamente sabendo dos seus crimes? Horrorizei-me ao cogitar que eles poderiam ser cúmplices, afinal, ela não saíra de casa a noite toda, e mesmo assim havia se responsabilizado pela morte de Bertram. Por que não poderia estaria aqui mesmo o assassino? Saí do quarto e logo me assustei ao ver que uma das empregadas me esperava do lado de fora. Ela me avisou:

- A senhora mandou avisar que precisava acertar alguns assuntos com o advogado. Deve esperar aqui enquanto ela não volta.

"Essa é a chance ideal para fugir daqui", pensei. Corri, então, em direção à porta, tentando abrí-la: tudo em vão. A empregada novamente se dirigiu a mim:

- Para se assegurar de que você não a abandonaria, ela trancou todas as portas, e também mandou avisar que as janelas são gradeadas.

Notei o sorriso cínico no rosto de empregada. Estaria ela imersa em uma sensação de Déjà vu? Aquilo era a confirmação das intenções dela, embora eu já não a necessitasse. Mas tão cedo? Ângela faria algo comigo tão pouco tempo depois do assassinato do seu marido? Algo estava errado. Tudo aquilo já me havia provado que ela não seria capaz de uma falha assim. Ela seria facilmente apontada como suspeita e deveria saber disso. Tantas coincidências não seriam possíveis nem à mais desgraçada das pessoas.

Aquela calma da empregada me exasperava. Eu não pude ver qualquer lógica naquela frieza com a qual me dizia que eu estava trancado dentro dessa casa, com vários empregados que merecem a máxima suspeita. Na verdade, ainda penso se não teria sido Ângela forçada a agir da forma como a vi naquela manhã, ou se não teria sido a empregada a ameaçada, embora eu ainda não consiga compreender como, em qualquer um dos casos, elas poderiam ter agido tão friamente...

A minha primeira reação naquela hora foi correr, correr e correr. Creio que meu ato foi tão súbito que ela se surpreendeu, mas não cheguei a olhar para ela depois que a ultrapassei, portanto não sei dizer qual reação teve; sei apenas que poucos instantes depois ela gritou o nome de alguém, nome que não me recordo qual era. O pavor me tomou então.

O que fazer? Para onde correr? Não sei exatamente o caminho que trilhei, apenas sei que tive a sorte de não encontrar ninguém ao longo deste. Creio que as escadas que subi me levaram ao sótão, onde estou agora, há uns dois ou três dias. Encontrei aqui apenas um antiquíssimo lampião, do qual tenho me servido nessa densa escuridão que aqui reina, para escrever o meu desespero. Vivo entre insetos e todas as noites durmo mal por culpa dos ratos que me acordam. São ratos do tamanho de gatos e não sei dizer quantas vezes fui despertado pensando estar acompanhado. No entanto, não ouço nada que venha lá de baixo, e temo este silêncio. Não sei como fugir, nem como sobreviverei por mais tempo, pois até então tenho me alimentado de providenciais vinhos aqui armazenados e alguns outros produtos coloniais, que creio estarem impróprios para consumo há muito tempo. Mas não devo reclamar da sorte, pois ao menos isso encontrei.

Quero sair daqui o mais breve possível, mas não sei como. Sei que se sair daqui continuarei sendo tão prisioneiro quanto sou agora, ou pior: serei assassinado e esquartejado, como Bertram.

Terei eu caído na mesma armadilha que ele? Como pode uma mulher manipular um homem dessa forma? Como pude EU ser manipulado dessa forma? Eu quero viver! E tremo apenas. Estou em um local alto demais para querer sair por qualquer abertura que eu possa fazer, e estou longe demais da saída, portanto será impossível chegar até lá sem ser visto ou ouvido por ao menos um empregado, se é que as aberturas não estão ainda trancadas. Por todos os lados eu me sinto mais e mais encurralado pela morte. É... Acho que morrerei. Morrerei por ter sido um tolo, por ter caído nas mãos de uma mulher ambiciosa e má. Quem sabe não será essa a justiça, afinal, perante os meus crimes também motivados pela ambição?

Acabo de me assustar mais uma vez por culpa de um rato, e esse parecia maior ainda que os demais, mas não o vi, apenas o ouvi junto a um som metálico. Talvez haja algo parecido com uma faca por aqui, o que me poderá ser de muita ajuda. Ouço novamente! Não é um rato, não são passos de um rato...

(Outubro de 2009)

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