A Garganta da Serpente
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O louco dos abismos

(Violeta Teixeira)

"A loucura é um crisântemo. Cresce de noite"
(Carlos Nejar)

I

A casca bivalve da noite fechou-se pétrea e hermética, sobre a encosta do desfiladeiro, mas, sem, antes, ter jorrado das entranhas um nevoeiro pesado que, logo, se fez numa escuridade maciça, de cujos tanques todas as torneiras se abriram, fustigando as crinas do vento que, soltas e alvoroçadas, derrubaram o louco dos abismos, que descia a

encosta, ouvindo vozes euforizantes, vindas do ventre grávido da pedras, ou das veias de águas subterrâneas. A custo, levantou-se, sacudiu a terra arenosa da roupa molhada. Curvado, rasgou o vento, até encontrar uma gruta, de um calcário alvo, onde pernoitou, deitado na sua esteira, sempre debruada de sonhos, que nunca estancam, por mais adversidades que encontre, por mais negras que sejam as olheiras dos astros, como as daquela noite.

Mal as primeiras filigranas de luz se exibiram na parede do fundo da caverna, despertou estremunhado, mas feliz de ouvir as badaladas uníssonas do seu pêndulo de sangue jovem, e do musicar de um coro de melros, algures, nos galhos de algum azinheiro.

Em que pensará o louco, se, porventura é um animal cogitante? Mas...Por que o chamam de louco, a ele, um jovem, de olhos dilatados, como o Universo, e um discurso descosido, é certo, não obstante a musicalidade do seu registo de voz, uma voz de iluminado ascético, e, ao mesmo tempo, de um ser que se nutre de sensações pagãs, com uma sábia rebeldia?

Levanta-se, e, ao sair da gruta, enche, gostosamente, os olhos, com a claridade da manhã recém nascida.

- A Srª Josefa já está levantada... e, com certeza, à minha espera... Vou lá tomar café e comer uma fatia de pão - vai dizendo em voz alta, enquanto reinicia a descida daquela encosta, assobiando, e saudando eucaliptos e giestas, pedras e bichos da terra, libélulas, borboletas e vespas.

Um louco Santo de Assis? Não sei. Até os ratos, os dóceis e macios gatos selvagens dele se aproximam, para o ouvir e receber a sua benção, além de filas de formigas, com os seus hábitos negros, e, pobremente, descalças.

- Lá vem o José! - diz, com uma voz aliviada, Dª Josefa, ao seu companheiro. Deve ter fome, acrescenta.

- Coitado! Com a tempestade da noite passada, deve ter dormido, sem jantar, na primeira gruta que encontrou... Coitado! - Diz o companheiro de Dª Josefa, ao acordar com os assobios melodiosos e despreocupados do louco dos abismos.

- Coitado! Vou fazer o café e tomamos já todos juntos, não achas?

- Sabes, mulher, receio que um dia, sei lá quando, se desequilibre e caia na ribeira.

- Também eu... Mas não conseguimos até hoje que ele deixasse de ir cantar , sentado naquele braço de loureiro, do alto daquele abismo, sobre a Ribeira de S.º José. Era uma morte certa, se... Mas...

- Bom dia!

- Bom dia, José! Onde passaste esta maldita noite? - Pergunta o Sr. Pereira.

- Olhe, aqui perto... na primeira gruta que encontrei... Que tempestade!...

- Queres um café e pão? Sabes, ouvi o teus assobios...

- Obrigada, Dª Josefa!

- Então, vamos beber a cevada que fiz, antes que arrefeça? Sabes, sentimos a tua falta...

- Está bem! - Dizem os três ao mesmo tempo.

- Tem cuidado, José! A gente já sabe que, depois deste café, vais te sentar naquele braço do teu loureiro... Olha, a ribeira vem cheia...

- Sabem, gosto de cantar, vendo as águas correrem... lá em baixo...

- Tem juízo, José! - Diz Dª Josefa, com um tom trémulo.

- O que é isso... de ter juízo?

- Oh! José... Não te assusta aquele abismo? Nunca pensas na morte?

- Mas... O que é isso?... A morte...? E a vida?... O que é? Vocês sabem?...

- Agora, estamos vivos... aqui, os três... Entendes, José?

- Não! Não! Não entendo nada disso...

- José! José!

O José já se havia levantado... e saído da barraca daquele velho casal.

- É doido, coitado! Que pode a gente fazer?!

- É pena! Só a gente sabe daquela louca mania... Que mais se pode fazer?!

- Nada! Diz o Sr. Pereira. Não se consegue retirá-lo daquele galho de loureiro...

- Há quantos anos, ele faz aquilo?

- Sei lá! O tempo passa tão depressa... Só sei que gosto dele, como se fosse o filho que a gente não teve...É tão nosso amigo! Não achas? - Pergunta Dª Josefa.

- Sim, mulher, mas... que pode a gente fazer?

- Nada! Nada! - Diz, comovida, Dª Josefa.



II

Senta-se, no braço do seu loureiro, espicaçando aquele abismo fascinante, com vagares de um desejo, cuja ejaculação seja adiada para o mais tarde possível. Lava, então, os olhos, nas águas que correm, lá no fundo, levando, nas suas entranhas, folhas mortas, novelos emaranhados de raízes, agulhas secas de pinheiros, umbráculos, sem cabeças, de cogumelos putrefactos, lascas de madeira, braços decepados de arbustos, fenos, e ervas esverdeadas.

Lava-os, aos olhos, que se não lavam, e, da sua aparente cegueira, soltam-se as asas das suas canções habitadas de personagens, lucidamente ferozes e dóceis, consoante a temperatura do sangue, os matizes da alma, os folhos dos destinos, a cor das linhas das costuras da vida ou das bainhas cosidas ou esfiapadas dos desfechos das narrativas.

- Estão a ouvir? Lá está a cantar o doidinho! - Comentam, sorrindo, dois lenhadores.

- Milagre que aquele galho se não tenha ainda quebrado! - Diz um deles.

- Pois é! Todos os dias, ali fica, horas a fio, o louco do José...

- Feliz! Não pensa no perigo... não pensa na morte... Não achas?

- Sim! Nem pensa na vida, o que é a mesma coisa...

- Também estás louco ou quê?! Qual mesma coisa!

- Olha, o melhor mesmo é não pensar em nada... Vamos acabar de cortar esta lenha!

- Vamos! Não tarda, começa a anoitecer... e...

- E o louco? Onde pensas que vai jantar e dormir?

- Ouvi dizer que era na barraca da Dª Josefa, que o trata como a um filho...

- Dizem por aí que ele é...

- É o que? Fala!

- Bem! Por hoje chega! - Deixam cair os machados no cimo de um monte de lenha.

Calam-se. Só se ouve, agora, o canto dos grilos e das cigarras. O José já saltou do seu galho, e começa, em silêncio, a subir a encosta, com os olhos atados a um ponto fixo. Não se sabe qual, nem se é, de facto, fixo. Mera conjectura de quem vive numa outra dimensão ou num universo-outro. Talvez... Nada é como pensamos ser... A rea-lidade- real não existe e, assim sendo, tudo quanto vemos é uma realidade virtual. Ou não? Como sabê-lo?



III

O louco guardou canções e assobios nos bolsos e, ao mesmo tempo que afasta as silvas das veredas, vai apanhando e comendo amoras silvestres. Não tem pressa, aliás nunca tem pressa de nada, até porque não sabe o que isso seja. Os seus passos leves levam-no, instintivamente, até a barraca de Dª Josefa, que sempre o espera, com o coração apertado, mal o Sol começa a desmaiar no horizonte, ou o seu relógio biológico a alerta para o regresso daquele louco, ausente durante todas as tardes. Quando sente os passos do "seu" José lhe badalarem no peito, mesmo que se encontre dentro da barraca, vem a correr até à porta, respirar de alívio e de contentamento, ouvindo o marido dizer- lhe todos os dias a mesma frase: " Por que desatas sempre a correr para essa porta, se sabes que é o louquinho que aí vem?" Nunca lhe responde nada, a pobre da Dª Josefa.

Que haveria ela de lhe dizer, se não sabe descodificar o sentido da linguagem do coração? E se a caridosa velhota o soubesse, não teria palavras para o exprimir.

- Então, José, parece-me que hoje vens mais tarde! Como estava a ribeira? Olha, não tens fome? Podemos jantar, não queres? O Sr. Pereira já se sentou à mesa... Entra! José, que sangue é esse nas mãos? - pergunta-lhe preocupada.

- Nada! Não é nada!

- Ah! Louca sou eu! Como não vi logo que tinhas estado a comer amoras?! Vem lavar as mãos! Tenho um horror a sangue. Claro! Nunca percebeste isso! Nem ao parto da nossa burra eu consegui assistir... Vai lavar as mãos! Vai! Depressa!

- Coitado! Não entendeu nada do que eu disse - murmurou, limpando dois grãos de sal, insubmissos, corroendo a pele, rosto abaixo, como gotas de enxofre, não fosse o companheiro violar-lhe as razões do coração, com perguntas irrazoáveis.

Preocupação inútil, a sua! Desconhece a infeliz Josefa que " o essencial é invisível aos olhos ", na medida em que " só se vê bem com o coração.".

- Olha, José, esta noite tens cama. Por que não te deitas? Não dormiste bem na noite

passada...

- Obrigada, Dª Josefa!

- Deixa lá o rapaz! - Diz o companheiro, num tom um tanto agressivo.

- Boa noite! Sim!... Vou dormir... Sabem...- Emudeceu.

Que poderia ele dizer? Que teria ele para contar? Sai, de súbito, daquela obscura cozinha, uma sombra ou um ser iluminado, entre feixes de trevas?

- O casal sucumbe, soterrado num silêncio constrangido, feito de cinzas, com repuxos de fumo.

Dª Josefa ainda tenta, num esforço hercúleo, atiçar o fogo da lareira do tempo passado, mas... O presente sufoca-a, e o companheiro deixa-se resvalar num sono apetecido, alheio ao sofrimento, aparentemente, inexplicável da mulher. Só. Chora, enfim... Chora para fora.

- Acorda, homem! Vamos para a cama! Estás a ouvir-me? - diz tudo isto, sacudindo-o, com uma grande dose de carinho, que foi colher não sabe onde, nem porquê.

- Está bem, mulher! - exclama, estremunhado.

Dª Josefa segura-o pela mão, não vá ele cair, e entram no miserável quarto onde dormem juntos há trinta e nove anos. O homem cai na cama sem se despir, e ela, coitada, não sabe por que não consegue deixar de chorar. Agora, um pranto seco, um choro para dentro, mas...nem mil camadas de tinta fariam desvanecer dos seus olhos aquela imagem dolorosa, vinda de um tempo longínquo. Mas, sufocar as lágrimas, para quê?

- Coitado! Se o José fosse normal! Já dorme! Já dorme como uma criança... como aquela criança... Como... - repete, com uma lágrima insubmissa, negra e grossa, escorrendo nos regos sinuosos das suas rugas fundas.



IV

- Então, José, não me digas que já vais sair? Ainda não comeste nada... espera! Eu vou chamar o Sr. Pereira e tomamos juntos o café. Está bem? Espera um pouco!

- Sim, Dª Josefa. Acha que é muito cedo para eu ir cantar? É isso? As águas da ribeira devem estar hoje sossegadas, porque esta noite não choveu. Vá! Eu espero.

- Entra! O Sr. Pereira já está na cozinha e o café está pronto. Tanta pressa hoje! Por que motivo, José?

- Sei lá o que é isso! Vocês estavam a dormir... - Não disse mais nada. Sentou-se e tomou duas chávenas de café, com três fatias de pão de centeio.

Nenhum dos três rompeu o silêncio que desabou, perturbador, naquela exígua cozinha, salvo no momento em que o José se levantou, dizendo: " até logo!"

Desce, agora, a encosta, acariciando as arestas das rochas e as minúsculas cabeças de flores vermelhas, espreitando o Sol pelos veios abertos. Todo preto, um gato arregaça as garras e escala as pernas daquele adorador da natureza. Curvado, o José pega-o ao colo, deixa-se lamber, com rara volúpia, enquanto afaga o ventre redondo e macio do felino. Não se dá conta, o ingénuo do doidinho, que acaba de borrifar de ternura uma ninhada de gatos.

Põe-se a cantar, mal se senta naquele robusto braço de loureiro, com os olhos inundados de águas verdes, fluindo, lentas, no leito da ribeira, ou dançando em torno dos pescoços negros e erectos de múltiplas ilhotas de basalto.

De súbito, sente, agudamente cortantes, quatro olhos, se fincando no seu peito, aberto sobre o abismo.

Os lenhadores que, na véspera, sem que o cantor se tivesse apercebido, tinham tecido comentários sobre ele, decidiram, naquele tarde, quando se preparava para guardar, como sempre, as suas canções no bolso roto, como tinha visto, antes de deixar a barraca da Dª Josefa, se aproximarem do bizarro louco, come se de um animal feroz se tratasse, enclausurado por detrás de grades de ferro, num jardim zoológico.



V

A noite se fez. As nuvens, num fundo de céus cínzeo- esbranquiçados, são cachos de amoras silvestres na polpa de mãos ensanguentadas. E a Lua é um gomo de laranja, violado, escorrendo gotas azedas.

- Sabes, meu homem, o José já devia aqui estar... Nunca se sabe o que se passa naquela cabeça...

- Sossega, mulher!

O Sr. Pereira não soube dizer outra coisa, mas os olhos acesos de medo de DªJosefa tinham-no assustado.

- Olha, homem, estou a lembrar-me de que, na noite em que ele dormiu naquela gruta, a uns trezentos metros daqui, tinha ido, não sabemos porquê, ao cimo desta encosta, e, na descida, foi apanhado pela tempestade. Só agora estou a pensar nisto... Sei lá por que, naquela tarde, depois de se ter tirado do seu galho, não veio logo para aqui...

- Fez o mesmo hoje, vais ver, Josefa! Não estejas preocupada, mulher! - diz-lhe o Sr. Pereira, para a acalmar, mas, no fundo dos seus olhos, uma lâmpada se funde e se estilhaça.

- Deus te oiça, meu velho!

Entra na cozinha, para pôr a aquecer, pela terceira vez, o jantar, mas antes, acende uma vela diante da imagem de São José. A reza sai molhada dos seus lábios fechados.

O Sr. Pereira, esse, tinha ficado à porta da barraca, sentado no banco da descrença. Não sabe nenhuma oração, mas pouco importa. Tece uma, ele mesmo, com os vimes que tem ao alcance das suas mãos, como se fosse um cesto de oferendas, a uma qualquer santa.

- Estás surdo, ou quê, ó homem de Deus!

- O que aconteceu, mulher? Estás a chorar e a sorrir ao mesmo tempo! Enlouqueceste? Fala!

Por toda aquela encosta verdejante ecoam, melódicas e melancólicas, as canções do louco dos abismos.

- Não ouves? - Pergunta Josefa.

- Vamos até lá... Vens?

- Sim! Mas... Vamos! - Responde, com um coro de lágrimas inaudíveis.

As águas da ribeira deslizam doce e sossegadamente, entoando, uníssonas, os cantos, em louvor de toda a natura mater, saídos dos lábios do José, o louco Santo de Assis, que havia aberto as asas, e mergulhado no leito verde da ribeira, em cujas margens havia sido dado à luz, em cujas águas tinha sido lavado pela primeira vez.

- Que as águas sejam o teu berço, meu... meu...! - Suplica, silenciosamente. Reconciliada, enfim, com ela mesma, a pobre da Josefa. Ou com o seu destino? Sim! Porque, por mais paradoxal que me seja, nele acredita e, igualmente, num deus.

Conto inédito (colectânea de contos intitulada CAVALO DE FOGO e Sub-intitulada CONTOS ATÍPICOS - no prelo).

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