Do alto daquele edifício, ela sempre olha para o nada que se mistura
aos carros e às pessoas que transitam na rua e pensa em tudo o que ela
viveu e em tudo o que poderia já ter vivido. É no alto do edifício,
sozinha como sempre foi, que ela se sente feliz e completa na solidez de sua
fragilidade. Uma fragilidade aparente, pois a sua sobrevivência foi conquistada
dia após dia com muito esforço.
Ela sobreviveu fazendo coisas que condenava, mas não enxergava outra
maneira de conseguir aguentar a passagem dos dias, aqueles dias que eram
sempre os mesmos, numa sucessão constante de velhos dias. No início
era tudo muito repulsivo, mas depois.... depois virou somente desagradável,
mas porque ela soube dar nova dimensão para tudo aquilo. Enxergou seus
atos como necessários e encontrou uma maneira de dar um sentido mais
amplo para a situação. Pensou em fazer o bem para mais gente.
Isso confortava sua mente. Saber que suas atitudes trariam benefícios
a mais pessoas era bom.
Foi assim que ela se sentiu pouco tempo depois de cometer o ato pela primeira
vez - ou melhor dizendo, pela primeira vez na "nova fase" de sua vida.
Antes de resolver fazer aquilo, ela chorava quando saía de casa. Chorava
muito e não tinha nenhum lugar para ir se confortar depois. E sempre
doía muito. Doía sentir aquilo que ela considerava uma invasão.
Doía no corpo, mas sobretudo na mente.
Mesmo quando tudo terminava, os resquícios ainda eram muito incômodos.
Eram sobras de algo que ela queria jogar fora, mas não tinha como, pois
estava incrustado nela. E cada novo dia era um velho dia, um novo dia que nunca
chegava, pois sempre vinha carregado de tudo o que ela mais abominava.
Até o dia em que ela apanhou um revólver. Disse para si mesma
que ela tinha uma arma e sabia muito bem o que fazer com ela. E fez. E fez muito
bem. Foi fulminante. Na mesma hora, enquanto aquele sujeito asqueroso caía,
logo após ter acabado de se levantar lambendo os lábios com cara
de satisfação depois de tê-la humilhado, ela viu seu sangue
escorrer e a fumaça ainda "fresca" saindo do cano do revólver
com uma grande satisfação. E novamente disse para si mesma que
agora ela tinha uma arma e sabia o que fazer com ela.
Finalmente, um novo dia chegou. Trazendo sol, esperança, sentido para
sua vida. Um novo dia a ser sucedido por vários outros novos dias, nos
quais os seus atos seriam sempre os mesmos, mas agora com um sentido.
E mais gente ficaria feliz com isso. Ela não sabe quem exatamente, mas
acreditava nisso. Mesmo que fosse condenável o que ela estava fazendo
e até mesmo desagradável para ela, ela sabia que era preciso e
isso a confortava. Ao mesmo tempo em que sentia desconforto (nada comparável
com a repulsa de antes) ela sentia alegria e alívio.
E agora, sozinha no alto daquele edifício, para onde ela sempre corre
depois de disparar um tiro e dar um fecho a mais um dia, ela se sente feliz,
mesmo sabendo que sua vida poderia ser diferente e que deve haver uma felicidade
maior. Ela olha para as pessoas andando lá embaixo e pensa que entre
elas está alguém que fica feliz pelo ato que ela está cometendo.
Alguém que ainda não tem uma arma. Alguém que ainda não
conhece o novo dia que sempre chega para ela.