A Garganta da Serpente
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O deus de carne

(Vitor Souza)

Que pessoa curiosa e amante de novas descobertas não gostaria de encontrar um povo até então desconhecido pelos estudiosos? Uma tribo perdida em uma ilha escondida no meio de algum lugar no Oceano Pacífico? Uma ilha tão escondida que não constava em nenhum mapa, mas que ele sabia que existia.... afinal, sempre foi um estudioso de todos os assuntos e sua fortuna possibilitava que ele se dedicasse a descobertas.

Pois ele teve essa sorte. Ainda que no início tenha sido azar, agora está tudo certo. Quando seu pequeno avião monomotor sofreu uma pane e caiu no mar, matando a tripulação que o acompanhava na viagem que deveria ser curta, ele se desesperou. Nadou como um insano até chegar à ilha na qual ele pretendia ter pousado em segurança. Não acreditou que conseguiu sobreviver. Entrou em desespero ao se ver sozinho. Procurou manter a calma e acreditar que em breve iriam começar a procurá-lo e, por fim, o resgate chegaria.

No início, foi terrível. O tempo foi passando, ele sobrevivia como era possível e começou a se desesperar com a ideia de que o socorro talvez nunca chegasse. O desespero aumentou ainda mais quando avistou aquelas pessoas.... pessoas que ele não sabia que existiam, pois se a ilha era desconhecida, não se conhecia nada sobre ela. Pensou o pior, logo de início.

Mas os primeiros contatos haviam sido amistosos. Os habitantes do lugar se aproximaram e, lentamente, começaram a tocá-lo. Sua pele clara e rosto liso pareciam chamar a atenção daqueles homens de pele morena, cabelos compridos e barbas longas e grossas. Sobre o corpo, traziam somente uma espécie de túnica

Ele se esforçou para sorrir, escondendo o imenso pavor que estava sentindo. Após um tempo que parecia não acabar jamais, os homens o levaram mata adentro. Ele somente os seguiu, sendo conduzido pelo braço por um deles. Quis chorar de medo, mas segurou.

II

Agora, está tudo bem. Após um longo período de apreensão, o povo habitante daquela ilha se mostrou bastante cordial. Deram-lhe o que comer. Conversaram com ele em uma língua que ele não entendia. Começou então a falar por gestos, o que facilitou bastante. Aquela gente entendia os gestos que ele fazia com uma facilidade assustadora.

Por fim, já estava gostando de morar ali. Queria ir embora, mas estava apaixonado pelo lugar e pelas pessoas. Além da descoberta incrível que fizera, ele se sentia bem entre aqueles homens e mulheres.

Não sabia há quanto tempo estava ali. Não sabia se um dia iria embora. Procurava não pensar nisso, mesmo porque o prazer da descoberta desse povo novo o fascinava. E ele gostava da sua companhia.

III

Quando sua barba começou a crescer, cobrindo seu outrora rosto "limpo", e seus cabelos chegavam à altura dos ombros, já se sentia membro daquela comunidade. Na certa fazia mais de um ano que ele estava ali, vivendo como um aborígene. Não conseguia aprender a língua daquele povo, mas se comunicava muito nem com eles através de sinais.

Agora, quase totalmente adaptado, ele encontra uma caverna que ele não sabia como não havia encontrado antes. Afinal, andara por praticamente toda aquela ilha. Sua entrada estava ocultada por galhos e folhas. Retira os obstáculos e, tomando todo o cuidado, entra agachado pela sua pequena abertura. Não é uma caverna profunda; antes, parece um buraco cavado na pedra da montanha. A luz que vem de fora é suficiente para dar-lhe uma boa visão do lugar.

Ele passa os olhos pelo lugar. De repente, algo lhe chama a atenção: uma caixa de metal. Achou estranho, pois não vira nada feito de metal desde que chegara. Aquelas pessoas eram extremamente simples e ele inclusive chegou a pensar que eles viviam na idade da pedra lascada.

Sem pensar duas vezes, ele pega a caixa e abre. Leva-a para a entrada da caverna, a fim de enxergar melhor o seu conteúdo. O que ele vê deixa-o atordoado.

Envolto em um pano que ele removeu, está um caderno. Atentamente, ele começa a folheá-lo e vê que se trata de um diário. Seu interesse aumenta ao mesmo tempo em que uma estranha sensação de medo irracional e incompreensível o domina.

Lendo as anotações, ele vê que foram escritas por um missionário religioso que passara pela ilha há muitos anos (quase setenta, de acordo com a data colocada no caderno). Ele então descobre que não fora o primeiro homem "civilizado" a passar por ali. Apesar da frustração pela recente descoberta da perda do seu pioneirismo em "descobrir" a ilha e seus habitantes, ele se empolga com a leitura das anotações do missionário. Folheando o caderno com uma avidez alucinante, ele vê que o missionário passou muitos meses tentando "aculturar" aquele povo. Tentou, sem sucesso, ensinar sua língua; teve que se contentar em comunicar-se através de sinais. Essa foi a grande frustração do missionário. Mas as páginas do diário revelavam que, a despeito desse fracasso, o religioso conseguiu, de maneira relativamente exitosa, ensinar-lhes um pouco da religião cristã. Ensinou-lhes também a cobrir o corpo.

Dizia o diário que os nativos do lugar passaram a adorar a imagem de Jesus Cristo na cruz. Não entendiam muito os princípios cristãos, mas adoravam a imagem de Cristo; para o missionário, estava bom. Dizia ainda o diário que o religioso deu-lhes uma imagem de Cristo crucificado em metal e, após ensinar-lhes que um dia Nosso Senhor voltaria para que Deus fizesse o julgamento da humanidade, eles resolveram guardar a imagem. O religioso não havia entendido o porquê daquilo, mas depois acabou compreendendo que os nativos acharam que o certo era guardar a imagem até o dia da volta de Jesus.

Ele então desvia seus olhos do diário e volta a olhar para dentro da caixa. Havia outro embrulho. Pega-o e vê que se trata de uma imagem, feita em metal, de Cristo crucificado. Era uma imagem muito bem feita e bastante conservada. Permitia que se visse com toda a perfeição a face de Jesus, seus ferimentos.... junto à imagem, havia dois imensos pregos, apresentando sinais da passagem do tempo. Por um instante, chega a se interrogar sobre como esses pregos foram parar ali; na certa, foram trazidos pelo missionário. Mas isso é o que menos importa.

Ficou durante muito tempo olhando para a imagem. Somente desviou seus olhos quando um dos nativos surgiu atrás dele. Deixando cair a imagem no chão, ele olha para o habitante do lugar.

O nativo, um dos homens mais idosos da ilha, rapidamente se aproxima e, num gesto ligeiro, apanha a imagem. Olha para ela com atenção.

Com o diário ainda na mão, ele pensa em fazer algum gesto para o nativo. Antes que possa esboçar qualquer movimento, ele se assusta ao ouvir o aborígene gritar palavras incompreensíveis. Em pouco tempo, dezenas de nativos se aproximam.

Apesar de conviver há tempos com aquela gente e nutrir por eles um grande afeto, ele se assusta. O idoso fala umas palavras para a multidão, apontando para ele e, ao mesmo tempo, mostrando a imagem de Cristo.

Ele sente medo. Acha que aquela gente se irritou com o fato dele haver mexido na caixa. Pensa em pedir desculpas, mas não consegue se mover diante do pavor.

Após um tempo que ele não sabe o quanto foi, percebe que os nativos não estavam irados, pois todos eles se ajoelharam. O idoso também, mas logo se levantou e ergueu o crucifixo para os céus. Olha sem parar para o seu rosto e para a imagem de Cristo, como se os estivesse comparando.

Depois, os demais nativos se levantaram. Foram até ele e o agarraram, dizendo expressões incompreensíveis. Levaram-no para longe dali.

Carregando um imenso pavor dentro de si, ele desmaia.

IV

Quando acorda, os pensamentos estão confusos em sua cabeça. Aos poucos vai retomando a consciência. Abre lentamente os olhos. Tenta se mexer, mas não consegue. Estão segurando seus braços e suas pernas. Seu pavor aumenta ainda mais quando ele vê que, enquanto alguns nativos o seguram, dois outros estão colocando os imensos pregos em seus pulsos e se preparando para bater com uma espécie de martelo improvisado feito de pedras.

Quando eles começam a bater, a dor é indescritível. Ele grita, berra, implora para que parem. Mas eles somente prosseguem, enquanto os demais nativos permanecem ajoelhados. Suas lágrimas caem.

Após terminarem de pregá-lo à cruz (que fora feita rapidamente enquanto ele estava desmaiado), os nativos encarregados pela crucificação alisam sua barba. Olham para seu rosto contorcido e não param de compará-lo à imagem de Cristo que o aborígine mais idoso carrega nas mãos. A semelhança chegava a ser assustadora, inclusive na expressão de dor.

Aos poucos, ele foi erguido.

Agora está ali, crucificado e chorando, enquanto seu sangue vai aos poucos caindo. Aos seus pés, os habitantes da ilha seguem ajoelhados, enquanto ele grita, implorando para ser tirado dali. Inutilmente, ele diz que não é Cristo, que não é um deus.... grita, em meio aos berros e soluços, que é apenas um homem.

Qualquer pensamento é inútil, até mesmo a ideia de que, se ele tivesse tido meios para raspar a barba e cortar os cabelos antes de encontrar aquela caixa de metal, isso talvez não acontecesse. Mas não adianta pensar, não adianta falar, não adianta chorar.

Os nativos não o escutam, não ouvem seus pensamentos. Apenas ficam ali, adorando aquele deus de carne.... o deus de carne que o missionário disse que um dia voltaria ao mundo. Para eles, esse dia chegou. O dia mais aguardado por eles.

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