A Garganta da Serpente
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Alma livre

(Vitor Souza)

Quando ele viu as formigas caminhando sobre a mesa, percebeu que era hora de partir. Para onde... não sabia. Fazer o quê? Também não sabia. O motivo? Sabe-se lá... o fato é que precisava sair. Levantou-se da cadeira, sentiu o corpo doer após tanto tempo parado na mesma posição, e apagou a luz. Deixou atrás de si a cozinha com formigas sobre a mesa e as horas passadas naquele cômodo.

Pensou se deveria despedir-se dela, ou dizer-lhe para onde estava indo. Mas se ele não sabia para onde estava indo, o que iria falar a ela? Além disso, ela estava deitada, dormindo tão relaxada, afogada em um imenso sono após momentos tão intensos de loucura passados junto dele, que seria até maldade interromper-lhe o descanso. Além disso, pensou ele, é melhor que ela descanse, pois assim acordará melhor disposta. A loucura foi tão intensa, o esgotamento provocado foi tão grande, que ela desabou num sono gigantesco e parecia não perceber mais nada à sua volta.

Foram momentos maravilhosos passados loucamente juntos. Eles riram, gritaram, choraram até. Ele não acreditava que aquilo era possível. Após tanto desejar aquilo, ele encontrou junto dela. Encontrou a transposição dos limites, vivenciou o desfrute de todas as emoções possíveis, do prazer sem limites entre duas pessoas. Ainda agora, após tantas horas passadas desde o momento em que ela fechou os olhos e desabou, ele ainda sorria e pensava, num misto de satisfação e de vontade de viver aquilo mais um pouco, que era até incompreensível o fato de só ela haver adormecido, e não ele.

Agora ele caminha pela rua pouco movimentada, e as cenas vão se sucedendo em sua cabeça. Ele relembra tudo o que aconteceu entre ele e ela naquelas horas de prazer indescritível. Caminha e tenta, não se sabe o porquê, não deixar as pessoas na rua perceberem o que se passa em sua cabeça. Apesar de sempre defender que nenhuma emoção deve ser escondida, ele está se sentindo levemente incomodado com a hipótese de aquelas crianças que correm na calçada saberem o que se passa em sua cabeça. Talvez seja um reflexo, pensa ele, da formação humana que acompanha as pessoas desde que elas nascem e, independente do que elas queiram pensar depois, ainda deitam suas amarras limitadoras em sua mente durante boa parte da vida. Mas ele não chega a se incomodar tanto com isso, pois também pensa que, após ter vivido aquelas situações com aquela mulher, essas amarras mentais que ainda existem em sua cabeça logo serão desfeitas. E assim ele vai caminhando, tentando desviar seus olhos das crianças à sua frente, que inocentes brincam sem se dar conta de que em pouco tempo elas também quererão viver aquelas situações. Talvez já queiram, mas sua dependência em relação ao mundo externo faz com que esses desejos sejam momentaneamente transpostos ao ato de brincar, quebrar coisas, correr.... formas singulares de externar desejos ardentes da alma. Mas quando essas crianças forem homens e mulheres feitos, aí sim, as brincadeiras darão lugar às intensidades indescritíveis da alma. É nisso que ele acredita.

Mas a questão é, e isso ele também acha, que são poucas as pessoas, na verdade, que aceitam ceder a esse impulso natural e libertador. Lembra-se das cenas vividas com a mulher, mas também se lembra em como foi difícil poder viver aqueles breves momentos, e como foi mais difícil ainda encontrar alguém que quisesse vivê-los consigo. Na verdade, a mulher que ele deixou dormindo em sua casa no início relutou, não cedeu aos chamados de sua alma, mas ele insistiu, pois desde o momento em que a viu, sabia que sua relutância não era verdadeira. Pensou ele, naquele momento, que ela estava relutante porque não sabia que ele pensava como ela. E aí, após perceber que estava se relacionando com alguém que queria libertar a alma e satisfazer a carne totalmente, abriu-se e entregou-se.

Levou-a um lugar deserto, em meio ao verde inspirador de grama alta e algumas árvores. Ela gritava, dizia para ele soltá-la, implorava até, mas ele estava firme no propósito de não mais deter o que ele achava ser o chamado natural da alma. Deitou-a no chão e jogou-se sobre ela. Olhou no fundo dos seus olhos e tentou penetrar naquele corpo através da respiração. Foi quando ela parou de gritar, e ele percebeu que estava conseguindo mostrar a ela que seu momento chegara, que não era mais preciso fingir que não sentia aquela vontade louca de viver. Sem dizer nada, ele se levantou e puxou-a. Correu com ela por entre as árvores, não se preocupando em cuidar para não bater em nenhum tronco. Após correr durante um tempo, eles pararam. Ele olhou para o rosto feminino que agora não era mais agarrado pela sua mão, mas sim se agarrava à dele. Ele sorria, e ela chorava. Ele então sentiu um prazer imenso, pois essas manifestações tão díspares (o sorriso e o choro) completavam-se. Ele sabia que ela estava gostando, seu choro dizia isso.

Sem dizer uma única palavra, ele a levou para seu carro. Ela se debatia, e ele sabia que eram na verdade espasmos de prazer. Ligou o carro e saiu correndo como um insano, como o insano que ele achava que todas as pessoas eram, mas não tinham coragem de assumir. Avançou sinais vermelhos, quase provocou colisões, derrubou um motociclista e atropelou uma pessoa. Não importava. O importante era transpor todos os limites. E a mulher ao seu lado chorava. Chorava agoniada, uma agonia de prazer, pensava ele. E isso o estimulou a continuar, a aumentar a intensidade. Quando a polícia surgiu atrás de seu carro, não se importou. Continuou correndo e lançou-lhes um desafio: "tentem capturar uma alma livre! Vocês nunca conseguirão".

E de fato não conseguiram. Quando ele estacionou seu carro em casa, a polícia havia sido despistada. Ele nunca teve sua alma aprisionada por ninguém, não teria seu corpo capturado pela polícia agora.

Desceu do carro e carregou a mulher em seus braços; ela chorava, mas já não gritava tanto. Levou-a ao seu quarto e, após um breve momento passado observando seus olhos lacrimosos, ele sorriu e tirou sua roupa. No início, ela se debateu, e ele entendeu aquilo como resquício de suas amarras mentais primitivas. Então, sorriu mais ainda e prosseguiu.

Ela chorava muito, e ele entendeu aquele choro como um convite a extravasar tudo o que havia preso dentro de si. Então ele pôs-se a chorar também, enquanto penetrava aquela mulher linda, ardente e de alma livre. Colocando cada vez mais força nos movimentos, ele chorava com ela enquanto gemia . E quando ele, exausto, tendo em seu rosto a expressão do mais puro prazer misturado às lágrimas e ao suor, pensou em parar para poder respirar mais calmamente, a mulher se debateu e saiu debaixo dele. Olhou mais uma vez para ele, gemendo de dor (que ele sabia ser dor de prazer) e, cuspindo no chão uma saliva misturada com sangue, virou-se e começou a correr, gritando e esmurrando o ar. Chegou à porta da casa e, constatando que estava trancada, bateu com a cabeça na parede e sentou-se no chão. Parou de chorar e começou a rir.

Ele então chegou junto dela. Viu-a rindo, após haver chorado tanto, e sentou-se satisfeito ao seu lado. Olhou no fundo dos seus olhos e logo em seguida beijou-a. Enquanto sua língua dançava dentro da boca da mulher, suas mãos envolveram o seu pescoço. Sem fazer muita força, ele apertou-o, num ato de empolgação sem precedentes em sua vida. Imaginou que a mulher gostou daquilo, como estava gostando de tudo até aquele momento, pois ela gemia e calmamente foi desfalecendo em seus braços. Em pouco tempo, ela parou de gemer e caiu em um sono tão profundo que se poderia pensar que ela não estava respirando. Ele sabia que quando a pessoa estava satisfeita, era capaz de dormir tão profundamente que dava a impressão de estar morta.

E agora, após viver tudo aquilo e reviver em sua mente cada momento, ele resolveu voltar logo para casa e ver se ela já havia acordado para que pudessem repetir cada momento, e talvez incrementar. Afinal, eram duas almas livres que se haviam encontrado. Pensando nisso, ele agora caminha velozmente para sua casa, pronto para reencontrar a mulher que lá deixara. E imagina que ela está ansiosa à sua espera.

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